Os privilégios que a UE concedeu a grandes empresas hipotecam agora a sua política energética

Esses privilégios que a Carta da Energia concede são hoje em dia incompatíveis com a legislação e política europeias em matéria de investimento e de acção climática e, claro, com outros tratados de protecção ambiental.

10/03/2021
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Um dos traços da vaga neoliberal do capitalismo foi o avanço de leoninos acordos de comércio e investimento que, além do mais, concedem aos investidores estrangeiros o direito de processar os Estados, em tribunais de arbitragem privados, caso se considerem prejudicados por qualquer tipo de medida que os governos tomem, não apenas pelo investimento feito, mas também por perdas de lucros futuros. É assim que se vêm agora na UE as políticas de “transição energética” a ser objecto de processos reclamando muito chorudas indemnizações. Não há compatibilização possível entre os privilégios ao grande capital e qualquer política de defesa do interesse público.

 

2.896 acordos internacionais de comércio e investimento foram assinados no século passado (contagem aqui ). Como analisei nestas mesmas páginas há alguns meses ( Tratados indignos em tempos de pandemia ), todos eles concedem aos investidores estrangeiros um privilégio extraordinário: o direito de processar os Estados, em tribunais de arbitragem privados, para reivindicar uma indemnização caso se considerem prejudicados por qualquer tipo de medida que os governos tomem, e não apenas pelo dinheiro investido, mas também por perdas de lucros futuros.

 

Sempre que são assinados acordos desse tipo, os governos e os organismos internacionais afirmam que têm como objectivo promover o livre comércio, favorecer os investimentos e evitar o poder desmesurado dos governos que entrava o progresso económico. A realidade, porém, é outra bem diferente. Um bom número de estudos científicos, como o realizado pelo International Institute for Sustainable Development em 2017 ( aqui ), mostrou que não há evidências empíricas que sustentem essa hipótese.

 

A prova do autêntico efeito de tais acordos é proporcionada pelo que está a acontecer com o Tratado sobre a Carta da Energia, assinado em 1994 por iniciativa das Comunidades Europeias.

 

O seu objectivo formal era estabelecer e melhorar o quadro jurídico para a cooperação em matéria de energia nas áreas estabelecidas pela Carta Europeia da Energia e serviria como instrumento para a pomposamente chamada protecção multilateral do investimento e para proporcionar uma regra geral para a solução vinculativa de litígios internacionais. O que realmente está por trás dele e as suas verdadeiras consequências estamos agora a verificar claramente.

 

Desde a assinatura do acordo, muitas grandes empresas têm investido em fontes de energia que se revelaram muito prejudiciais para o meio ambiente, de modo que os governos tiveram que estabelecer estratégias orientadas para as substituir o mais rápidamente possível.

 

Como consequência destas políticas de transição energética que estão a surgir, os investimentos na obtenção ou distribuição de carvão, petróleo ou gás estão logicamente ameaçados e muitas empresas começaram a entrar com processos judiciais aos governos ao abrigo a Carta da Energia.

 

Em 2009 a empresa sueca Vattenfal reivindicou 1.400 milhões de euros ao governo alemão pelos prejuízos estimados causados ​​pela regulação mais estrita da indústria do carvão e em 2011 voltou a fazê-lo, reclamando uma indemnização que já ascende a 6.100 milhões de euros, ao sentir-se afectada pela sua política de eliminação gradual da energia nuclear.

 

Algo semelhante aconteceu em 2015 quando a empresa britânica Rockhopper processou o governo italiano por este lhe ter negado uma concessão para extrair petróleo em pontos turísticos da costa do Mar Adriático. Em 2017 o governo francês elaborou um projecto de lei para proibir a extracção de combustível fóssil a partir de 2030. Bastou uma carta de um escritório de advogados alertando que o projecto de lei violava o Tratado foi suficiente para mudar o texto da lei, e de momento, continuará a ser autorizada até 2040. E, há poucos dias, a empresa alemã RWE processou o governo da Holanda pela perda de 1.400 milhões de euros de “lucros potenciais” devido à sua decisão de eliminar o carvão como fonte de fornecimento de eletricidade.

 

São casos, entre outros, que ainda podem ser considerados isolados mas o problema é que, se a União Europeia continuar com a sua estratégia de transição energética e de combate à emergência climática, não terá outra escolha senão eliminar gradualmente o negócio das fontes de energia fóssil, o que inevitavelmente produzirá uma enorme perda de lucros para muitas empresas que poderão recorrer a tribunais de arbitragem privados. E a quantidade de dinheiro que pode estar em jogo é astronómica.

 

Segundo um relatório de Investigate Europe publicado no dia 23 ( aqui ), a infraestrutura fóssil de empresas susceptível de ser protegida pela Carta da Energia tem um valor de 344.600 milhões de dólares na União Europeia, Reino Unido e Suíça (8.300 milhões em Espanha ) Um montante, como indica o relatório, que equivale a mais de dois anos da despesa total da Comissão Europeia, incluindo todos os pacotes de ajuda Covid 19, todos os subsídios agrícolas e os fundos estruturais. E isso, sem contar os lucros que as empresas deixariam de receber no futuro e que poderiam incluir nas suas reivindicações.

 

A situação é inquestionável: enquanto se mantiverem em vigor os privilégios que ela mesma concedeu às grandes empresas da energia fóssil, é impossível que possa ser levada a cabo a política de transição que a União Europeia se propõe.

 

Esses privilégios que a Carta da Energia concede são hoje em dia incompatíveis com a legislação e política europeias em matéria de investimento e de acção climática e, claro, com outros tratados de protecção ambiental que a União Europeia subscreveu nos últimos anos. Mesmo a existência de tribunais arbitrais privados para dirimir conflitos no seio da União (74% dos litígios suscitados são entre empresas e governos europeus) é algo que pode ser claramente questionado.

 

A Comissão Europeia e o Parlamento afirmaram em várias ocasiões que o acordo é obsoleto e insustentável, mas a verdade é que ainda aí está. As propostas de reforma não poderão avançar porque o Tratado exige unanimidade para a tomada de decisões, com a clara intenção de tornar os privilégios praticamente inalteráveis. E nem mesmo sair do Tratado, como fez a Itália em 2016, é algo completamente eficaz (embora certamente proteja em certa medida) porque outra barbaridade contemplada na sua cláusula de extinção é permitir que as empresas possam processar um país por até 20 anos depois de este se ter retirado do tratado.

 

A União Europeia diz que quer limitar a emissão de CO2, promover a transição para o uso de energias verdes e combater as alterações climáticas, mas continua a proteger com privilégios as empresas mais poluentes e permite que estas os defendam em tribunais secretos e claramente viciados a seu favor por interesses particulares.

 

E o que é pior: mesmo no caso, de momento complicado e remoto, de as consequências do Tratado sobre a Carta da Energia poderem ser completamente contornadas para que a Europa pudesse lançar a acção pelo o clima que diz pretender, o que sucede com as demais dezenas de tratados e acordos do mesmo tipo que foram assinados até agora?

 

Como o caso que mencionei demonstra, as autoridades da União Europeia e os nossos representantes no Parlamento Europeu estão a enganar as pessoas: acendem uma vela retórica a Deus - dizendo-lhe que trabalham para o bem comum - e uma imensa outra ao Diabo - quando concedem privilégios exorbitantes às grandes empresas, para que os seus interesses particulares prevaleçam sobre os de toda a sociedade. É impossível servir ambos ao mesmo tempo e os dirigentes e parlamentares europeus sabem isso perfeitamente.
Se realmente quisessem defender o bem comum e os interesses da maioria da sociedade, o bem-estar social e o futuro do planeta, poriam fim a esta loucura. Tratariam de rever, com o máximo rigor e total transparência, as reais consequências de todos os acordos e tratados internacionais de comércio e investimento que tenham assinado, denunciá-los-iam e exigiriam a responsabilização de quem o fez.

 

https://blogs.publico.es/juantorres/2021/02/26/los-privilegios-que-europ...

 

10.Mar.21

https://www.odiario.info/os-privilegios-que-a-ue-concedeu/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/211321
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