Análise de conjuntura – agosto 2006

22/08/2006
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— Não é documento oficial da CNBB — Apresentação Nossa análise dos processos históricos é sempre socialmente situada. Nos momentos conflitivos, quando os atores sociais e políticos tomam posição em pólos opostos, os analistas devem explicitar a perspectiva de onde vêem a realidade, para que possam ser entendidos pelos leitores e leitoras. Este é o caso da presente Análise de Conjuntura, que aborda temas complexos como guerra, convulsão social e embate eleitoral. Em todos eles procuramos ver a realidade a partir do agredido, do oprimido que luta por seus direitos mais fundamentais, e não como se fossem disputas entre atores iguais em direitos. Isso não significa dar a priori razão ao oprimido, nem avalizar seus métodos de ação social e política, mas sim a predisposição do analista a solidarizar-se com quem tem sua vida mais ameaçada e assim abrir pistas para uma ação capaz de superar aquela iniquidade. Claro está que, sendo esta Análise um subsídio ao CONSEP e à Presidência da CNBB, a responsabilidade por esta opção cabe unicamente aos analistas que a subscrevemos. Conjuntura internacional Oriente Médio: a paz sempre mais distante. Em julho de 2000, foram assinados os acordos de Camp David II, dando continuidade aos acordos de paz de Oslo (1993). Mas Bush (declarado eleito em novembro de 2000) e Sharon (eleito em fevereiro de 2001) tinham outro plano: definir as novas fronteiras do Grande Israel e da Grande Jerusalém até 2010. Foi assim ignorada a resolução 242 do Conselho de Segurança que declara que terras não podem ser tomadas pela guerra. Para redefinir as fronteiras, Sharon humilhou os palestinos mantendo Arafat preso no quartel de Ramalah, invadiu e destruiu a faixa de Gaza, multiplicou os “pontos de controle” e aumentou as colônias na Cisjordânia. Desde 2002 está construindo o “muro da vergonha”, embora a corte internacional de justiça da Haia tenha condenado sua construção. Em setembro de 2005 Israel saiu da faixa de Gaza, totalmente destruída. Fez uma retirada no sul, para fortalecer a anexação do norte. Em julho deste ano, a pretexto de resgatar um soldado preso na fronteira, Israel invadiu novamente a faixa de Gaza, semeando a morte e humilhando os palestinos. Outro sequestro de soldados foi o pretexto para uma cruel exibição de hegemonia militar: com o apoio incondicional dos EUA e a tímida crítica européia - como se a memória do horror nazista justificasse os horrores atuais – invadiu o sul do Líbano, bombardeou indiscriminadamente Beirute e outras cidades, destruindo a infraestrutura de comunicação e transportes do país. Seu alvo é o Hezbollah (partido de Deus), criado em 1982 quando Israel invadiu o Líbano. É um inimigo com força limitada: seus foguetes nada são em comparação ao poder de fogo israelense; em compensação, seus membros têm enorme força moral e vontade de lutar. Embora incapazes de impor uma derrota militar a Israel, nem o Hezbollah, nem o Hamas, nem a Síria, nem outras forças envolvidas no conflito na região serão vencidos pela guerra. O cessar-fogo ora em vigor bem o demonstra: a linguagem das armas gerou mais ódio e vontade de vingança, tornando a paz entre israelenses e palestinos ainda mais distante, enquanto o Hesbollah tem hoje mais prestígio do que há dois meses... O fracasso da OMC A pretendida “Rodada do Desenvolvimento”, lançada em Seattle em 1999 para ser assinada em dezembro de 2004, fracassou e a Organização Mundial do Comércio nunca mais será a mesma. Fracassou por causa da intransigência dos mais ricos (EUA, UE, Japão), que já não têm a mesma força de 1994, quando venceram a “Rodada Uruguai”. Agrupados no G20 (são mais de 30), os países emergentes conseguiram o apoio do G90 (grupo dos países pobres), e rejeitaram as regras de jogo impostas pelo “Norte”. Desde o inicio o confronto se deu no ponto mais sensível: a agricultura. Os EUA, o Japão e a UE defendem os subsídios a seus agricultores em nome da soberania alimentar, da qualidade dos produtos e até das tradições culinárias. O G20 e o G90 queriam a diminuição dos subsídios, a diminuição das tarifas de importação e o abrandamento de regras fitosanitárias. Os ricos pediam, em compensação, redução das tarifas de importação para produtos industriais, acesso livre aos serviços, liberdade e proteção para as inversões financeiras e proteção da propriedade intelectual. Mas os países do G90 viam nessas medidas impedimento à sua industrialização e desenvolvimento. Além disso, a invasão chinesa no mercado mundial diminuiu o entusiasmo pelo livre-comércio. Foram cinco anos de muita negociação mas pouca participação dos pobres. Quanto mais apertadas as negociações, menor era o numero dos negociadores. Os confrontos sobre a agricultura, por exemplo, ocorriam apenas entre EUA, UE, Brasil, Índia e Austrália. Os grupos se ampliavam ou se reduziam em função dos temas em negociação. Houve muitas tentativas para superar os impasses, mas em vão: as negociações estão suspensas e a correlação de forças mudou em favor dos países emergentes. No Brasil, como em outros países emergentes, o principal perdedor é o agronegócio e já se percebe na mídia sua pressão para a retomada das negociações. De fato, não é bom que a OMC seja marginalizada ou reduzida a mera instância de resolução de conflitos, quando se multiplicam tratados de livre-comércio que favorecem os mais fortes e debilitam os mais fracos. Mas a OMC não desempenhará o papel de assegurar a estabilidade econômica e política no mundo, se não elaborar e não fizer respeitar regras para o justo comércio, regras que beneficiem os países mais fracos. Essa revolução interna da OMC dependerá da pressão de quem busca a justiça nas relações internacionais. Passos na integração latino-americana A América Latina vive um momento político inédito: por um lado, cresce a integração entre países importantes; por outro, aumentam as iniciativas dos EUA para amarrá-la em sua órbita. O Mercosul tem sido o principal espaço desse processo de integração regional. O ingresso da Venezuela e a provável adesão da Bolívia são etapas importantes. Há também a proposta de Cuba integrar-se como observador. Os avanços poderiam ser maiores, se houvesse uma definição mais clara de Lula. Kirchner e Chávez têm tomado a iniciativa e a presidente do Chile, Michelle Bachelet, também se mostra disposta a tecer mais laços regionais. A dinâmica da integração é como a da bicicleta: se não avançar com certa velocidade, cai. Por isso, é boa a idéia de criar-se o Parlamento do Mercosul a partir de 2007 e escolher uma sede para suas instituições. No plano econômico, a Venezuela propõe uma política energética baseada no “Gasoduto do Sul” que unificará Venezuela e Argentina, incluindo Brasil, Paraguai, Bolívia e Uruguai. Avança o projeto do Brasil, Argentina e Venezuela criarem o “Banco do Sul” para obras de infraestrutura. Há ainda a proposta de um “fundo estrutural” a favor do Uruguai e Paraguai para equilibrar sua integração com os seus vizinhos maiores. O encontro entre os ministros da economia de Brasil e Argentina, para eliminar o dólar dos intercâmbios comerciais bilaterais, é um primeiro passo para chegarem a uma moeda comum. São pequenos mas auspiciosos passos para consolidar a integração e torná-la irreversível. Paralelamente, crescem as forças de grupos econômicos e financeiros que, sob a capa da globalização, colocam a América Latina sob a hegemonia dos EUA e se opõem à integração latina sem dependência dos EUA. Nesse sentido vão o plano do México de uma ALCA sem Mercosul; as normas comerciais (não negociadas nem acordadas, mas impostas) entre EUA, América Central e Santo Domingo, Chile, Colômbia e Peru; e a pressão sobre Paraguai e Uruguai para que também abram “negociações” (no Equador elas estão suspensas até as eleições em outubro). Os Tratados de Livre Comércio bilaterais, ditados pelos EUA, são ainda mais desiguais e constrangedores que o projeto da ALCA. O fim da Comunidade Andina de Nações é uma derrota do projeto da integração, e reforça as ambições de Washington. Esse processo econômico é acompanhado de uma nova investida militar na região. O Senado paraguaio aprovou em maio de 2005 a entrada de tropas dos EUA, conferindo-lhes total imunidade. Em julho de 2006, entraram 400 soldados dos EUA com aviões, armas, equipamentos e munições. Uma base dos EUA, a 200 quilômetros da fronteira com a Bolívia, permitirá a aterrissagem de aviões de grande porte. Agora o presidente Bush quer pedir à OEA o envio de uma força antiterrorista na “tríplice fronteira”. Por que razão? Será para monitorar as reservas de gás natural na Bolívia? Ou ter acesso ao aqüífero Guarani, o maior do mundo, em sub-solo do Brasil, Argentina e Paraguai? O certo é que o assunto merece mais atenção. Da insegurança pública a uma tragédia social Está em curso uma tragédia social comandada pelo crime organizado (diversas facções criminosas atuando em âmbito estadual), por um lado, e pelas forças policiais, do outro. Suas raízes podem ser encontradas nos anos de chumbo do regime militar – cuja violência foi apagada da história oficial – que deu aos policiais militares e civis a certeza da impunidade quando acobertados por seus superiores. No caso de São Paulo, a origem da princiopal facção cirminosa - o PCC - pode ser remontada ao massacre do Carandiru, quando uma rebelião foi esmagada com o assassinato de 111 presos acuados e indefesos. A impunidade dos assassinos e a tácita aceitação do massacre pela opinião pública, deram àquela organização criminosa a oportunidade de tornar-se um instrumento de autodefesa da população carcerária. Defesa e opressão, porque submetem os presos ao seu controle mediante ameaças à sua vida e de seus familiares. Essas organizações são capazes de usar qualquer meio para fazer valer sua vontade: assassinatos, queima de ônibus, bombas, paralização da cidade, sequestro de jornalista... Por sua vez, as forças policiais dão mostra de só saberem reagir pelo uso de maior violência: vingam seus mortos executando grande número de suspeitos. Essa realidade deixa perplexa a sociedade e interpela nossas instituições. A superlotação é a principal causa da rotineira revolta dos presos. Não há como controlar o sistema prisional sem espaço suficiente para os presos. De fato, o comando das galerias cabe aos próprios prisioneiros. O costumeiro desrespeito à Lei de Execução Penal favorece a promiscuidade entre presos e agentes do sistema carcerário e sua corrupção. Neste quadro, quando uma rebelião ultrapassa os limites do presídio só resta ao Estado a alternativa de negociar com as organizações criminosas. E a complacência do Estado com bandidos é o principal ingrediente do crime organizado que se aloja nas suas entranhas. Incapaz de desarmar a população e garantir a segurança pública, o Estado perde o monopólio da força. A chamada “segurança privada” tem hoje maiores efetivos do que o conjunto das polícias federal, militares e civis. Aqui, como em Tel-Aviv e em Washington, predomina a lógica militarista segundo a qual a força vencerá o crime. Assim, espaços fora do controle policial, como os morros e aglomerados de periferia, são encarados como território inimigo. Não por acaso, jovens da periferia apoiaram as ações do PPC contra a polícia, tal como a população árabe apóia o Hesbollah. Uma política de segurança cada vez menos preventiva e nem mesmo suficientemente repressiva, só faz alimentar a espiral da violência. As questões de fundo pouco são discutidas pelos políticos e pela sociedade. Afirmar que a pobreza produz criminalidade, como sugere a mídia ao oferecer como espectáculo os confrontos entre forças policiais e bandidos, é criminalizar a pobreza. Essa tragédia social só poderá ser revertida por uma verdadeira revolução sócio-cultural, que construa uma nova ordem institucional e instaure uma nova ordem legal capaz de mediar os conflitos e não reforçar antigas iniqüidades de fundo étnico e social. Mas as elites políticas não têm disposição de encarar a fundo a questão da segurança, pois isso implicaria enfrentar relações promíscuas entre o público e o privado nas redes de corrupção, de lavagem de dinheiro1., do narcotráfico e do tráfico de armas. Trata-se de enfrentar essas redes de corrupção e derrubar poderosos do seu pedestal de impunidade. Isso requer mais que discursos moralistas, sabidamente inoperantes. Só uma atuação qualificada da sociedade, sobretudo nos espaços mais conflitivos, poderá chegar ao fundo da grande questão que é a desigualdade sócio-cultural e econômica implantada pelo domínio colonial escravista até hoje vigente. O momento político das eleições de 2006 Sistema eleitoral, eleitorado e formadores de opinião As mudanças no cenário político e cultural brasileiro, acumuladas ao longo de sete décadas, começam a explicitar a diferença entre dois projetos de Estado: a democracia formal da elite e a democracia social almejada pelos setores subalternos organizados. Entender sua natureza é fundamental para uma tomada de posição no processo eleitoral deste ano. A Revolução de 1930 é o ponto inicial deste processo, pelas medidas tomadas por Vargas para implodir as oligarquias regionais e promover a centralização estatal. Seu êxito foi relativo, porque as oligarquias se acomodaram no aparelho do Estado e estabeleceram um sistema eleitoral que até hoje as ampara; mas favoreceu a organização dos setores sociais subalternos: num primeiro momento, amparados pelo regime varguista; mais tarde, com autonomia. A luta contra a ditadura militar deu-lhe novo impulso, que resultou nas conquistas inscritas na Constituição cidadã de 1988. A partir de 1989 o neoliberalismo vem, na contra-mão desse processo, implantando o projeto de Estado mínimo, pautado pelo anti-estatismo e conclamando a parceria da sociedade para sobre ela descarregar as responsabilidades sociais do governo. Falando de “terceiro setor” (entre o mercado e o Estado), os governos liberais e as agências multilaterais tentaram se apropriar das práticas associativas sob a forma de voluntariado ou filantropia empresarial, e substituir a noção de política pelas noções de colaboração, parceria, ou civismo. Assim, aquele período despolitizou os conflitos referentes à ampliação da cidadania. Com efeito, os movimentos de trabalhadores, mulheres, negros, índios, sem-terra, sem-teto e outros por natureza conflitivos - porque demandam direitos constitucionais e relações sociais igualitárias - caem num campo nebuloso quando tratados sob a forma de trabalho voluntário ou trabalho profissional das ONGs. Saem, então, da política para entrarem no campo das relações pessoais, as quais não questionam relações verticais nem afirmam direitos. Tal bifurcação tem freado o projeto político de democracia social com a estratégia da democracia elitista e seu clientelismo. A eleição de Lula sinalizou uma reação dos movimentos sociais contra o esvaziamento do Estado e fez reverter o projeto do Estado-mínimo e as consequentes privatizações. Assim, Lula tornou-se referência internacional, especialmente na América Latina e nos países pobres: a eleição de um operário migrante em 2002, abriu o caminho para a emergência de candidatos ligados a setores populares ou deles provenientes, vários dos quais vitoriosos. Além disso, o governo Lula dialoga, ainda que timidamente, com os movimentos sociais, inclusive quando reivindicam direitos de cidadania. Embora sua política econômica seja de molde conservador, bem ao gosto da elite financeira, deve-se reconhecer que o governo Lula tem favorecido o avanço político do projeto de democracia social. Este avanço político contraria os interesses das antigas e novas oligarquias, que preferem ver os movimentos sociais longe do centro de decisões nacionais e que usam a mídia para acuar o governo Lula. Lembremos que as redes mídiáticas ganharam abrangência nacional durante o regime militar. Elas transmitem, de variadas maneiras, as vozes de representantes da democracia elitista. Formadores de opinião – artistas e comentaristas de TV, colunistas de rádio e jornal, cronistas – repetem incansavelmente os bordões do Estado-mínimo, do equilíbrio fiscal, contra a “gastança” governamental, enquanto enaltecem o trabalho voluntário, a filantropia, a “responsabilidade social” e os êxitos do “terceiro setor”. Já quando se trata de repercutir as vozes dos setores populares, ou se calam ou os apresentam como ameaças à ordem social. A novidade, é que as sondagens de voto mostram o descolamento entre a opinião pública e o discurso dos seus formadores. Embora a mídia insista nas denúncias de corrupção – que é real - e tenha conseguido desgastar a imagem do PT nos setores letrados, não está convencendo a grande massa popular como fez ao eleger Collor e FHC. O eleitorado popular se agarra aos sinais de um projeto de democracia social, como a incorporação de mais de sete milhões de pessoas com emprego e salário, a diminuição da desnutrição infantil devido aos programas de transferência de renda e a diminuição do custo da cesta básica. Tais fatos o deixam contente com o pouco que os governos fazer, mas isso já é meio caminho para o entendimento da disputa entre projetos políticos. Afinal, quem alçou o atual governante ao cargo de maior influência no país, contrariando os formadores da opinião pública, foram os setores sociais subalternos, as classes médias e, principalmente, os movimentos sociais e um partido político com vinte anos de lutas. Na política econômica a prova de fogo do segundo governo As pesquisas indicam que Lula será reeleito. Terá então a oportunidade de provar sua vontade política de democratizar a sociedade brasileira, operando mudanças também nas suas bases econômicas. Como foi dito acima, enquanto não for superarmos a desigualdade sócio-cultural e econômica implantada pelo domínio colonial escravista, não haverá verdadeiro desenvolvimento nacional. O primeiro governo Lula não foi capaz de enfrentar essa questão estrutural, pois a concentração de renda e da riqueza aumentou. O melhor exemplo é o dos grandes bancos que têm lucros exuberantes, não só porque comandam o mercado, mas porque contam com a cobertura do Banco Central, que lhes assegura um spread (não se fala mais “usura”!) médio acima de 25 pontos percentuais. Como se não bastasse, as taxas pelos serviços (das quais só são isentos os grandes correntistas) cobrem todos seus gastos com pessoal. Conclui um economista: “É óbvio que interessa a qualquer economia moderna ter um sistema bancário sólido e lucrativo. Mas, no caso do Brasil, o poder dos bancos passou dos limites e está prejudicando seriamente grande parte da economia. Se o próximo governo quiser realmente colocar a economia em movimento, não poderá deixar de enfrentar esse problema.”2 Outro exemplo da extranha política de distribuição de renda é a que vem embutida na rolagem da dívida pública, que no primeiro semestre deste ano levou R$81,6 bilhões. A maior parte desse pagamento (R$57,1 bilhões) foi realizada com o superávit primário - arrecadação que o poder público (federal, estadual, municipal e empresas estatais) deixa de investir em obras ou programas sociais - e o restante com a emissão de novos títulos da dívida. Na outra ponta da transferência de renda, neste mesmo período o governo federal usou R$19 bilhões para cobrir o prejuízo da Previdência e R$5 bilhões para o bolsa-família.3 O instrumento legal da transferência de renda do conjunto da sociedade para os mais pobres foi estabelecido pela art. 195 da Constituição de 19884. São verbas vinculadas, pois só podem entrar no Orçamento para gastos em sua área. Mas diante da grave crise provocada pela moratória russa, em agosto de 1998, o governo FHC pediu e obteve do Congresso a “Desvinculação dos Recursos da União” (DRU), que por quatro anos permite ao Tesouro usar livremente até 20% de orçamentos específicos, e assim cobrir despesas financeiras. Em 2003 o governo Lula recorreu ao mesmo expediente para garantir o enorme superávit primário das contas públicas5. Assim é contornada a exigência constitucional de transferência de recursos arrecadados do conjunto dos contribuintes para os mais pobres e abre-se o caminho para transferi-los para os credores da dívida pública. A questão agora é: a DRU tem prazo de quatro anos e esgota-se em 2007. Estará o governo Lula disposto a negociar no Congresso sua renovação? A que pretexto, posto que tem afirmado que a economia vai bem? Mais uma vez as políticas sociais serão sacrificadas, ou no segundo governo Lula veremos enfim os pobres serem beneficiados? É evidente que isso não depende apenas do Presidente da Rebública, mas sim do apoio que ele tiver na sociedade para enfrentar o poderosíssimo lobby financeiro, que não admite extinguir a DRU. São os movimentos sociais e seus aliados, que reivindicam políticas públicas em favor da grande maioria excluída do mercado, que deverão pressionar por mudanças no segundo governo Lula. Mas o próprio processo eleitoral condicionará a força política do Presidente, para enfrentar essa questão. Quanto mais forte ele estiver, maior sua possibilidade de enfrentar a crise financeira que os credores certamente provocarão, caso vejam diminuir o superavit primário. Se Lula até hoje não enfrentou o lobby financeiro, será que seu segundo governo priorizará efetivamente as políticas sociais? Um grupo de intelectuais militantes lançou um manifesto de apoio a Lula, dizendo: “Isso será muito mais eficaz com a reeleição de Lula no primeiro turno: ele sairá fortalecido, para estar mais livre diante de pressões poderosas em contrário, capaz então de realizar e ampliar transformações que a sociedade exige.” Já outros analistas pensam que no primeiro turno é melhor reforçar as candidaturas de H. Helena ou de C. Buarque, de modo a provocar um segundo turno e assim politizar o debate sobre as diretrizes econômicas do próximo governo, já que as candidaturas Lula e Alckmin até agora não levantaram o problema. Isso levaria Lula, no segundo turno, a pender mais à esquerda e assumir menos compromissos com o PMDB e outros partidos pouco afeitos ao projeto de democracia social. Os Movimentos Sociais Desde 2005 os movimentos sociais apresentam um reascenso na articulação e força política, além de maior clareza de posicionamento em relação ao atual governo. Percebe-se uma lenta mas progressiva superação do refluxo provocado, no início dos anos 90, pela política neoliberal, pelo desemprego, pela mudança da natureza do estado, e pela repressão social. Se o governo Lula adotou uma postura de cooptação e desarticulação com medidas paliativas e oferecimento de cargos, também possibilitou maior diálogo e atendeu a várias reivindicações dos movimentos sociais, como barrar a ALCA, a base dos EUA em Alcântara, a autonomia do Banco Central, a suspender a transposição das águas do Rio São Francisco, quando a greve de fome catalizou muitas energias da oposição ao projeto. Uma conquista significativa foi a homologação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol. Contudo, nestes dois últimos anos houve um aumento significativo das lutas sociais no campo, na questão indígena e na ambiental (transgênicos, “deserto verde” e Amazônia são as mais evidentes). Os movimentos sociais mantém a unidade em torno a objetivos históricos, como a reforma agrária, a oposição à política econômica neoliberal, a luta pela auditoria da dívida pública, e a universalização da educação. Atualmente há uma intensa mobilização em torno às campanhas nacionais pela reforma política, a redução das tarifas de energia elétrica e a reestatização da Vale do Rio Doce, que devem se intensificar no período das eleições. Permanecem também seus desafios: construir maior solidariedade entre os movimentos; conquistar apoio da sociedade para as lutas; romper com o maniqueísmo moralista, as práticas sectárias e o corporativismo; articular-se com redes internacionais; elevar o nível de formação e de consciência política de seus militantes; e garantir a contribuição das religiões, cuja espiritualidade e ética são indispensáveis para a reconstrução social. Nesse cenário, as Assembléias Populares têm revelado sua força articuladora em torno da construção de um Projeto Popular alternativo que ajude a construir o “Brasil que Queremos”. Uma metodologia de consulta ao povo, que aposta na participação popular real e efetiva, buscando novos canais e caminhos de controle social e inventando novas formas de democracia direta e participativa conjuntamente com a democracia representativa. Um processo permanente de formação de grupos de base conscientizados e articulados, com a vocação e a responsabilidade de participar na elaboração e concretização de um Projeto Popular para o Brasil. Também o Grito dos Excluídos, em sua 12ª edição, vem apresentando crescimento como espaço articulador e de manifestação massiva. Abrangendo praticamente todas as capitais do País e realizando eventos populares em centenas de praças, ruas e localidades, tem por tema: “Brasil: na força da indignação, Sementes de Transformação”. Os movimentos sociais terão papel decisivo nos próximos quatro anos. Depois de oito anos de governo Lula, ou o Brasil caminha para efetivar a Democracia transferindo riqueza e renda dos mais ricos para os pobres (isso implica não só prioridade às políticas sociais, mas também reforma agrária e reforma tributária), ou a eleição presidencial de 2010 terá como marca o desespero dos setores subalternos, se nem Lula der conta de atender seus anseios por equidade e justiça social. Notícias do Congresso Nacional Processo eleitoral O processo eleitoral permeia a vida do País e marca a caminhada dos Poderes Públicos numa democracia cada vez mais esvaziada, onde o equilíbrio fiscal dita as normas do político e a governabilidade está condicionada pelo sistema neoliberal reinante, que o Papa João Paulo II classificou como “sistema apoiado numa concepção economicista do homem”. O processo eleitoral entre nós é um momento privilegiado para a busca de resposta aos desafios que vêem à tona com maior ênfase, levando a população a também expressar sua frustração com a política e os políticos6. Daí o atual clima de desalento, aparecendo o Legislativo como o foco mais forte da indignação popular. Fica cada vez mais claro que só uma Reforma Política poderá consolidar a nossa ainda frágil democracia. Esta temática emergiu recentemente através da proposta de uma Constituinte Exclusiva, mas tomou uma conotação eleitoreira. A proposta foi abafada, mas dois pressupostos continuam pertinentes: a sua urgência e a interrogação se o Congresso terá condições de realizá-la com isenção. A idéia surgiu a partir de um encontro de membros da OAB com o Presidente da República. O Conselho Federal da OAB não a assumiu, mas criou um Fórum da Cidadania pela Reforma Política, sob a coordenação do jurista Fábio Comparato. Diz a nota do Conselho Federal da OAB: “Esse Fórum, que terá a presença dos partidos políticos e de setores representativos da sociedade civil brasileira, não se submeterá a facciosismos ideológicos de qualquer espécie. Será plural na sua composição e democrático e transparente em seu método de trabalho, de modo a oferecer à sociedade brasileira e ao futuro Congresso Nacional subsídios concretos para uma reforma política profunda e consistente, que restaure a credibilidade das instituições republicanas”. Chico Whitaker lançou, em longo texto, uma plataforma para um processo de Reforma Política com selo de responsabilidade ética, com o título “Pela Refundação do Legislativo”. Diz ele: “A única saída possível é mudar a lógica: uma dinâmica de "refundação" do Legislativo tem que vir de dentro para fora desse poder. Para isso, é preciso que nele exista um número suficiente de parlamentares que não vejam a ética como simples tática eleitoral, e que se proponham a lutar pela mudança desse Poder como um compromisso pessoal. (...) Uma tal "refundação" do Legislativo seria estratégica, porque influenciaria todos os demais Poderes, na construção de uma cultura de responsabilidade ética no mundo da política. (...) Mas, tudo depende de nós, cidadãos: caberá aos eleitores eleger esses parlamentares. O problema passa a ser o de como identificá-los, entre os milhares de candidatos. Uma solução poderia ser a criação de um "selo de responsabilidade ética", que indicasse que candidatos, de quaisquer partidos, estão dispostos a atuar como o devem os representantes eleitos numa real democracia”. Uma boa notícia: o Movimento Nacional de Combate à corrupção eleitoral - em torno da Lei 9.840 - tem recebido adesão de muitos grupos de profissionais e associações, proporcionando maiores possibilidades de moralidade nas eleições. Até o momento, já foram cassados 422 mandatos por corrupção eleitoral. No entanto, há uma preocupação específica - a insegurança legal nas normas oficiais para estas eleições: interpretações diversas dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) nas definições contidas na minirreforma eleitoral; casos e casos sem respostas claras por parte do TSE. E grande parte das questões levantadas só será respondida após as eleições. Assim como as eleições anteriores foram marcadas pelos marqueteiros, estaremos agora sob o signo dos juristas. A CPI dos Sanguessugas e os limites do Novo Congresso A CPI dos Sanguessugas identificou 90 parlamentares - 87 deputados e 3 senadores - envolvidos num esquema de corrupção por meio emendas ao Orçamento da União para a compra de ambulâncias. Os recursos eram desviados ao serem liberados para as prefeituras. No dia 10/08, a CPI aprovou o seu relatório parcial recomendando a abertura de processo de cassação contra 72 desses parlamentares. Dos denunciados pela CPI, três são senadores, os demais deputados. Os nomes de parlamentares acusados de participarem da “Máfia dos Sanguessugas” seguirão para as Corregedorias da Câmara e do Senado, onde poderão se defender mais uma vez. As Corregedorias têm poder para arquivar processos ou encaminhá-los para os Conselhos de Ética para serem submetidos a processo de cassação de mandato. Com um grande número de parlamentares acusados de envolvimento, a partir de fevereiro de 2007 o Congresso poderá começar os trabalhos com as mesmas dificuldades verificadas após o escândalo do mensalão. Parlamentares prevêem novamente a paralisia nas votações, a desarticulação dos líderes e a falta de liderança sobre as bancadas partidárias, com os grupos tentando se livrar da cassação. O resultado disso poderá ser mais uma vez a não-aprovação de novas reformas e projetos importantes e o congelamento da agenda do presidente eleito. Projeto das Capelanias como profissão A Câmara analisa o Projeto de Lei que regulamenta a profissão de capelão cristão. Nos termos da proposta, só podem exercer a profissão as pessoas inscritas no Conselho Federal de Capelania Cristã do Brasil (CFCB). A sua formação será feita pelas associações de Capelania credenciadas pela CFCB. A atividade profissional de capelania cristã inclui assistência espiritual cristã em hospitais, presídios, orfanatos, asilos, creches, albergues, escolas, áreas militares, empresas e instituições governamentais, mediante autorização dessas instituições. Se o serviço for prestado a entidade pública com remuneração será necessária a realização de concurso público. "Entendemos ser urgente a regulamentação da profissão, a fim de disciplinar todos os ângulos do seu exercício, socialmente útil e legalmente fiscalizável, para a conservação do respeito mútuo citado entre católicos e evangélicos", disse o autor da proposta, o deputado Ademir Camilo, da Igreja Universal do Reino de Deus. O projeto será analisado e votado, em caráter conclusivo, nas comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público, e de Constituição e Justiça e de Cidadania. O relator do Projeto, o deputado Walter Barelli, em contato com a CNBB, pediu sugestões concretas para a elaboração do relatório e estamos enviando algumas propostas. Projeto da Reforma Universitária Em abril deste ano, os Ministros da Educação, Fazenda, Ciência e Tecnologia e Planejamento encaminharam ao Presidente da República o projeto de lei sobre a Reforma Universitária. O projeto se apresenta bem mais enxuto do que nas primeiras versões divulgadas pelo MEC. Está na Comissão de Educação em processo de recolhimento de emendas, preparação de audiências públicas. O Padre Jesus Hortal sj, reitor da PUC-Rio, elaborou uma análise do Projeto com críticas e sugestões, já em mãos do relator do Projeto, o deputado Paulo Delgado. Campanha Brasil sem aborto A Frente Parlamentar pela Vida – Brasil sem Aborto lançou uma Campanha que tem como objetivo, na conjuntura eleitoral, trabalhar pela sensibilização do eleitoral brasileiro para que tenha, além dos parâmetros da ética, da honradez, do compromisso com as necessidades fundamentais da população, mais um elemento para a reflexão na escolha dos candidatos – compromisso com a vida desde a sua concepção. Para concretização da Campanha, foi estabelecida uma Coordenação Nacional para promover Comitês Estaduais. - Pedro A. Ribeiro de Oliveira é membro da Equipe de ISER-Assessoria Contribuíram para esta análise Pe. Ernanne Pinheiro, Lúcia Avelar, Pe. Thierry Linard, Gilberto Souza, Bernard Lestienne SJ e Ir. Delci Franzen.
https://www.alainet.org/pt/active/13011
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