Ocidente desorientado

21/01/2005
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Assim como desnorteado significa perder o norte, direção para a qual aponta a agulha da bússola, desorientado é a incapacidade de dirigir-se ao Oriente. O termo provavelmente deriva das expedições marítimas. O próprio Cabral desorientou-se ao buscar o caminho das Índias e veio dar nas costas do Brasil. O resto da história todos nós conhecemos. Lux ex oriente, reza o antigo adágio, tão bem explorado por Morris West em seu romance "As sandálias do Pescador". Agora, no entanto, dissemina-se em nossa cultura a idéia inversa e perversa, a de que do Oriente não vem a luz, mas as trevas encarnadas no terrorismo, nos regimes antidemocráticos (China e Coréia do Norte) e até nas catástrofes naturais que fecharam 2004 castigando o Japão, as Filipinas e, avassaladoramente, doze países em torno do Oceano Índico. A civilização ocidental é tributária da oriental. Com exceção das monumentais mitologia e filosofia gregas, foi do Oriente que aprendemos quase tudo que sabemos, das grandes tradições religiosas (incluído o Cristianismo, que hoje predomina no Ocidente) às invenções chinesas (como a pólvora e o papel) e aos algarismos arábicos. É ingenuidade pensar que o casamento entre Oriente e Ocidente é vantajoso porque o primeiro entra com o dote de sua sabedoria milenar e, o segundo, com a sotisficação tecnocientífica. Só quem não conhece o Oriente pode supor que ele é desprovido de avançada ciência e eficiente tecnologia. A China é mestra em tecnologia agrícola e, atualmente, é de lá que vêm os componentes eletrônicos de nossa parafernália computadorizada. A Índia é avançadíssima em informática e se destaca como a maior produtora mundial de cinema, embora a nossa desinformação atribua este lugar a Hollywood. No entanto, quantos filmes indianos são exibidos no Brasil? Não há tecnologia de ponta, sobretudo nas áreas audiovisual e automora, que não tenha marca japonesa. Quase todo o combustível que abastece o Ocidente vem do subsolo dos países árabes. A recíproca, porém, não é verdadeira. Pode-se afirmar que o Ocidente é pródigo em sabedoria? As duas grandes guerras do século XX foram desencadeadas na Europa. A nação mais guerreira do Planeta são os EUA. Aliás, recordo que Berlusconi, primeiro-ministro da Itália por duas vezes, recentemente chamou os países muçulmanos de atrasadosŠ Uma vista d¹olhos em volta e o que vemos? O Ocidente progressivamente secularizado, distante das fontes do mistério e da divindade; despolitizado, sem a utopia que nos mova na direção de uma sociedade mais justa; hipnotizado por uma ideologia que insiste em nos reduzir a meros consumistas, restringindo a nossa liberdade à escolha deste ou daquele produto, submetidos ao totalitarismo tão apropriadamente denunciado nas obras de Hannah Arendt. Ela tem razão ao distinguir imperialismo e totalitarismo. O primeiro se constitui num movimento de expansão econômica e política, contudo respeitando a cultura e os costumes dos povos dominados. Exemplo disso é a Palestina do tempo de Jesus, dominada pelo Império Romano. O totalitarismo se caracteriza não apenas por subjugar os demais povos a seus interesses. Impõe também um pensamento único. Se sua ameaça reside nas armas, sua força dominadora respalda-se na ideologia disseminada pelos meios de comunicação. Como demonstra Castoriadis, ela molda o nosso imaginário, manipula as nossas pulsões, canaliza indevidamente o nosso desejo, enfim, seqüestra a nossa cidadania para fazer de nós meros consumidores que, iludidos, preferem trocar a felicidade pela miragem do sucesso. Fiéis idólatras, veneramos o mercado como o novo deus a reger vidas de pessoas e nações. Pela manhã nossos avós consultavam a Bíblia e o santo do dia; nós consultamos os indicadores financeiros e as oscilações de nossas aplicações rentáveis. Castoriadis tem razão ao ressaltar que o capitalismo, com as suas bugingangas revestidas de fetiche (a grife), atiça o nosso apetite insaciável de consumo, induz-nos a submergir no apego às coisas materiais e abandonar os valores cultivados pelas gerações anteriores, como a vida comunitária, a partilha, a amizade e a felicidade. Talvez o Fórum Social Mundial, que terá lugar em Porto Alegre na próxima semana, reunindo militantes da esperança provenientes de quase todos os países do Ocidente e do Oriente, desperte em nós a consciência de que não apenas "um outro mundo é possível". É também urgente e necessário. * Frei Betto é escritor, autor de "Gosto de Uva" (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111269
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