A acusação contra Julian Assange pelo governo dos EUA representa uma grave ameaça à liberdade de expressão
A prisão de Assange é claramente a culminância de dois anos de esforços do governo dos EUA para coagir o Equador a suspender o asilo diplomático.
- Opinión
O conteúdo da acusação contra Julian Assange, revelado nessa semana pelo Departamento de Justiça de Trump, representa grande ameaça à liberdade de imprensa, não apenas nos EUA, mas em todo o mundo. O documento de denúncia, acompanhado do pedido de extradição pelo governo dos EUA, que foi usado pela polícia do Reino Unido para prender Assange tão logo o Equador suspendeu oficialmente o asilo diplomático, pretende criminalizar diversas atividades que fazem parte da essência do jornalismo investigativo.
Muito do que foi noticiado sobre essa acusação é falso. Dois fatos, em especial, foram completamente distorcidos pelo Departamento de Justiça dos EUA (DOJ), e então noticiados equivocadamente por diversas organizações de mídia.
O primeiro fato crucial a respeito da denúncia é que a sua principal acusação, de que Assange não apenas teria recebido de Chelsea Manning os documentos confidenciais, mas teria tentado ajudá-la a quebrar uma senha para esconder seus rastros, não é novidade. O DOJ de Obama já detinha esse conhecimento de longa data, e isso foi explicitamente mencionado no julgamento de Manning. O DOJ de Obama, no entanto – embora não fosse exatamente famoso pela fiel defesa da liberdade de imprensa – concluiu que não poderia processar Assange criminalmente, e não iria fazê-lo, pois apresentar denúncia contra ele representaria graves ameaças à liberdade de imprensa. Em resumo, a acusação de ontem não contém nem provas, nem fatos novos sobre as ações de Assange. Tudo ali já era conhecido há anos.
O outro fato essencial que está sendo objeto de diversas notícias equivocadas é que a denúncia apresentada acusaria Assange de tentar ajudar Manning a obter acesso a bancos de dados de documentos aos quais ela não teria acesso válido: ou seja, uma atividade de hacker, não de jornalista. O documento de denúncia, porém, não alega nada semelhante. Na verdade, Assange é diretamente acusado de tentar ajudar Manning a se conectar aos computadores do Departamento de Defesa empregando um nome de usuário diferente, para que ela pudesse manter seu anonimato enquanto fazia o download de documentos de interesse público e os encaminhava ao WikiLeaks para publicação.
Em outras palavras, a denúncia pretende criminalizar aquilo que não apenas é permitido aos jornalistas, mas também representa um requisito ético de sua atividade: tomar medidas para preservar o anonimato das fontes. Como descreveu o ex-advogado de Assange, Barry Pollack: “as alegações factuais (…) se resumem ao encorajamento de uma fonte a fornecer informação e à tomada de medidas para proteger a identidade dessa fonte. Jornalistas de todo o mundo deveriam estar profundamente perturbados por essas acusações criminais sem precedentes.”
É por isso que a acusação representa uma ameaça tão grave à liberdade de imprensa. Ela caracteriza como condutas criminosas diversas ações que os jornalistas não apenas podem, mas devem tomar para praticar uma atividade jornalística sensível na era digital.
Os veículos de mídia, porém, repercutiram sem pensar a manchete do comunicado de imprensa do DOJ, que alegava que Assange estaria sendo acusado por condutas criminosas de “hacker”, muito embora a denúncia não contenha nenhuma acusação nesse sentido. Assange está sendo acusado simplesmente de tentar ajudar Manning a escapar da identificação. Isso não é “hackear”, é simplesmente uma obrigação fundamental do jornalismo.
O histórico do caso é vital para a compreensão do que efetivamente aconteceu. O governo dos EUA está determinado a indiciar Julian Assange e o WikiLeaks pelo menos desde 2010, quando o grupo publicou centenas de milhares de documentos de guerra e telegramas diplomáticos que revelavam inúmeros crimes de guerra e outros atos de corrupção cometidos pelos EUA, pelo Reino Unido e por outros governos de todo o mundo. Para atingir esse objetivo, o DOJ do período Obama convocou um júri em 2011 e conduziu uma investigação aprofundada sobre o WikiLeaks, Assange e Manning.
Em 2013, porém, o DOJ de Obama concluiu que não poderia acusar criminalmente Assange pela publicação dos documentos, porque não havia forma de distinguir o que o WikiLeaks fazia daquilo que o New York Times, o Guardian e diversos veículos de mídia do mundo inteiro fazem regularmente: a saber, trabalhar com fontes para publicar documentos confidenciais.
O DOJ de Obama tentou por muitos anos encontrar provas que justificassem a alegação de que Assange teria extrapolado a atuação de jornalista – que ele teria, por exemplo, atuado ilegalmente com Manning para roubar os documentos. Não conseguiram encontrar nada que justificasse a acusação, no entanto, e por isso nunca apresentaram denúncia contra Assange (como já foi mencionado, o DOJ de Obama já conhecia pelo menos desde 2011 a principal alegação da acusação de ontem, de que Assange teria tentado ajudar Manning a contornar um bloqueio de senha para usar outro nome de usuário, porque isso fazia parte das acusações contra Manning).
Obama, então, passou oito anos no poder sem ingressar com ação penal contra Assange ou o WikiLeaks. Mas todo o cenário referente à possível denúncia de Assange mudou desde o início do governo Trump. A partir do começo de 2017, os mais reacionários correligionários de Trump estavam determinados a fazer o que o DOJ sob Obama havia se recusado a fazer: acusar Assange pela publicação dos documentos de Manning.
Como o New York Times noticiou no ano passado, “logo depois de assumir o cargo de diretor da CIA, [o atual Secretário de Estado] Mike Pompeo informou reservadamente aos legisladores sobre o novo alvo dos espiões americanos: Julian Assange, fundador do WikiLeaks.” O Times ainda acrescentou que “Pompeo e o ex-Procurador Geral Jeff Sessions desencadearam uma campanha agressiva contra Assange, revertendo um posicionamento do governo Obama de que o WikiLeaks seria uma entidade jornalística”.