Candinhos: ofícios precarizados e periféricos do nosso tempo.

A uberização é fruto de décadas de eliminação de direitos, da dispersão global e, ao mesmo tempo, centralizada de cadeias produtivas e do desenvolvimento tecnológico.

19/05/2020
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Há um conto de Machado de Assis, “Pai contra Mãe”, cujo personagem principal chama-se Cândido Neves, conhecido como Candinho. Um rapaz que “tinha um defeito grave (…) não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade”. Candinho tentara a tipografia, o comércio, cartório, carteiro, caixeiro… e por fim, como pretendia casar, contentou-se em adotar a profissão de “caçador de escravos fugidos”. Machado de Assis escreve que “pegar escravos fugidios era um ofício do tempo”.

 

Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem (MACHADO DE ASSIS, 2000).

 

Numa sociedade de proprietários de terras e de propriedades, os escravos, Candinho não era nem uma coisa, nem outra. Era livre, mas não era proprietário. Portanto, encontrava-se às margens desta sociedade. Não estava no centro da contradição, nem no centro da sociedade, mas à margem. No sentido de que estava no último limite em pertencer ou não a esta sociedade.

 

Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o homem livre, na verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários seu acesso à vida e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm (SCHWARZ, 1977, p.3).

 

Candinho está fora da “oficialidade”, do que é “formal”, mas é parte do sistema, parte necessária para seu funcionamento. Alguém tem que caçar escravos fugidos. Candinho também é um “trabalhador intermitente”, já que caçar escravos “não obrigava a estar longas horas sentado”.

 

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como máscaras de flandres, escreve Machado de Assis na primeira linha do conto. O capitalismo por sua vez é prodígio em construir outras máscaras. Sejam máscaras que ocultam as aparências, sejam outras máscaras de controle. Trabalhadoras e trabalhadores como Candinhos, marginais nas contradições centrais da relação capital e trabalho, mãos de obras não qualificados, não ficaram no século XIX, ao contrário, são apresentados como o futuro do trabalho no século XXI.

 

Um salto em direção ao futuro: nos últimos anos, tem se utilizado o termo 4ª Revolução Industrial para definir o impacto da mecanização, automação e robótica sobre a organização produtiva do sistema capitalista, expresso especialmente na adoção em escala de inteligência artificial, robótica, internet das coisas, veículos autônomos, impressão em 3D, nanotecnologia, biotecnologia, armazenamento de energia e computação quântica. Como lembra Abílio (2020), ao longo da história, os processos de reestruturação produtiva implementados pelas organizações têm levado a uma abrangente e profunda desestruturação do mundo do trabalho, onde as empresas, ao mesmo tempo, que reduzem seu quadro de pessoal, perdem a capacidade de gerar novos empregos e de absorver a força de trabalho disponível.

 

O avanço tecnológico da Revolução Digital pode levar esse movimento às últimas consequências: o capitalista não necessita ter nenhum trabalhador diretamente vinculado na forma clássica para realizar sua produção. Essa se dá por meio de produção à distância, em que é deslocada para as mãos de intermediários em qualquer lugar do planeta. No setor de serviços, que é o que mais cresce nas sociedades desindustrializadas, observa-se o ápice do movimento: empresas realizam sua atividade econômica aparentemente sem empregar ninguém, o que só é possibilitado pela Internet e poderosos processadores de algoritmos (ABÍLIO, 2020).

 

Por sua vez, o desenvolvimento tecnológico jamais é neutro, autônomo ou independente. O acelerado desenvolvimento técnico e tecnológico dos últimos séculos é resultante diretamente da necessidade do capitalismo em produzir ininterruptamente mercadorias buscando incessantemente a redução de seus custos e a obtenção de mais lucros. De forma mais simplista, todo aplicativo ou tecnologia tem por trás uma fonte de financiamento ou a lógica do mercado a sua frente. Logo, o desenvolvimento tecnológico corresponde às demandas estabelecidas pelo centro dinâmico da economia e, desde a década de 1970, este centro dinâmico é ocupado pela financeirização.

 

Esta dinâmica do capital é, cada vez mais, especulativa – rende muito mais investir nos cassinos financeiros das bolsas do que abrir um empreendimento produtivo – porque movimenta recursos abstratos ou que se distanciam cada vez mais da base real e, portanto, parasitário. Ou seja, ao mesmo tempo que precisa consumir com agilidade, cada vez menos investe em produção real de mercadorias, que por sua vez geraria empregos, que por sua vez gerariam consumo. Ao contrário, o sistema aposta na especulação improdutiva. O que gera um paradoxo e um problema estrutural. Uma crise do sistema causada pelo próprio sistema.

 

Assim, há um movimento global de redução e extinção de direitos trabalhistas que não é decorrente das mudanças tecnológicas, mas complementar a elas; que são demandadas como forma de recuperar as perdas de taxas de lucro do capital, em especial desde 2008, e convertê-las em recursos para a ciranda financeira. No caso brasileiro, o país fez o maior número de reformas estruturais e liberais em menor tempo no continente – desde o golpe de 2016 já foram a reforma trabalhista, a previdência, a reforma do ensino médio, o teto de gastos – e como resultado, a taxa de informalidade subiu de 38,8% em 2016 para 41,4% neste ano. Ao mesmo tempo, esta redução de direitos e precarizações, mantêm ativo o exército industrial de reserva que pressiona os salários num patamar abaixo do necessário.

 

Tomando a uberização como exemplo, Ludmila Abílio (2020) sistematiza: ainda que apresentada como uma nova forma de organização, gerenciamento e controle do trabalho, a uberização é fruto de décadas de eliminação de direitos, da dispersão global e, ao mesmo tempo, centralizada de cadeias produtivas – aliadas à liberalização de fluxos financeiros e de investimento – e do desenvolvimento tecnológico. A uberização também caracteriza-se por tornar global e visível características de exploração do trabalho que já eram predominantes no sul global, como demonstra as pesquisas anteriores de Ludmila Abílio sobre vendedoras de cosméticos e motoboys1. No caso das revendedoras de cosméticos, a flexibilidade do trabalho da revendedoras “fora da fábrica” – cuja relação com a fornecedora se estabelece não por contrato, mas por boleto – está vinculada com produção controlada “dentro da fábrica”, onde o fluxo dos pedidos pauta de forma automatizada o que será produzido, em que tempo, em qual quantidade. A empresa trabalha com baixos níveis de estoque e alta taxa de inovação (ABÍLIO,2020).

 

As fronteiras borradas entre o que é e o que não é tempo de trabalho; o que é espaço da casa e o que é espaço do trabalho; o que é trabalho e o que não é; o que é trabalho remunerado e o que não é, são elementos que estruturam de diferentes maneiras o emprego doméstico, o trabalho em domicílio e o trabalho reprodutivo. A novidade é que tais elementos estão subordinados a uma empresa, que opera com essas indistinções de modo organizado, administrado e produtivo. Ou seja, esses elementos são gerenciados na transformação da atividade da multidão em informação que pauta a linha de produção (ABILIO,2020).

 

O mote do filme “Os suspeitos” (1995) era de que “O maior truque que o Diabo já fez foi convencer o mundo de que ele não existia”. A uberização realiza este truque ao ocultar o “patrão” e a “exploração” através da mediação do aplicativo, de desmaterializá-lo sob o discurso de que o trabalhador é senhor de seu tempo e de sua produção. Porém, ao contrário, as políticas de metas e bônus, além da ação efetiva do algoritmo, demonstram que os requisitos básicos da relação entre empregador e empregado permanecem: controle e dependência.

 

Altera-se a formatação, mas resta a natureza: a) de um lado as pessoas, travestidas em realidades intersubjetivas denominadas empresas, que detêm capital para investir na produção e serviços e b) do outro lado os demais indivíduos que têm somente o trabalho a ser utilizado e apropriado por essas realidades intersubjetivas para a realização de sua atividade econômica. A exploração dos segundos pelos primeiros continua a mesma (MPT,2018, p.35).

 

Esta precarização e controle são possíveis porque são justificadas pela publicização massiva da ideia do “empreendedorismo”. Basicamente a ideologia do empreendedorismo – misto de auto-ajuda com pregação neopentecostal em que o pastor é substituído pela figura do coach – vende a ideia de que a pobreza é causada pela (falta de) vontade (em enriquecer) e que basta a livre iniciativa individual2. A ideologia do empreendorismo glamouriza tanto a precarização do trabalho, quanto a desindustrialização.

 

Na prática, não há liberdade alguma na atividade. O algoritmo das empresas de transporte, como Uber, determinam e distribuem os motoristas e as demandas de maneira que mantenham baixos os preços dos serviços em relação aos concorrentes. Desta forma, também calculam antecipadamente quanto os trabalhadores receberão por hora. Com uma tarifa e remuneração mais baixa, os motoristas (ou entregadores) são obrigados a ampliar a jornada de trabalho. Segundo pesquisa do Ministério Público do Trabalho (2018), uma destas empresas calcula que o trabalhador, em condições ótimas, com 44 horas semanais de trabalho, receberá 1,2 salário mínimo.

 

Em síntese, independente da velocidade com que se produzem as transformações nas formas de produção, mantêm-se a essência do sistema capitalista: a venda de força de trabalho por quem só é possuidor dela3 apropriado por detentores dos meios de produção, neste caso, “ecossistema algorítmico processado em gigantescos servidores, e que gerencia o sistema de marketing e proteção perante o Estado (CARELLI,2018).

 

Obviamente, a precarização impõe dificuldades para ação política dos trabalhadores e trabalhadoras. O individualismo e a concorrência entre as forças de trabalho são intrínsecos ao capitalismo e parte de sua engrenagem, em especial nas economias periféricas onde o exército industrial de reserva é condição determinante para manter rebaixados os índices salariais. Da mesma maneira, a divisão dentro das categorias – o motorista de Uber Black em relação ao motorista comum, por exemplo – também não é novidade ou ainda variações do trabalho de gerencia nas vendas de cosméticos e suplementos alimentares em sistemas similares a pirâmides.

 

Porém, se a fábrica reunia e concentrava os trabalhadores e trabalhadoras desde o século XIX, se era espaço de trabalho e de organização, este território se “desmaterializa” nas “fronteiras borradas” entre o profissional e o doméstico. Mas, principalmente, a uberização, a 4.ª revolução ou como quer que chamemos elimina os processos de cooperação e sociabilidade que se estabeleciam a partir do espaço de trabalho. A ausência de um espaço comum ou padronizado de encontro inviabiliza a ação política de – juntamente com a reunião e a cooperação – ser colocado em movimento e elevar a consciência pela ação.

 

Paradoxalmente, justamente porque a precarização não é um fenômeno novo – ao contrário , o trabalho precarizado sempre foi a regra no capitalismo – o que há de novo, tomando a história do capitalismo como um todo, são os direitos trabalhistas, conquistas, em sua maioria, da segunda metade do século XX. E são resultados direto da força e da ação do movimento de trabalhadores no século passado. Diante do enfraquecimento destas ferramentas, em especial do movimento sindical, é previsível que o capitalismo realizaria uma ofensiva para retirá-los.

 

Portanto, a precarização através de novas formas de contrato de trabalho impõe três tarefas para a ação política. Primeiro, em nível reivindicatório, é necessário superar a ação limitada a defesa apenas daqueles que conseguem alcançar um contrato regido pela CLT. A alta formalização dos empregos da primeira década dos anos 2000 foi sucedida por um profundo ataque a esta forma de contrato pela Reforma Trabalhista de 2016. A defesa dos trabalhadores formais, por partidos e sindicatos, reduz seu escopo a menos de 50% da população de trabalhadores. Ao mesmo tempo, pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2019) com domésticas, manicures, ambulantes, motoboys, trabalhadores e trabalhadoras de confecções e construção civil revela pouca familiaridade ou interesse destes setores em adotarem trabalhos formais.

 

A pauta de reivindicações deveria exigir a proteção do trabalhador através de políticas que não fossem determinadas pela forma de contrato, portanto, universais e adaptáveis a inovação, desvinculando o recebimento de benefícios sociais da condição de empregado, como a renda básica universal, mas da mesma maneira com políticas previdenciárias e assistenciais.

 

O segundo desafio é organizativo. De maneira que também os sindicatos precisariam alargar sua abrangência de associação para além dos empregados e para os trabalhadores e trabalhadoras de outras formas de contrato. Se a premissa de que a precariedade e a lata exploração são intrínsecos ao modo de funcionamento do capital, é verdeiro então que trabalhadores e trabalhadoras, em condições iguais ou piores de trabalho, encontrarão formas de lutas e organização, eficientes o suficiente para combater a precariedade e transformá-la seu oposto em direitos.

 

A capacidade de se solucionar este dois desafios está diretamente ligado ao terceiro, ideológico. Ao final do conto de Machado de Assis, Candinho está casado e tem um filho cujas rendas temporárias dele, da esposa e da tia não conseguem sustentar. O caçador de escravos, o pai, está prestes a abandonar o filho na “roda dos ejeitados”, quando identifica, persegue e captura uma escrava grávida, a mãe. Apesar dos apelos, Candinho entrega a escrava ao seu proprietário. O pai contra mãe, no conto e na lógica periférica, é do pobre contra pobre. “Nem todas as crianças vingam” conclui Candinho, satisfeito em salvar a sua ao custo de outra vida.

 

Precarizados, periféricos e altamente bombardeados por um discurso individualista em que o empreendedorismo ganha dimensões religiosas, o Candinho deste tempo também pode ser recrutado para saídas autoritárias. Não a toa, no filme “Quanto vale ou é por kilo” (2005), que combina o conto de Machado de Assis com registros da escravidão e uma crítica contemporânea, o Candinho moderno se torna miliciano, caça menores e pequenos assaltantes para manter a ordem na periferia. A história contemporânea mais recente demonstra que a melhoria das condições materiais descoladas de mudanças ideológicas resultam em posições conservadoras – como a doutrina da “nova classe média” que enalteceu a capacidade do consumo e a propriedade como valores e prova de realização individual. É preciso que Candinho entenda que todas as crianças tem direito a vingar. E para isso é preciso retirá-lo da fragmentação do espaço temporal para o espaço da cooperação. E isso é possível se lhe ofereçam um programa que permita sua identificação e o coloque em movimento.

 

Referências Bibliográficas

 

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Plataformas digitais e uberização: Globalização de um Sul administrado?. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 12-26, abr./jul. 2020.

ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. Os cem melhores contos brasileiros do, 2000.

CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Trabalho no século XXI: as novas formas de trabalho por plataformas. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/trabalho-no-seculo-xxi-as-novas-formas-de-trabalho-por-plataformas-30072018.Acessado em 07/05/2020.

FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Trajetórias da informalidade no Brasil contemporâneo. 2019.

OITAVEN, Juliana Carreiro Corbal; CARELLI, Rodrigo de Lacerda; CASAGRANDE, Cássio Luís. Empresas de transporte, plataformas digitais e a relação de emprego: um estudo do trabalho subordinado sob aplicativos. Brasília: Ministério Público do Trabalho, 2018.

SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. Ao vencedor as batatas, v. 5, p. 9-31, 1977.

 

1 Assim como corporações como o McDonalds já operavam, desde a década de 1970, com controle e subordinação de fornecedores e trabalhadores, com controle e padronização do tempo da produção, da distribuição e dos preços, combinada com a alta precarização do trabalho.

2 O sucesso da livre iniciativa depende do cumprimento de ritos que beiram o charlatanismo, como acordar as 4 da manhã, tomar café quântico e submeter-se a uma jornada de trabalho interminável.

3 Carros, motocicletas, bicicletas são ferramentas e não meios de produção, assim como muitas vezes entregadores de plataformas recorrem ao aluguel de bicicletas e patinetes igualmente em serviços de plataforma ou motoristas que alugam seus automóveis para trabalharem nos aplicativos de transporte.

 

maio 19, 2020

https://www.front.org.br/2020/05/19/candinhos-oficios-precarizados-e-perifericos-do-nosso-tempo/

 

https://www.alainet.org/en/node/206656
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