No lixo?

14/03/2006
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Já se sabe, ouvido em todas as vozes e todos os tons, que nossa sociedade se caracteriza por fazer descartáveis todas as coisas. Das coisas, passa-se às pessoas e às relações, que são usadas, consumidas, esgotadas e depois... eliminadas ou atiradas fora quando entram em obsolescência. O hábito de jogar coisas no lixo faz parte da atual sociedade de consumo: garrafas, restos de comida, papel, metal, vidro. Jogar coisas no lixo é considerado normal. O que é grave é que também vai ficando normal jogar no lixo outras coisas. Casamentos que se dão ao termo de longos namoros acabam num piscar de olhos pelas razões mais fúteis. Opções tomadas com paixão e entusiasmo são deixadas de lado porque surgiu outra alternativa mais atraente no horizonte. Vivemos sob um regime econômico que suga as forças vitais das pessoas para depois abandoná-las à própria sorte quando não produzem mais. O envelhecimento causa verdadeiro pânico por representar a possibilidade de ser descartado, jogado fora, posto à margem da sociedade. Tudo isso vai criando uma mentalidade também descartável, que interage com o mundo e com os outros em termos de uso e proveito, e não de gratuidade e afeto. E assim a humanidade vai lentamente caminhando para uma desumanização crescente. Quando, porém, um dos mais viscerais sentimentos humanos ­a maternidade- começa a ser seriamente atingida por esse estado de coisas intrínseco à nossa época, o sintoma é mais que grave. É aterrador! Assim o mostra a série de bebês abandonados no lixo ou em zonas baldias nos últimos meses. O primeiro caso que horrorizou a opinião pública aconteceu em Belo Horizonte, no dia 28 de janeiro último. A criança foi jogada na Lagoa da Pampulha, em um saco plástico amarrado a um pedaço de madeira. Seu choro foi ouvido por um casal que passeava na orla e pediu socorro. Com a ajuda de um pedaço de madeira, um homem conseguiu retirar o saco da água. Inicialmente, segundo a polícia, eles confundiram o choro do bebê com miados e pensaram tratar-se de um gato. Mas era um bebê - linda menina - que mesmo depois da situação angustiante pela qual passou atravessou rumo à vida com desejo e galhardia. Na cidade de Sorocaba, interior paulista, uma jovem mãe jogou num tambor de lixo sua filhinha de 6 meses. Alegou, em depoimento à Polícia Civil, que fizera aquilo para vingar-se do pai do bebê, que se negava a registrá-lo. Ela saiu de casa e, ao passar por um contêiner de coleta de lixo, abriu a tampa e jogou a criança. Uma tia e uma prima dela ouviram o choro e recolheram o bebê. A mãe ainda tentou agredi-las, o que as levou a chamar a polícia. A polícia apurou que a mãe também agredia o bebê. Na zona sul de São Paulo, uma menina com apenas um dia de vida foi abandonada em frente a uma casa. Estava enrolada em uma colcha, dentro de uma caixa de papelão. Na caixa, um bilhete apelava para que quem a encontrasse não a entregasse para adoção. Dias depois, a mãe se apresentou, querendo o bebê de volta. Pediu desculpas e disse que havia ficado desesperada com a gravidez porque não teria condições de criar a filha. Além da recém-nascida, ela já tem outros três filhos. A mãe perdeu a guarda da criança, que ficará sob a proteção do Conselho Tutelar. No sábado de Carnaval, um bebê aparentando dois meses foi encontrado abandonado em uma coletora de lixo em Santo Amaro, zona sul de São Paulo. O bebê foi achado por garis da prefeitura que recolhiam os sacos de lixo da coletora onde foi deixado. Encontrava-se dentro de uma mochila de náilon preta e chamou a atenção dos garis, antes de ser jogado no triturador de lixo, porque chorava. O que está acontecendo com essas mulheres? O que faz com que joguem fora como papel usado o fruto de seu ventre, enquanto cadelas, leoas e todas as fêmeas animais são capazes de morrer para defender a cria? Muitas se desesperam por não ter recursos para alimentar os filhos. Outras porque aquele filho veio somar-se a outros já nascidos e não há recursos para sustentar prole tão numerosa. A misericórdia com essas pobres mães se impõe. Mas por outro lado, é forçoso inquietar-se ao perceber como o sistema em que vivemos corrói até mesmo os mais nobres redutos do ser humano, que se animaliza ao ponto de jogar fora sua descendência e posteridade. - Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições LoyolA), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/114582
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