Ordeiro e não violento?

12/08/2020
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Em Gattaca – a experiência genética, filme de 1997 de Andrew Niccol, a sociedade chegou a níveis surpreendentes de manipulação genética. A regra para se conceber uma nova criança é a eugenia, é necessário que antes os pais se apresentem em uma agência de manipulação e ali serão decididas as aptidões da pessoa que está por vir, seus defeitos, dificuldades, expectativa de vida ao nascer e demais características, como altura, peso e isso formará as classes das pessoas. A estes manipulados geneticamente, denomina-se de válidos, ao passo que os concebidos pelas vias tradicionais, inválidos.

 

Esta classificação, esta cisão entre válido-inválido, determinará os locais aos quais uma pessoa pode frequentar, o tipo de emprego ao qual uma pessoa pode ocupar, o prestígio social máximo de cada um. E nesse contexto, duas características são de suma importância: i) mesmo dentro dos válidos, há uma clara hierarquia social determinada pelos genes, isto é, aqueles que com melhores configurações genéticas são os elegíveis a cargos mais elevados e ii) apesar de tamanha violência segregacionista e práticas eugenistas que já no momento de concepção definem aqueles que serão, que poderão ser e que nunca serão, esta é vista como uma sociedade ordeira, em que a discriminação pela composição genética é algo proibido, ainda que para a manutenção da ordem, batidas policiais sejam constantes, validando se as pessoas que estão em certo local deveriam estar ali, por base em seus genes.

 

Em quase todos os momentos é possível traçar paralelos entre a arte – mesmo que em distopia – e a realidade. Há tempos circula pela sociedade a noção, ou melhor, o mito de que o brasileiro é um povo ordeiro, não violento e cuja miscigenação é a principal característica. Sua história, longe de ser definida ainda pelos traumas de quase quatro séculos de escravidão e dizimação de populações nativas, é uma história sem lutas, sem grandes levantes e, portanto, pacífica. Um local de um povo gentil e cordial, que já após o primeiro contato se considera amigo.

 

Enfim, nada mais surreal do que a suposta realidade bordada. Ao contrário do que se pinta, este é sim um povo racista, elitista, cujas principais formas de relacionamento e construção social pautam-se em cima de privilégios, seja pela raça, pelas posses ou por status e prestígio.

 

A violência se consuma em todas as searas, seja nos costumes, segregando isto entre alta cultura e aquilo em baixa; seja nos motes religiosos, em que a liturgia de um é vista como do demônio e atrasada e a minha é detentora da mais alta moralidade e divindade; seja nas segregações espaciais, que guetifica aqueles de menor renda e permite a ocupação dos espaços públicos a uma dada elite; Seja na fala e nas diversas formas de saberes, que dominam uma classe menos escolarizada através de seu conhecimento ou seja nas leis, que valem para um grupo, mas não para a totalidade. O que se constitui para uns e não para outros, longe de ser um direito, denomina-se privilégio.

 

Em todas estas searas e nas demais que não foram citadas, mas que são atávicas e endêmicas de violência, qualquer presença do diferente tendo a ser resolvida não com o debate, mas vista ou como tema de polícia, que, longe de ser uma pacificadora entre as classes, é uma efetivadora das formas de dominação, ou quando não raro, tema de Estado, que deve expulsar, desocupar, eliminar e restaurar qualquer forma de propriedade seu dono/grupo de “origem”.

 

Exemplos não faltam sobre as formas violentas de relacionamento, cito alguns para contextualizar.

 

Universidades e demais grupos de proteção denunciaram o Estado de SP à ONU pela realização de operações de despejo e reintegração de posse em plena pandemia. Foram mais de 2 mil famílias impactadas em 12 ações. A violência não para por aí, não há destinação e acolhimento adequados para estas famílias, que se vêm de despossuídas. O próprio Estado que desaloja, é o mesmo Estado que abandona quando essas famílias que já não mais contam com um teto. Garantir a integridade da propriedade privada parece ser mais relevante do que a destinação social de terra sem função, a despeito da maioria dos Planos Diretores contarem com dispositivos para regulação fundiária e de o próprio Estatuto da Cidade e da Constituição Federal disporem sobre a função social da terra, sendo incumbência do Estado obrigar destinação e utilização adequadas. A violência neste tema é chancelada pela suposta ambiguidade na interpretação da lei.

 

Da mesma forma, sob o suposto mote da lei, esta semana uma juíza aprovou a retirada da guarda de uma criança de mãe após a filha participar de um ritual de candomblé. Se por um lado o racismo e a discriminação religiosa também são vedados pela lei, a justiça se sente no Direito de utilizar-se de subterfúgios religiosos para punição de uma pessoa. Uma mãe que professava sua fé.

 

Outro tema caro em relação as demonstrações de violência são as reações intempestivas de certo grupo privilegiado, como temos visto quase semanalmente nos noticiários. O grito primeiro de várias pessoas, “você sabe com quem está falando?” é, por si só, uma forma contundente de violência, uma vez que exprime a tentativa de intimidação social e expressa a tentativa de privilégios. Exige ponderação pois, caso haja alguma desavença, o Outro será impactado, punido.

 

Exemplo clássico. Um desembargador que reiteradamente burla a lei e se sente no Direito de desmerecer os oficiais chamando-os de analfabetos. É esse mesmo desembargador que já possui mais de 40 ações movidas contra ele por demais formas de maltrato e abuso do diferente. Aos inimigos, a lei, a mim a leniência (com a conivência do Estado).

 

Um técnico em contabilidade que se arvora o direito de ser deliberadamente racista e demonstrar o esgoto ético que é a camada endinheirada da população, dizendo que um moto boy além de ter inveja de sua cor (branca), também não devia estar ali. O argumento? Seu salário e sua impossibilidade de que jamais ocupe aqueles espaços. O brado do moto boy Mateus Couto é o questionamento de muitos: essa pose toda, essas propriedades caras foram conquistadas pelo trabalho ou frutos de presente dos pais?

 

Abundam exemplos de como essa sociedade, longe de ser ordeira, pacífica e celebradora das múltiplas raças que aqui habitam, é racista, machista, elitista e atrasada. Jessé de Souza nunca esteve tão certo quanto quando decretou que esta é uma sociedade elite do atraso. O atraso é endêmico e seu reacionarismo, a lei.

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/208416

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