Neto 114

14/08/2014
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Não se trata do título de um filme de suspense. Muito menos de um best seller policial recentemente publicado. O neto em questão é real e a numeração que se lhe segue também. E se é identificado assim, é porque assim o situa a contabilidade que já conseguiu, antes dele, trazer à luz outros 113. Onde estavam? Nas sombras da memória perdida, nos porões de uma cruel ditadura.
 
O Neto 114 chama-se Ignacio Hurban, aliás Guido Montoya Carlotto, e apesar de ter 37 anos, somente há duas semanas soube quem na verdade era e pôde encontrar-se com sua verdadeira avó, que o buscou cheia de dor, mas também de esperança, durante todo esse tempo. A história de perda, morte, dor e luta terminou agora com alegria e verdade.
 
Estela de Carlotto é a avó tenaz e persistente que buscou o neto durante 36 anos. E é também a presidente do movimento “Abuelas de la Plaza de Mayo”, que busca filhos de desaparecidos no tempo da ditadura argentina. Ignacio/Guido é seu neto, finalmente encontrado. É o 114º neto que o movimento consegue encontrar.
 
De sua mãe, Laura Guido, não tem nenhuma lembrança. Restam-lhe as fotos que mostram uma jovem de extraordinária beleza, grandes olhos negros. E os relatos que lhe dizem da bravura da mãe, que entrou na luta armada por seu país sabendo o risco que corria. E que em meio a esse risco assumiu outro: apaixonar-se por Walmir Montoya e ficar grávida. Carregava essa vida, fruto da paixão nascida em meio à luta e à comunhão de ideais, quando a levaram presa. Deu à luz no hospital da prisão, acorrentada à cama e encapuzada. Sussurrou ao ouvido do bebê aquele que desejava que fosse seu nome: Guido, como o avô. O bebê ficou apenas cinco horas com a mãe. Como não queria soltá-lo, foi sedada e depois reconduzida à prisão. Disseram-lhe que o bebê havia sido entregue a sua mãe. Na verdade, foi outro o destino do bebê. E o da mãe. Laura foi morta com tiros no rosto e seus pais foram chamados em casa para identificar seu corpo em um furgão. Não lhes deram acesso ao bebê.
 
Seu companheiro Walmir também foi preso e morto. Seus restos foram encontrados anos depois, em 2009, e identificados pela mãe e o irmão. Para toda a família foi um ciclo que se fechou. Walmir - Punho como o chamavam – já não era um desaparecido, mas alguém que fora preso e assassinado por suas convicções políticas, e a família pudera enterrar seu corpo.
 
Para Estela de Carlotto, o ciclo também se fechou e pôde enterrar o corpo da filha. Mas a luta continuou para encontrar seu neto desaparecido. Ativa como nunca no movimento das avós da Plaza de Mayo, levava a luta diuturna e paciente, mas enérgica e forte de encontrar aquele que fora arrancado dos braços de sua filha em meio à escuridão da prisão. Sua luta passou a ser a esperança de muitos. Como testemunha Jorge, irmão de Punho: “Nós sempre exercitamos muito a esperança e a paciência. Sabíamos que daqui, de tão longe - vivem no sul do país - não podíamos fazer nada, e decidimos confiar nas Avós. Caso contrário, passaríamos a vida em função disso. Elas, as Avós, sempre nos atenderam com amor”.
 
O bebê de Laura foi entregue a uma família de agricultores em Olavarría, que o criou com carinho e cuidado, sem nunca mencionar a questão de sua verdadeira identidade. Cresceu e sentiu-se irresistivelmente inclinado para a música, fazendo desta sua carreira e seu trabalho. Chamaram-no Ignacio, e o nome da família Hurban foi acrescentado ao seu. No entanto, sentia em seu íntimo uma intuição, algo sem explicação, que lhe dizia que sua identidade ia além do pacífico casal de Hurban de Olavarría.
 
No último mês de julho, Ignacio/Guido se apresentou diante da Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (CONADI). As dúvidas sobre sua identidade o atormentavam e ele se dispunha a fazer o exame de DNA. Graças a este, constatou-se que seu DNA coincide 99% com o que se pôde extrair dos restos mortais de Laura Carlotto e Walmir Montoya. A juíza que acompanhava o caso telefonou a Estela e entre lágrimas de emoção lhe deu a notícia. Sua busca de décadas havia chegado a bom porto. Seu neto havia sido encontrado.
 
Algumas perguntas de Estela foram respondidas: com quem se parece? que rumo tomou na vida? Guido/Ignacio é muito parecido com Walmir/Punho, seu pai. E herdou a paixão pela música presente nas duas famílias: a de seu pai e a de sua mãe. Mas outras continuam sem resposta, escondidas pela noite dos tempos: quem o levou até o casal que o criou? Como o retiraram do hospital penitenciário?
 
Haverá tempo agora para esta e outras respostas. O importante é a força simbólica que a epifania do neto 114 traz. Como declara Guido sobre este momento de recuperação de sua identidade: “Esta restituição não deixa de ser um símbolo. Isto é uma pequena vitória em uma grande derrota”.
 
Em meio à alegria de seu reencontro está a dor do que viveram seus pais e toda uma geração de compatriotas durante a cruel ditadura militar argentina. Por trás do sorriso de sua avó está o rosto lindo e jovem de sua mãe, desfigurado pela tortura.
 
Mas Guido/Ignacio sabe que o mais importante foi feito. Não se pode não olhar de frente a realidade e ter medo da memória. A memória precisa ser desentranhada e exposta, para que a verdade apareça e liberte. Para que os mais de 400 netos que ainda continuam desaparecidos possam viver o que ele vive. Para que seja dado um passo mais, significativo na recuperação da memória coletiva da Argentina e – por que não? – da humanidade.
 
- Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, e teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
 
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