Crônica de uma guerra equivocada

23/03/2003
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E a guerra foi declarada... Nesse momento em que escrevemos, as bombas assassinas estão caindo sobre Bagdá e arredores, arrastando em sua trilha obscura e mortal não apenas soldados e militares, mas também civis, crianças e mulheres inocentes e indefesas. E nós temos apenas ­ como diria o poeta maior Carlos Drummond de Andrade ­ "duas mãos e o sentimento do mundo". E o sentimento do mundo neste momento ­ se podemos ter a ousadia de interpretá-lo ­ é de pavor e perplexidade. No fundo, ninguém - ou pelo menos muitos - não acreditavam que o Presidente Bush tivesse a coragem de passar por cima de todas as instâncias de diálogo e conversação diplomática que a humanidade levou tanto tempo para erguer . Esperava- se que fosse possível que, finalmente, a primeira potência mundial, na pessoa de seu primeiro mandatário, concordasse em não seguir unicamente seu mórbido desejo de revanchismo, vingança; não cedesse à incomensurável cobiça exercida pelo petróleo que possui o Iraque; não fechasse os ouvidos às vozes dos grandes líderes espirituais da humanidade ­ o Papa e outros ­ que em uníssono lhe suplicavam que não desse início à guerra. Igualmente, não se imaginava que a louca aventura sem retorno de Bush encontrasse tantos aliados. Foi com desilusão e imensa tristeza que o mundo foi obrigado a ver um a um dos líderes das grandes potências: Tony Blair, Aznar, Schroeder, com exceção do presidente francês Jacques Chirac, aderirem à decisão de atacar o Iraque. A humanidade se sente mais órfã neste momento em que constata não poder mais confiar em seus líderes, que em seus discursos que não cessam de proclamar e defender a paz e no desmentem o que afirmam pelo apoio efetivo dado a um insensato conflito como o que hoje presenciamos. Durante o tempo em que vivemos pendentes da efetivação ou não do ataque, quando ainda havia esperança de que no último momento este fosse suspenso, muitos segmentos da humanidade se pronunciaram. Destacamos alguns. Por exemplo, o protesto dos poetas americanos, que organizaram a 12 de fevereiro último O "Dia da Poesia Contra a Guerra". A primeira-dama Laura Bush rejeitou a iniciativa, sob a alegação de que palavras dissidentes não são bem-vindas em sua casa. Porém o recalcitrante grupo de poetas que se opõem à guerra contra o Iraque "atacaram" pacificamente a Casa Branca com bombas de versos pacifistas em um dia nacional de protesto. O poeta Sam Hamill, editor e fundador da importante editora Copper Canyon Press, de Washington, e organizador do protesto dos poetas, disse que a reação da primeira-dama mostra que "eles claramente têm um conhecimento muito limitado sobre a poesia ou sobre a natureza dos poetas. " Pois ­ continua Hamill - "embora a poesia seja escrita na solidão, é uma linguagem social, e todos os poemas são políticos de um jeito ou de outro". O protesto realizou-se e a poesia desses indignados e pacíficos poetas será enviada à Casa Branca em forma de antologia. Há que destacar ainda os esforços hercúleos e repetidos da Igreja Católica para impedir o conflito. Além dos pronunciamentos dilaceradamente emocionados do Papa João Paulo II, que chegou a interromper a recitação do Angelus para clamar pela paz, não podemos esquecer as iniciativas muito concretas do envio do Cardeal Etchegaray a Bagdá para mediar com Saddam Hussein uma postura mais dialogal; o envio do Cardeal Pio Laghi (conhecido e parceiro de tênis de Bush Pai) a Washington, a fim de conversar com o Presidente George Bush e tentar impedir o conflito. Nada disso tendo resultado, a Santa Sé dá um supremo testemunho de que não teme expor-se quando é da vida de seres humanos que se trata. O porta-voz do Vaticano, Joaquín Navarro Vals, declarou que o Santo Padre orientou a nunciatura em Bagdá que permanecesse aberta como sempre, servindo às populações vitimadas pela violência do conflito e que não fechasse suas portas "mesmo em situações de extremo perigo". Conforta nossos corações saber que as Igrejas cristãs no Iraque não fecharam suas portas. Seu espaço permanece aberto como abrigo e conforto para as vítimas que ali acorrerem em busca de refúgio e ajuda. A nós, que temos apenas "duas mãos e o sentimento do mundo", resta fazer o que podemos: escrever, rezar, protestar, assinar manifestos, e esperar. Esperar que quando os cadáveres dos jovens soldados americanos começarem a chegar de volta em seu país, os dirigentes políticos se dêem conta do grande equívoco que cometem com essa guerra. Menos de meio século após a grande tragédia do Vietnam, pela qual a nação americana faz até hoje incessante mea culpa, o risco de destroçar inexoravelmente corações e mentes não só nos EUA, mas em todo o mundo, é real e iminente. Trata-se de uma guerra, como todas , equivocada. Pois a violência é sempre um equívoco. E dos piores, quando é praticada e cometida " em nome de Deus" como insiste em afirmar desvairadamente o Presidente George Bush. Neste caso, o equívoco é ainda mais monstruoso, pois dá claro testemunho de que uma vez mais o Ocidente não aprendeu as lições da história. Não aprendeu que o revanchismo não leva a lugar algum e só gera mais violência e morte. Não aprendeu que a decisão pelo conflito armado só pode acontecer depois de esgotadas todas as tentativas diplomáticas e dialogais de solução. Não aprendeu que, por não ter ainda punido os culpados pelos macabros atentados do último 11 de setembro, não tem o direito de penalizar inocentes em busca de outros possíveis e substitutivos bodes expiatórios. George Bush responderá perante o tribunal da história não somente como o presidente que atirou os EUA, uma vez mais, em um sangrento, inútil e equivocado conflito. Mas como aquele que humilhou a humanidade, que a partir de agora não acredita mais nas instâncias responsáveis pela paz e pelo diálogo entre os povos, como as Nações Unidas e se sente uma vez mais dolorosa e irremediavelmente ludibriada. Em tempo de guerra e também de Quaresma, que seja essa nossa meditação e prece: não perder o sentimento do mundo e usar as duas mãos para fazer o que é possível, seja textos, manifestos, protestos, poesia ou, sobretudo, oração.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107162
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