Processos de Integração na América do Sul: parceiros para quê?

11/12/2006
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Cena I
“É preciso escolher os parceiros.  Escolher parceiros responsáveis, que não mudem as regras do jogo”.

Foi neste tom que o presidente peruano Alain Garcia em recente visita ao Brasil, se dirigiu à platéia em um evento realizado pela Federação das Indústrias do estado de São Paulo – Fiesp.

No dia anterior em encontro com o presidente brasileiro recém reeleito Luis Inácio Lula da Silva, segundo o Jornal O Globo (11/11/06), Garcia afirmava “estar de mãos estendidas para que a Petrobras instale uma refinaria no país”.  Mais uma vez insistiu que o Peru é um país amigo, ao contrario, afirma ele, do que supostamente dizem ser a Bolívia e a Venezuela.  “A Petrobrás tem muito dinheiro.  E creio que o Peru é um país sério, onde a Empresa não vai perder dinheiro”.

Cena II

Em recente encontro da XVI Cúpula Ibero americana, entre 4 e 5 /11diante de um sério conflito entre Argentina e Uruguai ,a questão das papeleiras (ver abaixo), é acordado como parte mediadora do conflito o Rei de Espanha Juan Carlos de Borbón, para interceder entre as partes e facilitar o processo de negociação.  A pergunta é: como em pleno processo de dinamização do Mercosul um conflito entre dois de seus paises membro, não se pensa em uma solução interna ao tratado regional, sem recorrer a isso que parece um saudosismo colonial de chamar o ex-colonizador para ser intermediário entre as partes? A mesma figura histórica – o Rei – que destruiu Missões, logo ali bem pertinho da região do conflito.

Em tempo: Missões poderiam ser consideradas uma experiência de integração regional? Mantida a devida distancia histórica, penso que sim.

 

 

 

Crise das papeleiras

As relações entre Argentina e Uruguai estão tensas no momento, devido à "crise das papeleiras".  O impasse envolvendo fábricas de celulose surgiu com o início da construção de duas plantas de celulose com capital europeu, em uma delas espanhol.

Os projetos foram rejeitados por habitantes da Argentina que vivem em frente ao local conhecendo os desastres ambientais provocados pela contaminação dessas fábricas.  Em meio à tensão bilateral, a espanhola Ence decidiu mudar a localização de sua fábrica para outra área no Uruguai, enquanto a finlandesa Botnia optou por continuar a construção.  No ano passado, ambientalistas protestaram contra as construções, e nas últimas semanas, diante da falta de avanços nas discussões entre os presidentes, as manifestações foram retomadas.


IIRSA – Integração da Infra-estrutura Regional Sul americana

Ao mesmo tempo, bem perto dessas situações descritas, um processo chamado de integração avança.  São 10 eixos multimodais (Eixo Andino
, Eixo Andino do Sul, Eixo de Capricórnio, Eixo do Amazonas, Eixo do Escudo Guayanés, Eixo do Sul, Eixo Hidrovia Paraguai-Paraná; Eixo Interoceânico Central; Eixo MERCOSUR-Chile; Eixo Perú-Brasil-Bolívia) cruzando os quatro cantos da América do Sul.  Cortando biomas como Mata Atlântica, Amazônia, Pantanal Caatinga, Cerrado, Pampas, etc.  através de estradas, hidrovias ferrovias, gasodutos, hidrelétricas, portos, aeroportos, ferrovias...  São 335 projetos de transporte, energia e telecomunicações nos 12 paises da América do Sul, U$ 37.470 milhões financiados pelo BID, CAF, Fonplata em parceria com o BNDES e bancos privados.

Tudo isso acontecendo em uma região do mundo - a América do Sul – que é uma das poucas do planeta que combina os quarto recursos naturais estratégicos atualmente:hidrocarbonetos, minerais, biodiversidade e água.

O caso da Bolívia, para ilustrar o que significa o IIRSA, cruzam quatro dos dez eixos previstos no projeto: Perú-Brasil-Bolivia, Andino, Capricórnio e Hidrovia Paraguai-Paraná.  Os quatro eixos têm como característica comum confluírem para o interior do país a fim de se conectarem com o Eixo Interoceânico Central, que é um dos principais eixos transversais na América do Sul.  Ou seja, uma série de vias multimodais cruzando todos os cantos do país para se encontrarem com um via central ligando o oceano Atlântico ao Pacífico, podendo assim facilitar a exportação principalmente de Comodities para a China, Índia e a costa oeste dos EUA.

Como nos lembra o presidente da Comissão Marítima Federal (FMC) Steven Blust[1] na página Web do Departamento de Estado dos EUA “como o comércio e o transporte entre América Latina, Caribe e Estados do sudeste dos Estados Unidos devem triplicar até 2020, os portos e a infra-estrutura regionais precisam se adaptar para acompanhar essa expansão”.

O Brasil, sendo a maior economia sul americana, tem um interesse particular nesta passagem pela Bolívia: alcança os portos do Pacífico por uma via mais curta e que implica em menor tempo as rotas marítimas do Estreito de Magalhães ou do Canal do Panamá e evita a difícil passagem terrestre dos Andes através da Argentina e Chile, que forma parte do Eixo MERCOSUR-Chile.

“Alcanzar este objetivo le permitiría avanzar en su anhelo de lograr una posición dominante en América Latina, resultado de la estrategia brasileña, de lograr el liderazgo regional a través de la incorporación a su zona de influencia de los países de su entorno geográfico más próximo, Argentina, Uruguay, Paraguay, luego Bolivia y Chile, posteriormente los demás países de la Comunidad Andina y luego toda Sud América, con el fin de fortalecer su economía frente al ALCA[2].”

O caso boliviano preocupa bastante, pois, os impactos socioambientais sobre as populações e biomas do país serão significativos ao mesmo tempo em que explicita claramente os interesses de economias como a brasileira no seu papel se grande domínio e controle sobre os territórios vizinhos.  O caso do Complexo Rio Madeira é bem ilustrativo a quem servir e a que tipo de integração da infra-estrutura está se desenhando na região.  O projeto principal do “Eixo Peru-Brasil-Bolívia” é o Complexo Hidroelétrico e Hidroviário do Madeira, que, nos planos do BID, prevêem a construção duas usinas brasileiras, uma usina binacional e outra boliviana.  Além de um sistema de eclusas tornar navegável grande parte da extensão do Rio Madeira, se tornado parte integrante facilitadora para a interconexão com o Eixo central interoceânico.  Os sinais de resistência começam a aparecer.  Em carta enviada ao Itamaraty no inicio de novembro pelo governo boliviano afirma “que o plano brasileiro de construir as usinas no Rio Madeira pode ter como conseqüência a inundação de terras onde há forte produção de castanha, situadas em território boliviano.  Há ainda a preocupação com o risco de queda da fauna marinha” (Jornal o Globo, 22/11/06).  Ao mesmo tempo o governo brasileiro se esquiva em criar uma comissão bilateral para discutir a construção das usinas.

Do ponto de vista dos movimentos sociais, a integração da fronteira Brasil-Bolívia na altura do Rio Madeira, não pode se dar pela construção de hidrelétricas.  O impacto sobre as populações camponesas e indígenas que vivem na região fronteiriça, produz um processo de integração de outro tipo, que faz ecoar os gritos de Chiapas de 1.  de janeiro de 1994, data em que entrou em vigor o NAFTA..

Que integração queremos?

Os processos de integração da infra-estrutura presentes na região precisam urgentemente ser conhecidos e debatidos pelo maior numero de pessoas e organizações.  De acordo como estes o desenvolvimento desses processos, fica definido a quem pode servir toda a riqueza produzida na região.

“Os grandes projetos de infra-estrutura tem o poder de consolidar determinadas trajetórias de desenvolvimento, por isso, todos temos o direito de aprová-los, de condicioná-los ou de vetá-los.  O espaço será o que a infra-estrutura permitir que seja.  Então seremos o que permitirmos.  Complexos energéticos e viários servem para densificar ou para simplificar territórios.  Qual é a escolha, quem escolhe?[3]

O que temos acompanhado é a satisfação das grandes empresas de engenharia, do agronegócios, das empresas produtoras de alumínio e extratoras de minérios com o chamado processo de integração da infra-estrutura.  Não é a toa que treze empresas de engenharia doaram ao PT, partido do Pres..  Lula, R$5,8 milhões em 2006 contra R$ 1 milhão em 2002, significando um crescimento em 4 anos de 476% em doação para a campanha eleitoral.

Há dois projetos claros em disputa nesses processos de integração.  Um, o que está em curso na agenda oficial da infra-estrutura, é o que favorece a integração sul-americana consolidando núcleos duros de acumulação de capital, favorecendo a integração desses núcleos capitaneados pelo Brasil, talvez na ilusão do desenvolvimento de uma espécie de capitalismo regional – como se fora possível em uma economia mundial altamente integrada e controlada desde cima seja pelo poder das armas, seja pelo poder dos bancos e das grandes empresas transnacionais – pensar em processo regional de acumulação sem que este favoreça a esses controladores do andar de cima.

Outro processo de integração, que vai alem da infra-estrutura, é o que vem construindo os povos.  Os movimentos sociais, populares compostos por populações indígenas, camponeses, mulheres, etc que vem construindo uma agenda continental que nada tem a ver com a agenda oficial.  Para a Cúpula de Cochabamba este acúmulo de propostas alternativas escritas do calor das lutas de resistência que nos integraram como povos e movimentos em todo continente – a luta de resistência a ALCA não me deixa mentir – será discutido pelos movimentos sociais na Cúpula dos Povos (6 a 9/12) e apresentada aos presidentes durante sua reunião oficial no mesmo período, para que em algum momento se pare de repetir a ladainha que “os movimentos sociais não tem propostas e que só sabem fazer protestos”.  Entre as questões suleadoras (ao contrario de norteadoras) dessas propostas estão a preocupação que nossas economias não sejam subordinadas as ordens dos donos do capital e sim que seja uma integração que conquiste espaços de autonomia e soberania para definirmos nossas próprias políticas publicas; que não seja uma integração que contribua para destruir todavia ainda mais os territórios ou espaços onde se exerce soberania democrática dos povos e sim que seja uma integração orientada para recuperar o que há séculos de colonialismo e políticas imperiais causaram e continuam causando aos povos.  Que seja uma integração que não seja orientada pelos valores de individualismo possessivo, da competição de todos contra todos, onde se garanta a vitória dos mais fortes sobre a base da exploração e exclusão - uma integração que incrementa as desigualdades e sim que seja uma integração guiada por valores de igualdade, participação, pluralidade e solidariedade.

Que não seja integração que explora nossos recursos naturais sem limites, os convertendo em mercadorias exportáveis para gerar os excedentes necessários para pagar a dívida externa.  E sim que seja uma integração orientada para recuperar e construir outras formas de relação com natureza que não a considere como um obstáculo a ser superado, explorado e destrói.

E finalmente uma integração que não seja pensada como área de livre comércio, concebida principalmente como a construção de um espaço econômico de livre circulação de mercadorias e capitais e sim que seja uma integração concebida como parte dos processos de resistência ao modelo capitalista imperialista global.


O modelo atual de integração regional está concebido e impulsionado pelas Instituições financeiras Internacionais que priorizam a integração da infra-estrutura em detrimento de todas essas questões afirmativas acima referidas, já que sua lógica é favorecer cada vez mais a inciativa privada atraves de financiamento públicos, ampliando assim o poder das empresas privadas.  Isto representa claramente “a materialização da terceira etapa das reformas estruturais de caráter neoliberal.  A primeira etapa foi caracterizada por uma reestruturação da arquitetura financeira mundial expandindo a finança corporativa internacional como ator principal da globalização financeira.  Esta etapa financiera há sido mas impulsionada pelo FMI com a imposição de programas de ajuste estrutural e políticas de estabilização macroeconômica.  A segunda fase se caracteriza pelas reformas do Estado promovidas pelo Banco Mundial em harmonia com os programas do FMI.  Aqui o novo endividamento do Sul ocorre através de programas e projetos de transformação institucional do Estado para garantir sua minimização e o incremento do poder do setor privado.  A terceira etapa, que vivemos hoje é caracterizada por “planos estratégicos” que definem megaprojetos de exploração intensiva de recursos naturais e de força de trabalho.  Estes megaprojetos de infra-estrutura se integraram em duas grandes iniciativas – o Plano Puebla Panamá e a Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul americana.”
[4].

Cortando o alimento do monstro

Finalmente, os desafios colocados pelos povos desta região do mundo vão muito além da agenda assumida desde de 2000 na reunião de Brasília que criou a Comunidade Sul-americana de nações e o IIRSA.  Não podemos aceitar que um processo de disputa interna por investimentos estrangeiros sejam europeus sejam translatinos, como bem ilustram as cenas que abrem este artigo, criem entre os doze paises da América do Sul um processo de competição e concorrência sem fim.  Não podemos aceitar a construção de uma espécie de sub-imperialismo capitaneado pelo Brasil, com suas empresas como a Petrobras e banco como o BNDES, alem do suporte que tem sido dado a empresas de capital privado.  Não podermos deixar que o agronegócio, as grandes empresas de engenharia, as mineradoras e transnacionais de todo tipo sejam os protagonistas desta história que desde a eleição de Evo Morales na Bolívia que ser escrita de outra forma.  Os protagonistas são os povos em luta do continente com sua bandeiras e propostas.  E para eles que devem estar a serviço qualquer processo de integração.  É para com estes povos que uma divida histórica, ecológica e social precisa ser paga e para isso antes de mais nada, os povos precisam enfrentar a questão que talvez seja a mais ardilosa no processo de integração: o enfrentamento do capital financeiro e os mecanismos de sobre-endividamento, seja interno ou externo.  Desta forma estaremos cortando de vez a ração que alimenta o monstro da super exploração dos povos do sul: a divida! Mas, isso é assunto para outro artigo.

- Sandra Quintela, Pacs/Rede Jubileu Sul

 

 


[2] Foro Boliviano sobre Medio Ambiente y Desarrollo – FOBOMADE em apresentação no Seminário “Internalização capitalista ou integração dos povos: para onde vai a América do Sul? Alternativas de integração regional - São Paulo, 18 e 19 de setembro de 2006

[3] Novoa, Luis Fernando.  O que está em jogo no megaprojeto do Madeira”.  Reprip/Rede Brasil 2006.

[4] Furtado, Fabrina.  Em apresentação no Seminário “Derechos Humanos, Deuda y Alternativas de Justicia” organizado por Jubileu Sul no Haiti entre 26/10 e 2/11/2006.

https://www.alainet.org/es/node/118699
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