O ocidente ainda é cúmplice da guerra contra o Iêmen

Os EUA - assim como potências europeias como a França e a Alemanha - continuam a vender armas e a piorar o desastre humanitário no Iêmen.

15/01/2021
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Foto: Felton Davis / Flickr
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Enquanto governos do Ocidente apoiam o assassinato sistemático de uma geração, movimentos ao redor do mundo se mobilizaram em resistência.

 

No final do ano passado, nos últimos dias do seu governo, Donald Trump fez um anúncio nada surpreendente, mas ainda assim grotesco: os Estados Unidos concordaram em vender o incrível total de US$23 bilhões em bombas, drones e aviões de caça aos Emirados Árabes Unidos, apesar - ou, talvez, por causa disto - do seu uso constante de armas estadunidenses para cometer atrocidades inomináveis no Iêmen.

 

Tragicamente, isso não era nenhuma novidade: não se pode falar do desastre humanitário no Iêmen sem mencionar a cumplicidade do Ocidente. Nascida de uma disputa doméstica pelo controle político, nas mãos de agentes estrangeiros a brutal guerra civil do Iêmen se transformou num campo de matança implacável e infindável.

 

Os Estados Unidos têm sido uma influência ativa e maligna no Iêmen desde muito antes da guerra de 2014. Iniciada sob o governo Bush, e continuando sem pausa sob Obama e Trump, só no Iêmen a campanha de drones dos EUA matou entre 1.020 e 1.389 pessoas entre 2004 e fevereiro de 2020.

 

Assim, quando, em 2015, uma coalizão liderada pela Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos começou a intervir na guerra, os EUA aproveitaram a chance de apoiá-la. Do Ocidente ao Golfo, em pouco tempo o apoio dos aliados dos EUA foi avassalador, e justificou sua decisão com a alegação de que “bloquear a expansão iraniana no Golfo e prevenir um desastre humanitário no quintal do Reino foi a resposta legítima e lógica da Arábia Saudita”.

 

É difícil acreditar que a intervenção saudita fosse necessária para evitar um desastre no Iêmen. É ainda mais difícil acreditar que o governo de Obama não estivesse ciente do desastre que estava prestes a patrocinar. Como Robert Malley, ex-oficial do governo Obama, confirmou mais tarde, na época os Estados Unidos temiam que, depois da Primavera Árabe, e com as negociações do acordo nuclear em andamento no Irã, o “relacionamento de décadas” com a Arábia Saudita estivesse “prestes a terminar”. De acordo com Malley, “ninguém poderia duvidar” que o sofrimento massivo “seria um resultado muito, muito provável” -, mas manter a Arábia Saudita feliz era mais importante.

 

Essas previsões de sofrimento iriam rapidamente se tornar realidade. Tanto os EUA quanto o Reino Unido logo começaram a fornecer apoio logístico, de inteligência e diplomático, enquanto Alemanha, França e outros forneciam fluxos massivos de armas para a coalizão de intervenção. Com esse apoio devastador e incondicional, a coalizão não hesitou em cometer repetidamente crimes horríveis contra a população, inclusive usando a fome como arma de guerra mediante a imposição de bloqueios terrestre, marítimo e aéreo a um país que antes da guerra já importava mais de 90% dos seus alimentos. Colocando de forma simples, sem a ajuda dos EUA e do Reino Unido, muitas dessas atrocidades nunca teriam sido cometidas. Enquanto isso, outros países ocidentais forneceram apoio diplomático determinante, em parte ao não comprometerem os seus negócios com as monarquias absolutistas do Golfo e, em parte, ao evitarem interferir e, muitas vezes, promovendo ativamente grandes negócios de vendas de armas.

 

Para a população iemenita, o cheque em branco para a coalizão de intervenção significou um desastre. Após anos de conflito, hoje 24 milhões de pessoas necessitam de algum tipo de assistência humanitária. De acordo com o famoso relatório do Centro Pardee para o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, desde março de 2015 aproximadamente 310.000 pessoas morreram no conflito.

 

No último ano, essa crise humanitária, que já era terrível, se deteriorou ainda mais. A intensificação das lutas, as catástrofes ambientais — enchentes desalojaram mais de 300.000 — e o impacto do Coronavírus num país com o sistema de saúde em colapso tiveram um papel mortífero. Nesse cenário, os programas de ajuda das Nações Unidas se tornaram o único instrumento do qual milhões de pessoas dependem para sobreviver.

 

Mas a ajuda existente não é suficiente. Com o financiamento crescente da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, a ONU está desesperadamente incitando a comunidade internacional a ajudar a reverter “a pior fome que o mundo viu nas últimas décadas”.

 

O Ocidente, no entanto, não atendeu ao chamado das Nações Unidas. Os números falam por si: menos da metade da ajuda humanitária solicitada pelas Nações Unidas foi entregue ao Iêmen. Para se ter uma noção, compare o montante — US$1,7 bilhão — com as dezenas de bilhões de dólares que o Ocidente vende em armas à coalizão todos os anos.

 

Resumindo, o Ocidente não só pôs lenha na fogueira da conflagração iemenita como cortou o suprimento de água da mangueira dos bombeiros.

 

Mas nem toda a esperança do Iêmen está perdida. Enquanto governos ocidentais apoiam o assassinato sistemático de uma geração, movimentos ao redor do mundo se mobilizaram em resistência. A Campanha Contra o Comércio de Armas (CAAT) conseguiu paralisar temporariamente a venda de armas do Reino Unido para a Arábia Saudita, independentemente do esforço do governo britânico. Trabalhadores portuários italianos tomaram medidas diretas, recusando-se a carregar um navio com armas destinadas à Arábia Saudita. E, cedendo à pressão decorrente do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, o governo conservador alemão de Angela Merkel declarou um embargo contra a Arábia Saudita. (No entanto, não hesita em vender armas aos Emirados Árabes Unidos).

 

Uma parte importante dessa batalha está acontecendo nos Estados Unidos, onde a pressão constante das bases tem conseguido fazer recuar os poderes entrincheirados na indústria de armas, a política externa predominante de incitação à guerra, e os lobbies sauditas e dos Emirados Árabes Unidos para forçar o Partido Democrata a uma posição mais moderadado do que a assumida pelo governo Obama. Durante o governo Trump, o congresso dos EUA votou diversas vezes o bloqueio da venda de armas específicas para os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita. Ainda que os bloqueios tenham sido vetados, o futuro governo Biden representa uma oportunidade de mudança, pois teve “o fim da cumplicidade dos EUA na guerra do Iêmen” como uma promessa explícita de campanha. Certamente o establishment e a política favorável às empresas não tomarão este caminho por si mesmos durante o governo Biden, mas as chances de repensar por completo as relações dos EUA com a Arábia Saudita são as maiores dos últimos anos.

 

Há razões para sermos otimistas, mas também para sermos cautelosos. As elites ocidentais não confrontarão sozinhas os interesses do poderoso complexo militar-industrial. Só a mobilização pode forçá-las a isso. A hora dessa mobilização é agora: o povo do Iêmen não pode esperar.

 

- Isa Ferrero é uma engenheira de energia e ativista espanhola especializada em políticas externas do Ocidente. Ela escreveu anteriormente sobre o Iêmen no openDemocracy, parceiro da Agência da Internacional Progressista.

 

(Traduçao: Lara Cezzarini e Cristina Cavalcanti)

 

 

 

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/210535?language=es
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