A dívida externa dos EUA e a guerra no Iraque

21/03/2003
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Enquanto o Brasil paga sua dívida externa com recessão, desemprego e exportações, os EUA pagam a sua apenas com a manutenção de um mito: o dólar como moeda forte. Mito este defendido, se necessário, pela força das armas. Os EUA são um gigante com pés de barro. Desde o início da década de 1970, os Estados Unidos apresentam déficit na sua balança comercial, ou seja, compram muito mais bens do exterior do que vendem. Somente em 2001, os americanos gastaram com importações US$ 427 bilhões a mais do que ganharam com as suas vendas ao exterior, valor este equivalente a quase um PIB brasileiro (tudo que o país produz durante um ano). De 1975 a 2001, os americanos acumularam um rombo em sua balança comercial de nada menos que US$ 3,653 trilhões (veja a tabela Excel que segue anexa - enviada apenas para as listas de discussão que comportam anexos). Atualmente, os gastos com petróleo respondem por boa parte deste rombo, uma vez que os EUA importam mais de 60% do combustível que consomem. As remessas de estrangeiros residentes nos EUA para suas famílias também somaram uma quantia expressiva no período: US$ 663 bilhões. Mas como os EUA conseguem cobrir todos os seus rombos com o exterior, que, somados, representaram quase US$ 5 trilhões nestes 27 anos? Um importante meio de conseguir isto é através da atuação das multinacionais americanas, que, de 1975 a 2001, enviaram para seu país de origem lucros de nada menos que US$ 1,3 trilhão. Por esta razão, os americanos se esforçam tanto em impor acordos comerciais como a ALCA, que protegerá os investimentos de suas multinacionais em outros países, mesmo que esses últimos se sintam prejudicados por estes investimentos. Outro meio que os americanos utilizam para cobrir este rombo é a venda de serviços para o exterior, que acumularam US$ 945 bilhões no período, sendo US$ 339 bilhões apenas com direitos de patentes. Por este motivo, os americanos também se esforçam tanto em aprovar acordos comerciais que disponham sobre serviços e propriedade intelectual, itens estes também incluídos na ALCA. Mas como os EUA têm coberto os mais de US$ 2 trilhões restantes do seu rombo com o exterior? Aí está a chave do "sucesso" americano. Caso o FMI aplicasse aos EUA o seu tradicional receituário de ajuste das contas externas, imposto a todos os países em desenvolvimento (como o Brasil), mandaria Bush aumentar suas taxas de juros para mais de 20% ao ano (para atrair dinheiro para financiar o país), arrochar os salários dos americanos para desviar a produção americana para as exportações, cortar gastos públicos (por exemplo, tirando dos trabalhadores o direito à aposentadoria) para pagar a dívida, etc. O que levaria os EUA a uma crise sem precedentes, dado o tamanho de seu déficit externo. Mas não. Os EUA receitam para o 3o Mundo, através do FMI, um remédio que jamais tomariam. Então, como eles cobrem o seu enorme rombo? Apenas com a manutenção de um mito: o dólar forte. Mantendo este mito, os americanos podem receber financiamentos externos, atraídos pela suposta "segurança" das suas oportunidades de investimento, pagando juros baixíssimos. De 1975 a 2001, os EUA receberam a mais do que enviaram, na forma de empréstimos, investimento direto e em carteira, a bagatela de US$ 2,538 trilhões. Não por coincidência, hoje, a dívida externa líquida americana é de US$ 2,7 trilhões, a maior do mundo. E é isso, apenas isso, que há quase 30 anos mantém em pé o gigante com pés de barro. O mundo paga a conta do crescimento americano: o primeiro mundo emprestando dinheiro, e nós, no terceiro mundo, pagando os escorchantes juros da dívida eterna. Desde 1944, quando foi prometido pelo governo americano que cada dólar seria conversível em quantidade fixa de ouro, o dólar funciona como moeda utilizada para trocas internacionais, com os diversos países do mundo mantendo, preponderantemente, esta moeda em seus bancos centrais para a realização de transações com o exterior (exportações, remessas de lucros, juros, etc). Apesar desta promessa ter sido radicalmente descumprida em 1971, os EUA tramaram muito bem seu golpe. Quando esse país começou a imprimir mais dólares que a quantidade correspondente de ouro - o que representou o maior calote da história da humanidade - a maioria dos investidores do mercado financeiro internacional já tinha em seu poder aplicações em dólar, como títulos da dívida americana, por exemplo. De forma que não seria interessante a eles se desfazerem destas aplicações, nas quais detinham toda a sua riqueza. Se o fizessem, o preço do dólar cairia drasticamente, levando-os à ruína. Por este motivo, a credibilidade no dólar permanece a Outro fator que mantém o dólar como moeda internacional são os constantes ataques especulativos contra as moedas dos demais países (principalmente os em desenvolvimento), que criam a necessidade dos bancos centrais comprarem grandes quantidades de "moeda forte" - isto é, o dólar - para se defenderem, valorizando ainda mais essa moeda. Assim, a credibilidade da moeda americana é realimentada como uma bola de neve. Portanto, hoje, a única coisa que mantém os EUA de pé é a falsa credibilidade de sua moeda, ameaçada agora pelo Euro, a moeda única adotada por todos os países mais desenvolvidos da Europa, com exceção da Inglaterra. Recentemente, vários países começaram a trocar os dólares de suas reservas internacionais por Euros, como a China e o Irã (que trocou a maioria de suas reservas por Euros), enquanto membros do governo Russo cogitam em fazer o mesmo. O que ocasiona a desvalorização do dólar e a valorização do euro (devido à velha lei da oferta e da procura), ainda mais incentivada pelo estouro da "bolha" das falsas expectativas de lucros das empresas americanas em 2002. Com a credibilidade da moeda americana em baixa, e o surgimento de uma nova moeda aceita em trocas internacionais, os investidores estão deixando os EUA e se dirigindo à Europa. Em 2000, o Iraque, que possui a segunda maior reserva de petróleo do mundo, também trocou suas reservas por Euros, o que obrigou os americanos a comprarem a moeda européia para importar petróleo iraquiano. Esta iniciativa do Iraque pode ser um primeiro passo para a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) adotar, como única moeda aceita na compra de petróleo, o Euro, o que pode ser o tiro de misericórdia contra os EUA. Caso isto ocorra, os EUA teriam de comprar euros para importar petróleo, vendendo maciças quantias de dólares no mercado internacional, derrubando a cotação de sua moeda e valorizando drasticamente o euro. Os bancos centrais dos diversos países seriam também obrigados a converter suas reservas internacionais por euros, para poderem importar petróleo, e o mito do dólar forte cairia completamente por terra. Mas os problemas dos EUA não parariam por aí. Atualmente, se o dólar se desvaloriza frente a outras moedas, os EUA continuam pagando o mesmo por um barril de petróleo, já que o preço do produto está denominado em dólares. Porém, se for adotado o padrão Euro para o preço deste combustível, qualquer desvalorização do dólar fará com que os americanos tenham de se comportar como qualquer país subdesenvolvido: tenham de pagar mais pelo produto. Hoje, os EUA somente dispõem de um último recurso para reverter este situação: a força militar. Por isto, tentam utilizá-la de qualquer forma no Iraque, se necessário passando por cima da ONU e de muitos países, para reverter a opção de Saddam Hussein pelo euro, e ali instalar uma forte base militar, que poderia entrar em ação caso outros países da OPEP quiserem seguir o exemplo do Irã e do Iraque. Mas o objetivo final americano é minar o poder da OPEP, evitando que esta adote o Euro. Como isso ocorreria? Hoje, a OPEP produz 25 milhões de barris por dia, e o Iraque, apenas 2, pois produz muito abaixo de suas capacidades. Caso os EUA dominem o Iraque, esse último poderia aumentar sua produção para 7 milhões de barris diários, ocasionando a perda de controle da OPEP sobre a produção mundial de petróleo. Ao mesmo tempo, os EUA teriam 44 anos de petróleo gratuito, que supriria metade de seu consumo, e o preço do produto no mercado internacional cairia fortemente, o que resolveria em grande parte o problema do rombo nas contas externas americanas, dando sobrevida aos EUA e a suas empresas, que teriam seus custos de produção fortemente reduzidos. Mas o que tudo isso tem a ver com a nossa dívida externa? Na hipótese dos EUA precisarem de se financiar para a guerra, ou mesmo no caso deles não conseguirem manter o dólar como moeda internacional, a ameaça é que esses repitam o que fizeram no final da década de 70, repassando os custos da crise do petróleo aos países em desenvolvimento: multipliquem a níveis estratosféricos sua taxa de juros, e rebaixem os preços dos produtos exportados pelo 3o Mundo, violando mais uma vez o Direito Internacional, na tentativa de estancar a sangria de capital e proteger sua moeda. Porém, o momento não é de previsões, mas de ação. Na verdade, tudo dependeria, como sempre, da nossa capacidade de nos articularmos politicamente, condenando a guerra, e as altas unilaterais das taxas de juros pelos EUA. Talvez assim nossa dívida se evapore com o dólar. * Rodrigo Ávila. Auditoria Cidadã da Dívida. Campanha Jubileu Sul
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