CELAC defende projetos para autossuficiência em vacinas na América Latina e criação de fundo contra desastres climáticos

O evento também defendeu a criação de uma agência especial latina, a busca de mecanismos de financiamento equitativo, a promoção do comércio intrarregional, a segurança alimentar e o intercâmbio tecnológico e cultural.

22/09/2021
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Terminou neste fim de semana, na Cidade do México, a VI Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da CELAC (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), onde as diferenças ideológicas não impediram uma formalização de uma resolução pragmática: 31 governos de países da região chegaram a um acordo de 44 pontos que inclui um plano de autossuficiência em saúde e uma posição comum perante os países desenvolvidos que estão causando a crise climática. Inclui também uma declaração conjunta contra o bloqueio econômico à Cuba e a favor da soberania argentina sobre as Ilhas Malvinas.



Além disso, a resolução também fala em criar uma agência espacial latino-americana, a criação de um fundo regional para desastres naturais, a busca de mecanismos de financiamento equitativo, a promoção do comércio intrarregional, a segurança alimentar e o intercâmbio tecnológico e cultural – este último, a partir da criação de um Instituto Ibero-Americano de Línguas Indígenas.



O plano estabelecido nessa resolução visa formar um bloco político e econômico fortalecido, que possa ter um diálogo diferente com países poderosos (Estados Unidos e Canadá, União Europeia ou gigantes asiáticos). Por exemplo, no caso da saúde, o plano pretende prevenir a região contra o acúmulo de vacinas nos países mais ricos em uma eventual futura pandemia. “Se algo nos levou a nos unir e colocar as diferenças de lado, foi a pandemia (do coronavírus)”, explicou o chanceler do México, Marcelo Ebrard, anfitrião da cúpula.



“A América Latina tem mais mortes por covid do que qualquer outra região do mundo. A pandemia tem sido trágica para toda a região, e é muito difícil conseguir vacinas. Na verdade, há países que ainda não possuem vacinas. É uma situação injusta e abusiva, que tantos países não tenham acesso (à vacina)”, disse o chanceler.



A ameaça ambiental



Mas o covid-19 não é a única ameaça que a região tem. Em todas as intervenções dos representantes dos estados houve uma constante: o alerta sobre os efeitos devastadores que a crise climática, gerada pela industrialização dos países desenvolvidos, vem mostrando na região da América Latina.



“Todos os anos, nós construímos as mesmas pontes, todos os anos nós reconstruímos as mesmas estradas, todos os anos nós temos que sofrer com os danos causados pelas mudanças climáticas, sendo que a região da América Central é uma das que menos produz gases do efeito estufa, e ainda produz uma grande quantidade de oxigênio para o mundo através das nossas florestas”, comentou o presidente da Guatemala, Alejandro Giammattei.



Sua afirmação ecoou em praticamente todos os países da América Central e do Caribe, onde os desastres naturais triplicaram nas últimas três décadas, incluindo furacões e tornados, terremotos e erupções vulcânicas.



A outra grande preocupação dos líderes da região são os efeitos econômicos derivados da pandemia e da crise ambiental. Por isso as discussões políticas e as reivindicações mais polêmicas da reunião de cinco horas acabaram não sendo traduzidas no documento final, que foi aprovado com o consenso de todos os países participantes.



Produzir o que consumimos



A CELAC é uma organização que reúne 32 países da América Latina e do Caribe. Foi criada em 2010 como alternativa à OEA (Organização dos Estados Americanos), para permitir a integração e o diálogo na região sem a influência e a intervenção dos Estados Unidos e do Canadá. Em janeiro de 2020, o governo de Jair Bolsonaro anunciou a retirada do Brasil da CELAC, sob o argumento de que “defendia regimes não democráticos”.



Em seu discurso, na abertura do encontro, o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador reiterou o objetivo que havia manifestado no dia 24 de julho, por ocasião do aniversário de nascimento de Simón Bolívar: o de construir no continente americano “algo semelhante ao que era a comunidade econômica que deu origem à atual União Europeia”.



“Este ideal poderia se tornar realidade se pensarmos e concordarmos em três questões básicas: não intervenção e autodeterminação dos povos, cooperação para o desenvolvimento e ajuda mútua no combate à desigualdade e à discriminação”, insistiu.



López Obrador também falou sobre a necessidade de “que nenhum governo acredite ter o direito de subjugar outro país por qualquer motivo, causa ou pretexto, seja pelo uso do dinheiro, da propaganda, de sanções econômicas e diplomáticas, ou pelo uso da força”.



Sobre controvérsias relativas à democracia e os direitos humanos, o mandatário mexicano defendeu que elas sejam resolvidas a pedido das partes envolvidas, “em instâncias verdadeiramente neutras, criadas pelos países da região”.



Ele propôs a construção de um acordo com os Estados Unidos e Canadá para fortalecer o mercado interno na América, que atualmente apresenta déficit, em comparação ao que existe na Europa e na Ásia – porém, com a CELAC negociando em bloco uma condição justa para os países latino-americanos e caribenhos dentro desse acordo.



“A proposta é simples: trata-se de reativar a economia do nosso continente o mais rápido possível, para produzir nas Américas aquilo que nós consumimos, em especial na América Latina e no Caribe, e assim depender o menos possível de produtos vindos de outros continentes”, explicou López Obrador.


Acabar com a letargia”



López Obrador recordou uma efeméride do ano de 1961: o presidente John F. Kennedy apresentou a Aliança para o Progresso, na qual o governo dos Estados Unidos investiu 10 bilhões de dólares para apoiar o desenvolvimento das cidades da América Latina e do Caribe. “Porém, aquele foi o único apoio importante que se deu em termos de cooperação para o desenvolvimento do continente em mais de meio século”, comentou.



“É hora de acabar com a letargia e estabelecer uma relação nova e vigorosa entre os povos da América. Temos que substituir a política de bloqueios e maus tratos pela opção de nos respeitarmos mutuamente, caminharmos juntos e nos associarmos pelo bem das Américas, sem violar a nossa soberania”, prosseguiu o mandatário mexicano.



“O presidente Biden não teria o apoio do Congresso dos Estados Unidos para destinar recursos em benefício dos povos de nossa América e reduzir a desigualdade e a violência na região, principais causas da agitação social e dos fluxos migratórios? Tenho certeza de que ele, assim como o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, estarão atentos às propostas consensuais que pudermos estabelecer neste fórum, para atuar pelo bem de nossos povos”, concluiu.



Quebra de patentes e busca de soluções na natureza



O presidente da Bolívia, Luis Arce, abriu a sessão com uma série de críticas à OEA chefiada pelo diplomata uruguaio Luis Almagro desde 2015. A entidade e seu secretário-geral endossaram o golpe de Estado realizado no país em 2019, contra o então presidente Evo Morales.



“A OEA, em vez de agir segundo sob os mandatos estabelecidos em sua carta democrática, atua contra os princípios da democracia. Sua crescente interferência em assuntos dos estados não contribui para a solução pacífica de controvérsias, e sim as provoca. É um órgão obsoleto e ineficaz, que não responde às necessidades dos nossos estados nem aos princípios do multilateralismo”, acusou o mandatário boliviano.



Arce destacou esse ponto como importante para defender o fortalecimento da CELAC. Também abordou o tema que estaria presente em todas as intervenções durante as cinco horas de evento: a vacinação para todos e derrubada de patentes.



“Precisamos de apoio para acelerar este processo, para o bem de nossos povos e da humanidade. Se as patentes não forem derrubadas, se a tecnologia não for compartilhada, não alcançaremos a meta de imunização em tempo hábil e a pandemia acabará ceifando mais vidas, colapsando nossas economias e perturbando nossas sociedades e nossa política. O interesse financeiro não pode estar acima do interesse social e da saúde das pessoas”, disse Arce, antes de pedir um acordo global para o cancelamento da dívida externa dos países de baixa renda.



Na mesma linha, o presidente da Costa Rica, Carlos Alvarado Quesada, pediu atenção sobre a principal afirmação da cúpula: os países mais afetados pela crise climática não são os que geram o problema, mas sim os que podem ter as soluções.



“Nossa região está seriamente ameaçada pela crise climática. O Caribe e a América Central são particularmente vulneráveis aos climas extremos, que prejudicam nossas populações em suas infraestruturas, em suas lavouras, em seus meios de subsistência, catalisando perdas econômicas, migrações, entre outros problemas”, acrescentou.



Alvarado prosseguiu dizendo que “nossa região também encontrará as principais soluções. Particularmente entre os trópicos, soluções baseadas na natureza. Devemos garantir aos nossos países o acesso a financiamentos justos, que ofereçam opções para uma recuperação econômica e socialmente inclusiva, que reconheçam a nossa contribuição para o combate à crise climática”.


Os discursos dos diferentes representantes dos estados giraram em torno dessas duas questões. Alguns com mais ênfase em vacinas, outros destacando mais as questões ambientais – como o subsecretário da Argentina para a América Latina, Juan Valle Raleigh, que falou sobre a urgência em criar a “justiça social ambiental”. Outros mencionaram a questão da segurança alimentar, também incluída nos 44 pontos acordados, e também se falou sobre questões relativas à violência e ao crime organizado.



México e Cuba



Dois elementos foram recorrentes durante o evento: o reconhecimento à liderança do México por alcançar o acordo, e um agradecimento coletivo aos países que se solidarizaram com aqueles mais vulneráveis, especialmente a partir da doação de vacinas e suprimentos médicos, e o envio de profissionais de saúde.



Nesse sentido, Cuba se destacou por seu trabalho ao enviar médicos e enfermeiros especializados a quase todos os demais países do Caribe. Em seguida, o México também foi reconhecido por suas doações de vacinas e suprimentos médicos.



Em sua intervenção, o presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, aproveitou a oportunidade para agradecer ao seu colega mexicano pelo apoio à ilha, contra o que ele classificou como uma “campanha de descrédito” financiada desde os Estados Unidos, e sobretudo por causa do apelo formulado por López Orador pelo fim do bloqueio econômico contra Cuba, outro elemento que estava incluído nos 44 acordos aprovados por todos os países.


“Suportando o peso do infortúnio econômico e as enormes limitações que nos impõem, Cuba conseguiu avançar demonstrando a solidez de seu sistema de saúde pública e a capacidade de continuar cooperando com outros países”, afirmou Díaz-Canel.



“Estamos orgulhosos de ter produzido três vacinas nos últimos meses, e outras duas que ainda estão sendo desenvolvidas, todas elas fruto da dedicação dos nossos cientistas e do robusto sistema de ciência e inovação tecnológica criado e promovido pelo comandante Fidel Castro. Esperamos que todos considerem esses sucessos como os consideramos: uma conquista da América Latina e do Caribe”, acrescentou o presidente cubano.



As queixas



No entanto, a presença do cubano, assim como a do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, gerou expectativas contrárias em alguns participantes.



O primeiro a reagir foi o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez: “minha presença nesta cúpula em nenhum sentido ou circunstância representa um reconhecimento ao governo do senhor Nicolás Maduro. Não há mudança na posição do meu governo e acho que é um gesto cavalheiresco da minha parte dizer isso de frente”, disse o mandatário, que já foi criticado por ser filho do secretário privado do ditador Alfredo Stroessner.



Mais comedido foi o presidente do Uruguai, Luis Lacalle, também de direita. “Participar não significa ser complacente. Em certos países não existe democracia plena, quando a separação de poderes não é respeitada, quando o aparato repressivo é usado para silenciar protestos, quando os oponentes são presos, quando não são respeitados os direitos humanos, nós com esta voz serena mas firme devemos dizer com preocupação que vemos seriamente o que está acontecendo em Cuba, Nicarágua e Venezuela”, disse ele.



Além disso, tanto Benítez quanto Lacalle Pou expressaram seu apoio à OEA – o segundo, vale lembrar, é conterrâneo do secretário-geral dessa entidade.



A resposta de Maduro foi imediata. Primeiro ele esclareceu que também não reconhecia o governo paraguaio, devido ao golpe de Estado de 2012 contra o então presidente Fernando Lugo. Em seguida, desafiou os dois líderes a definirem “data, local e hora para um debate sobre a democracia”.


“Teríamos pedras suficientes para atirar contra alguns de vocês, mas não viemos para atirar pedras, viemos para buscar trabalho, diálogo e união nos grandes acontecimentos”, acrescentou o mandatário venezuelano.



O primeiro-ministro da Dominica, Roosevelt Skerrit, lembrou a eles que não estavam ali para avançar em nenhuma posição ideológica, mas para resolver os problemas de seus povos. Mas nada impediu uma posterior troca de farpas entre o cubano e o uruguaio. Nem a reclamação do representante da Nicarágua contra a Argentina, por algumas declarações que seu colega rejeitou.



No final, as reivindicações permaneceram como anedotas, pois o acordo aprovado incluiu uma declaração unânime de repúdio ao bloqueio econômico sofrido por Cuba e a favor da soberania da Argentina sobre as Ilhas Malvinas.



Mulheres e migração, a agenda pendente


Outra afirmação mais sutil foi a da ministra das Relações Exteriores do Panamá, Erika Mouynes, a única que falou com clareza sobre dois temas ausentes da discussão: migração irregular e igualdade de gênero.



“A migração não é um fenômeno novo e não vai desaparecer, mas olhar para o outro lado e fingir que não está acontecendo não é uma opção. Só podemos enfrentar este fenômeno de forma regional, com justa corresponsabilidade entre todos nós, unidos. Somos responsáveis %u20B%u20Bpelo que fazemos”, disse a chanceler panamenha.



Sobre a questão da equidade, ela foi ainda mais direta: “a pandemia causou estragos no processo para se alcançar uma igualdade de gênero justa, com salários iguais e acesso para o empoderamento econômico e educacional das mulheres. Há apenas três mulheres sentadas aqui nesta mesa, entre 31 assentos. Temos que gerar compromissos regionais que garantam a participação das mulheres nas decisões”, concluiu Mouynes.



Os acordos



“Nós propusemos que o CELAC seja o principal mecanismo de cooperação da região. Queremos ter uma relação diferente da que temos sido nos últimos anos, porque a geopolítica está mudando”, disse o chanceler mexicano Marcelo Ebrard, na entrevista coletiva realizada ao final do evento.


Ele frisou que há muitos anos não se realizava uma cúpula de chefes de estado com esse nível de participação, e que as conquistas obtidas com a resolução final “valem a pena e nos enchem de esperança”.



Outras “ações imediatas” aprovadas por unanimidade incluem a criação de um fundo para enfrentar as mudanças climáticas, o qual arrecadou, já nas primeiras horas, mais de 15 milhões de dólares. “Alguns dirão que ainda é pouco, mas não há nenhum fundo latino-americano com essa quantidade de recursos”, insistiu Ebrard, sem desanimar.



Além disso, o CELAC decidiu levar posição comum à Conferência do Clima da ONU (COP26), que acontecerá de 31 de outubro a 12 de novembro, na cidade escocesa de Glasgow, no Reino Unido. Esta posição será “baseada na justiça que deve existir para enfrentar a mudança climática”, assegurou Ebrard.



Também foi aprovada a constituição da Agência Espacial Latino-Americana e Caribenha. Ebrard lembrou que existem 9 agências espaciais na América Latina, que trabalham de forma isolada, o que multiplica os custos. O que foi aprovado é que elas passarão a trabalhar em conjunto.


Também será agendada uma reunião com o FMI (Fundo Monetário Internacional) “para reclamar sobre o acesso aos recursos e as regras do jogo, que são muito desiguais. Para nós, elas significam dívida, para países desenvolvidos existem outras facilidades”.



O chanceler mexicano voltou ao tema das vacinas para concluir sua intervenção: “o que está sendo considerado é a necessidade de criar um sistema vigente em toda América Latina e no Caribe, com o objetivo de evitar que os nossos países dependam de outros para ter acesso a vacinas, de diferentes doenças, o que se torna ainda mais dramático em situações como a desta pandemia. Não podemos permitir que isso aconteça de novo no futuro. Essa lição foi aprendida”.



CEPAL: “é preciso tomar decisões rápidas”


Sobre o tema das vacinas, existem um plano de soberania sanitária elaborado pela CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), que define algumas linhas de ação para fortalecer as capacidades de produção e distribuição de vacinas e medicamentos na região.


Entre as ações sugeridas está a convergência e o reconhecimento de uma agência reguladora, ter uma plataforma comum para os ensaios clínicos, facilitar o acesso às vacinas que estiverem em melhores condições, fazer compras conjuntas para que não haja disparidades (não só com vacinas, mas com todos os insumos médicos), além e promover consórcios produtivos regionais (como fizeram os governos do México e da Argentina com a AstraZeneca).



Alicia Bárcena, diretora executiva da CEPAL, destacou que “com o ritmo que estamos caminhando, a região não conseguirá vacinar mais de 80% da população com mais de 18 anos. Há até países que não chegam nem aos 10%”.



Ela ressaltou que a América Latina e o Caribe têm capacidade para produzir suas próprias vacinas. Porém, “para que um projeto em conjunto possa funcionar, os países com maior estrutura e poder aquisitivo precisam ajudar os que estão mais atrasados”.


“Temos as capacidades, mas devemos aprender a tomar decisões rápidas e em conjunto. Acredito que a CELAC nos deu uma mensagem poderosa sobre isso”, completou Bárcena.



Daniela Pastrana é jornalista mexicana especializada em Direitos Humanos e movimentos sociais, e redatora do Pie de Página, um portal independente, conformado por uma rede de jornalistas especializados em temas sociais e de Direitos Humanos.



*Publicado originalmente em 'Pie de Página' | Tradução de Victor Farinelli
 

https://www.alainet.org/pt/articulo/213906
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