Um dia na morte da justiça britânica
O WikiLeaks, do qual Assange é fundador e editor, expôs os segredos e mentiras que levaram à invasão do Iraque, Síria e Iémen, o papel assassino do Pentágono em dezenas de países, o projecto para a catástrofe de 20 anos no Afeganistão.
- Opinión
A grotesca e criminosa perseguição judicial contra Julian Assange prossegue, e só não caiu ainda por terra porque os grandes media permanecem seus cúmplices. O objectivo dos EUA de julgarem e condenarem um homem que não cometeu qualquer crime – e que nem sequer é cidadão norte-americano – e de o liquidarem numa qualquer das suas prisões fora bloqueado pela sentença de um tribunal britânico recusando a extradição. Voltam à carga, e não lhes faltam servis aliados no corrupto sistema judicial britânico.
Estive ontem no 4º Tribunal do Royal Courts of Justice em Londres com Stella Moris, companheira de Julian Assange. Conheço Stella há tanto tempo como conheço Julian. Ela é também uma voz de liberdade, vinda de uma família que lutou contra o fascismo do Apartheid. Hoje, o seu nome foi pronunciado no tribunal por um advogado e um juiz, pessoas esquecíveis se não fosse o poder do privilégio de que estão investidos.
A advogada, Clair Dobbin, é paga pelo regime de Washington, primeiro de Trump, depois de Biden. É a pistoleira contratada pelos EUA. O seu alvo é Julian Assange, que não cometeu qualquer crime e prestou um serviço público histórico ao expor as acções e segredos criminosos sobre os quais os governos, especialmente aqueles que se dizem democracias, baseiam a sua autoridade.
Para quem possa estar esquecido, o WikiLeaks, do qual Assange é fundador e editor, expôs os segredos e mentiras que levaram à invasão do Iraque, Síria e Iémen, o papel assassino do Pentágono em dezenas de países, o projecto para a catástrofe de 20 anos no Afeganistão, as tentativas por parte de Washington de derrubar governos eleitos, como o da Venezuela, o conluio entre opositores políticos nominais (Bush e Obama) para abafar uma investigação sobre tortura e a campanha Vault 7 da CIA que transformou o seu telemóvel, e até mesmo a sua TV, num espião na sua intimidade.
O WikiLeaks divulgou quase um milhão de documentos da Rússia que permitiram aos cidadãos russos defender os seus direitos. Revelou que o governo australiano se havia conluiado com os EUA contra um seu próprio cidadão, Assange. Nomeou aqueles políticos australianos que “informaram” para os EUA. Fez a conexão entre a Fundação Clinton e a ascensão do jihadismo nos Estados armados pelos norte-americanos no Golfo.
E há mais: WikiLeaks revelou a campanha dos EUA para suprimir salários em países sobre-exploradores como o Haiti, a campanha de tortura da Índia no Caxemira, o acordo secreto do governo britânico para proteger os “interesses dos EUA” no seu inquérito oficial sobre o Iraque e o plano do Ministério das Relações Exteriores britânico para criar um falsa “zona de protecção marinha” no Oceano Índico para vigarizar os ilhéus de Chagos do seu direito à devolução.
Por outras palavras, WikiLeaks deu-nos verdadeiras notícias sobre aqueles que nos governam e nos levam para a guerra, não a versão pré-ordenada e repetitiva que preenche os jornais e os écrans de televisão. Isto é verdadeiro jornalismo; e pelo crime de verdadeiro jornalismo Assange tem passada a maior parte da última década numa ou outra forma de encarceramento, incluindo a prisão de Belmarsh, um lugar horrível.
Diagnosticado com o síndrome de Asperger, é um gentil intelectual visionário impulsionado pela sua convicção de que uma democracia não é uma democracia se não for transparente e escrutinável.
Ontem, os Estados Unidos procuraram a aprovação do Supremo Tribunal da Grã-Bretanha no sentido de ampliar os termos do seu recurso contra a decisão em Janeiro de uma juíza distrital, Vanessa Baraitser, de proibir a extradição de Assange. Baraitser aceitou o profundamente perturbador testemunho de uma série de especialistas segundo o qual Assange estaria em grande risco se fosse encarcerado no infame sistema prisional dos Estados Unidos.
O Professor Michael Kopelman, uma autoridade mundial em neuropsiquiatria, dissera que Assange encontraria maneira de tirar a própria vida - como resultado directo daquilo que o Professor Nils Melzer, relator das Nações Unidas sobre Tortura, descreveu como cobarde “assédio” de Assange por governos - e seus ecos nos media.
Aqueles de nós que estávamos em Old Bailey em Setembro passado para ouvir o testemunho de Kopelman ficamos chocados e comovidos. Estava sentado ao lado do pai de Julian, John Shipton, cuja cabeça estava entre as mãos. O tribunal foi também informado da descoberta de uma lâmina de barbear na cela de Julian em Belmarsh e de que ele havia feito desesperadas chamadas para a organização «Samaritanos», anotações escritas e muito mais, que nos encheram com mais do que tristeza.
Observando principal advogado actuando em nome de Washington, John Lewis - um homem de formação militar que lança uma sarcástica fórmula “aha!” às testemunhas de defesa - reduzir estes factos a “simulação” e difamar testemunhas, especialmente Kopelman, animou-nos a reveladora resposta de Kopelman de que os abusos de Lewis eram “um pouco carecas”, dado que o próprio Lewis tinha procurado contratar a peritagem de Kopelman em outro caso.
A ajudante de Lewis é Clair Dobbin, e ontem foi o dia dela. Cabia-lhe completar o denegrimento do Professor Kopelman. Um norte-americano com alguma autoridade sentava-se atrás dela no tribunal.
Dobbin disse que Kopelman tinha “enganado” a juíza Baraister em Setembro porque não revelara que Julian Assange e Stella Moris eram companheiros e que os seus dois filhos pequenos, Gabriel e Max, tinham sido concebidos durante o período em que Assange se refugiara na embaixada do Equador em Londres.
A implicação era que isto diminuía de alguma forma o diagnóstico médico de Kopelman: que Julian, trancado na solitária na prisão de Belmarsh e enfrentando a extradição para os Estados Unidos sob falsas acusações de “espionagem”, havia sofrido de depressão psicótica severa e planeado, se é que não o tentara já, tirar a própria vida.
Por seu lado, a juíza Baraitser não via qualquer contradição. A natureza completa da relação entre Stella e Julian fora-lhe revelada em Março de 2020, e o Professor Kopelman tinha-lhe feito inteira referência no seu relatório em Agosto de 2020. Portanto, a juíza e o tribunal tinham conhecimento de tudo isso antes da principal audiência sobre extradição em Setembro passado. No seu julgamento em janeiro, Baraitser disse o seguinte:
«[o Professor Kopelman] avaliou o Sr. Assange durante o período de Maio a Dezembro de 2019 e estava na melhor posição para considerar directamente os seus sintomas. Teve grande cuidado em fornecer um informado relato do historial pessoal e psiquiátrico do Sr. Assange. Prestou muita atenção aos registos médicos da prisão e forneceu um resumo detalhado anexado ao seu relatório de Dezembro. É um clínico experiente e estava bem ciente da possibilidade de simulação e fingimento. Não tinha qualquer motivo para duvidar da sua opinião clínica.»
Acrescentou que “não fora enganada” pela exclusão no primeiro relatório de Kopelman da relação Stella-Julian e que entendia que Kopelman estava a proteger a privacidade de Stella e dos seus dois filhos pequenos.
Na verdade, como eu bem sei, a segurança da família estava sob constante ameaça a ponto de um guarda de segurança da embaixada confessar que lhe fora dito para roubar uma das fraldas do bebé para que uma empresa contratada pela CIA pudesse analisar o seu DNA. Tem havido uma série de ameaças não divulgadas contra Stella e seus filhos.
Para os Estados Unidos e seus contratados legais em Londres, prejudicar a credibilidade de um prestigiado especialista sugerindo que ele ter retido essa informação era uma forma - sem dúvida era isso que achava - de resgatar o seu em vias de colapso caso contra Assange. Em Junho, o jornal islandês Stundin relatou que uma testemunha-chave da acusação contra Assange admitira ter fabricado as suas provas. A única acusação de “hacking” que os norte-americanos esperavam apresentar contra Assange se lhe conseguissem deitar a mão dependia dessa fonte e testemunha, Sigurdur Thordarson, um informador do FBI.
Thordarson trabalhara como voluntário para o WikiLeaks na Islândia entre 2010 e 2011. Em 2011, como foram apresentadas várias acusações criminais contra ele, contactou o FBI e ofereceu-se para se tornar informador em troca de imunidade relativamente a todos os processos. Veio a saber-se que ele era um defraudador condenado que desviara US $ 55.000 do WikiLeaks e cumprira dois anos de prisão. Em 2015, foi condenado a três anos por crimes sexuais contra adolescentes. O Washington Post descreveu a credibilidade de Thordarson como o “cerne” do caso contra Assange.
Ontem, Lord Chief Justice Holroyde não mencionou esta testemunha. A sua preocupação era que era “argumentável” que a juíza Baraitser havia atribuído demasiado peso ao testemunho do Professor Kopelman, um homem reverenciado na sua área. Disse que era “muito incomum” um tribunal de apelação ter que reconsiderar o testemunho de um especialista aceite por um tribunal de nível inferior, mas concordou com a Sra. Dobbin que era “enganoso”, embora aceitasse a “compreensível resposta humana” de Kopelman para proteger a privacidade de Stella e das crianças.
Se você puder desvendar a misteriosa lógica disto, tem melhor entendimento do que eu, que acompanhei este caso desde o início. É claro que Kopelman não enganou ninguém. A juíza Baraitser - cuja hostilidade pessoal para com Assange era presente no seu tribunal - disse que não fora enganada; que não era um problema; que não importava. Então, porque é que o Lorde Chefe de Justiça Holroyde tinha de recorrer à sua linguagem de doninha jurídica e mandar Julian de volta para a sua cela e para os seus pesadelos? Lá, ele aguarda agora a decisão final do Tribunal Superior em Outubro - para Julian Assange, uma decisão de vida ou de morte.
E porque Holroyde fez Stella sair do tribunal tremendo de angústia? Porque é este caso “incomum”? Porque lançou ele ao gangue de rufias promotores do Departamento de Justiça de Washington - que tiveram sua grande oportunidade sob Trump, tendo sido rejeitados por Obama - uma boia salva-vidas quando o seu apodrecido e corrupto caso contra um jornalista de princípios se afundava tão seguramente como o Titanic?
Isso não significa necessariamente que em Outubro toda a bancada do Tribunal Superior vá ordenar a extradição de Julian. Nas instâncias superiores da maçonaria que é o sistema judiciário britânico há, segundo creio, ainda quem acredite na lei verdadeira e na justiça verdadeira, da qual o termo “justiça britânica” obtém a sua santificada reputação na terra da Magna Carta. Depende agora dos seus ombros revestidos de arminho se essa história continua viva ou morre.
Sentei-me com Stella na colunata do tribunal enquanto ela rascunhava palavras para dizer à multidão dos media e dos simpatizantes no exterior, sob o sol. Passou Clair Dobbin, batendo os tacões dos sapatos, enfeitada, o rabo de cavalo balançando, carregando a sua caixa de ficheiros: uma figura convicta: ela que disse que Julian Assange “não estava doente” a ponto de considerar o suicídio. Como o sabe ela?
A Sra. Dobbin empreendeu o seu caminho através do labirinto medieval em Belmarsh para se sentar junto a Julian com a sua braçadeira amarela, como fizeram os professores Koppelman e Melzer, e Stella fez, e eu fiz? Esqueçam. Os norte-americanos “prometeram” agora não o colocar num inferno, tal como “prometeram” não torturar Chelsea Manning, tal como prometeram…
E leu ela a divulgação pelo WikiLeaks de um documento do Pentágono datado de 15 de Março de 2009? Predizia a actual guerra contra o jornalismo. Os serviços de informações dos EUA, dizia, pretendia destruir o “centro de gravidade” do WikiLeaks e de Julian Assange com ameaças e “processos criminais”. Leia todas as 32 páginas e não terá dúvidas de que o objectivo era silenciar e criminalizar o jornalismo independente, e difamar era o método para o conseguir.
Tentei captar o olhar da Sra. Dobbin, mas ela estava de abalada: tarefa cumprida.
Lá fora, Stella lutava para conter a emoção. É uma mulher corajosa, tal como o seu homem é efectivamente um exemplo de coragem. “O que não foi discutido hoje”, disse Stella, “é porque temo pela minha segurança e pela segurança dos nossos filhos e pela vida de Julian. As constantes ameaças e intimidações que suportamos durante anos, que nos vêm aterrorizando e vêm aterrorizando Julian desde há 10 anos. Temos o direito de viver, temos o direito de existir e temos o direito de que este pesadelo acabe de uma vez por todas.”
Fonte: https://www.counterpunch.org/2021/08/13/a-day-in-the-death-of-british-ju...
16.Ago.21
https://www.odiario.info/um-dia-na-morte-da-justica/
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