David Harvey, a crise e o que poderá vir no pós crise

Este é um momento de oportunidade para pensar em como uma alternativa pode surgir. Este é um momento em que a possibilidade de uma alternativa realmente existe.

06/05/2020
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Rua na Times Square quase vazia, Nova York, 12/03/2020.
Foto: David Dee Delgado / Getty
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Harvey publicou, em 24 de abril de 2020, na revista eletrônica Jacobin, as reflexões que fez, no confinamento obrigatório contra o coronavírus. Deu a elas o título “É preciso uma resposta coletiva ao dilema coletivo do coronavírus” (1)

 

Harvey é um veterano militante socialista, de 84 anos de idade, nascido na Inglaterra e radicado há décadas nos EUA, onde leciona antropologia e geografia na Universidade da Cidade de Nova York. Ele é autor de inúmeros livros onde aplica teses marxistas para entender o mundo moderno – entre eles o já clássico “Condição pós moderna” (publicado pela primeira vez em 1989) e o recente “O enigma do capital e as crises do capitalismo”.

 

Harvey está confinado, como todos, em sua residência em Nova York. Com base nas teses expressas por Marx nos “Grundrisse” (do alemão “Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie”, ou em português, “Elementos fundamentais para a crítica da economia política”, escrito em 1857/1858 como rasenho a “O Capital”, e publicado em parte, em Moscou, em 1941), ele procura entender como se dão, nas condições contemporâneas, as relações entre ciência (tecnologia), relações de trabalho, tempo livre, e as mudanças das quais a sociedade moderna está grávida, como ele diz. “A crise desencadeada pela pandemia do Covid-19 é uma oportunidade para se repensar novamente a ideia de liberdade humana de Marx.”, escreveu. “As medidas emergenciais para superar a crise também revelam como se pode construir uma sociedade diferente, não vinculada ao capital.” Harvey pergunta: Como um anticapitalista pensa sobre as circunstâncias atuais?

 

Ele faz um extenso comentário sobre a análise feita por Marx da situação em seu tempo, primeiro sobre as expectativas do movimento operário ante a Comuna de Paris (1871), da qual – diz o fundador do materialismo moderno – a classe trabalhadora não esperava milagres. Os trabalhadores não têm utopias, mas sabem que, para alcançar sua própria emancipação e, juntamente com ela, a forma mais elevada para a qual a sociedade atual tende será preciso passar por longas lutas para transformar as circunstâncias e os homens. Eles não têm ideais a realizar a não ser liberar os elementos da nova sociedade da qual está grávida a antiga sociedade burguesa em colapso. Neste particular, Marx se opôs ao pensamento dos chamados socialistas utópicos, à tradição de Joseph Fourier, Henri de Saint-Simon, Étienne Cabet, Louis Auguste Blanqui, Pierre-Joseph Proudhon e assim por diante. Para Marx, lembra Harvey, o projeto revolucionário deve se concentrar na autoemancipação dos trabalhadores. A parte “auto” desta formulação é importante. Qualquer grande projeto para mudar o mundo também exige uma transformação do eu. Portanto, os trabalhadores também teriam que se mudar a si mesmos.

 

No entanto, Marx observou que o próprio capital também cria as possibilidades de transformação e que, através de longas lutas seria possível “liberar” as linhas de uma nova sociedade na qual os trabalhadores possam ser liberados do trabalho alienado. A tarefa revolucionária é liberar os elementos dessa nova sociedade pré-existentes no útero da antiga ordem social burguesa em colapso que, diz Harvey, está grávida também de fatores negativos – como racismo e xenofobia – que podem, na luta, serem superados. O que Marx está dizendo, pensa Harvey, é que é preciso selecionar os aspectos da sociedade burguesa em colapso que contribuirão para a emancipação dos trabalhadores e das classes trabalhadoras.

 

Quais são essas possibilidades e de onde elas vêm?

 

Nesta altura, Harvey envereda por uma linha de reflexão onde, a partir das ideias de Marx sobre ciência, tecnologia e processo de trabalho, expressas originalmente nos “Grundrisse”. E ressalta dois traços dessa união entre ciência e processo produtivo capitalista. Em primeiro lugar, o conhecimento de como fazer, característico do domínio de sua arte pelo trabalhador, é tirado dele e incorporado à máquina, transformando o trabalhador num mero apêndice da máquina. O outro aspecto indicado por Marx, e ressaltado por Harvey, é o fato de que, ao contrário do que ocorreu em modos de produção anteriores, no capitalismo a inovação tecnológica, os resultados da ciência, são também mercadorias, podendo ser adquiridos no mercado capitalista por qualquer pessoa ou empresário. Nesse sentido a sociedade capitalista, por definição, investe fortemente em inovação tecnológica e organizacionais – primeiro na produção, em busca de maior produtividade do trabalho; depois, na própria inovação tecnológica, como produto para o mercado.

 

“Por essa razão”, escreve Harvey, “o dinamismo tecnológico está incorporado no coração da sociedade capitalista”, como Marx já havia reconhecido no “Manifesto do Partido Comunista” (escrito em 1848). “Essa é uma das forças principais que explicam o caráter permanentemente revolucionário do capitalismo.”

 

Harvey cita como exemplo a tecnologia de computador, disponível para quem quiser usá-la. “Marx percebe que, quando se chegou às décadas de 1820, 30 e 40 na Grã-Bretanha, a invenção de novas tecnologias já havia se tornado um negócio independente”, e o principal exemplo na época de Marx foi o motor a vapor. “Já na época de Marx a inovação tecnológica havia se tornado um negócio independente”, diz Harvey.

 

Essa ideia, registra Harvey, “de que a própria tecnologia se torna um negócio é absolutamente central no relato de Marx sobre a sociedade capitalista”.

 

Toda essa explicação desemboca numa larga reflexão sobre as consequências da incorporação da ciência e da tecnologia ao processo de trabalho, e sobre o controle do tempo livre que ela proporciona. Ao permitir uma produtividade maior, com menor incorporação de trabalho direto em cada unidade de produto, o tempo indicaria, para Marx, o nível real de riqueza de uma sociedade. “A questão da inteligência artificial (IA) é a versão contemporânea do que Marx falava. Agora precisamos saber até que ponto a inteligência artificial está sendo desenvolvida através da ciência e tecnologia, e até que ponto ela está sendo aplicada (ou provavelmente será aplicada) na produção.”

 

Um efeito óbvio, assinala Harvey, “é deslocar o trabalhador, e de fato desarmar e desvalorizar ainda mais o trabalhador, em termos da sua capacidade para a aplicação da imaginação, habilidade e perícia dentro do processo produtivo.”

 

Isso leva Marx a fazer o seguinte comentário no “Grundrisse”: A transformação do processo produtivo do simples processo de trabalho em um processo científico, que subjuga as forças da natureza e as obriga a trabalhar a serviço das necessidades humanas, aparece como uma qualidade do capital fixo em contraste com o trabalho vivo… assim, todos os poderes de trabalho são transpostos em poderes de capital.

 

O conhecimento e a experiência científica estão agora dentro da máquina sob o comando do capitalista. O poder produtivo do trabalho é realocado para o capital fixo, algo externo ao trabalho.”

 

Isto é, a automação ou a inteligência artificial criam as condições para a emancipação do trabalho – ou seja, a diminuição da aplicação da força de trabalho por unidade produzida. Toda essa ciência e tecnologia aumenta a produtividade social do trabalho. “Aqui está novamente Marx no ‘Grundrisse’:

 

Na medida em que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza real passa a depender menos do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho empregado do que do poder das agências em movimento durante o tempo de trabalho, cuja ‘poderosa eficácia’ é em si fora de toda a proporção do tempo de trabalho direto gasto em sua produção, mas depende sim do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou a aplicação desta ciência à produção.” E Marx diz, valorizando o tempo livre: “Verdadeiramente rica é uma nação quando o dia de trabalho é 6 em vez de 12 horas. A riqueza não é o comando sobre o tempo de trabalho excedente… mas sim tempo descartável fora que precisava na produção direta, para cada indivíduo e toda a sociedade.”

 

Neste ponto a reflexão de Harvey se articula com a realidade atual, criada pela pandemia do coronavírus. Afirmando que “Marx é a favor da mobilização da ação coletiva para ganhar liberdade individual”, e da ideia marxista de que a “redução geral do trabalho necessário”, ou seja, na quantidade de trabalho necessária para reproduzir o cotidiano da sociedade, conclui que o “aumento da produtividade do trabalho significará que as necessidades básicas da sociedade podem ser atendidas muito facilmente, permitindo que seja liberado o tempo disponível abundante para o potencial desenvolvimento artístico e científico dos indivíduos”. Criando “tempo disponível gratuito para todos. Ou seja, liberar indivíduos para fazer o que eles querem é fundamental, porque se pode cuidar das necessidades básicas usando tecnologia sofisticada”.

 

“O problema, diz Marx, é que o próprio capital é uma ‘contradição móvel’. Ele ‘pressiona para reduzir o tempo de trabalho ao mínimo enquanto coloca o tempo de trabalho do outro lado como uma única medida e fonte de riqueza’. Assim, diminui o tempo de trabalho na forma necessária – ou seja, o que é realmente necessário – para aumentá-lo na forma supérflua.”

 

A questão é: quem vai capturar o excedente? “O problema que Marx identifica não é que o excedente não está disponível, mas que não está disponível para o trabalho, para o trabalhador. Enquanto a tendência ‘de um lado é criar tempo descartável’, por outro é ‘convertê-lo em trabalho excedente’ em benefício da classe capitalista. Não está sendo aplicado à emancipação do trabalhador quando poderia ser”. Está sendo aplicado à “acumulação de riqueza nas mãos da burguesia através dos meios tradicionais.” Esta, diz nosso autor, é a contradição central: “a riqueza de uma sociedade será medida pelo tempo livre descartável que todos temos, para fazer o que quisermos sem restrições, porque nossas necessidades básicas podem ser atendidas. E o argumento de Marx é o seguinte: você precisa ter um movimento coletivo para garantir que esse tipo de sociedade possa ser construída.”

 

“Há um eco interessante de tudo isso em nossa situação atual de confinamento e colapso econômico como consequência do coronavírus. Muitos de nós estamos em uma situação onde, individualmente, temos muito tempo descartável. A maioria de nós está presa em casa.” O que vamos fazer com nosso tempo? Outra coisa é o desemprego em massa; só nos EUA há algo como 26 milhões de pessoas sem trabalho.

 

“Grande parte da população dos EUA – talvez até 50% de todas as famílias – não tem mais de 400 dólares no banco para lidar com pequenas emergências, muito menos uma crise do tipo em que estamos. É provável que essas pessoas estejam nas ruas muito em breve, com a fome encarando-os e a seus filhos.”

 

Mas, olhando mais atentamente, a força de trabalho de que se espera para cuidar do número crescente de doentes, ou prestar os serviços mínimos que permitem a reprodução da vida cotidiana, é, em regra, formada por mulheres ou racializada e etnizada. Esta é a “nova classe trabalhadora” que está na vanguarda do capitalismo contemporâneo. Seus membros têm que arcar com dois fardos: são os trabalhadores que mais correm o risco de contrair o vírus em seus empregos, e de serem demitidos sem recursos financeiros devido ao retrocesso econômico.

 

A “classe trabalhadora contemporânea nos EUA – composta predominantemente por afro-americanos, latinos e mulheres – enfrenta uma escolha difícil: entre sofrer contaminação ao cuidar das pessoas e manter abertas as principais formas de provisão (como supermercados) ou o desemprego sem benefícios (como cuidados de saúde adequados).”

 

“Esta força de trabalho tem sido socializada há muito tempo para se comportar como bons indivíduos neoliberais, o que significa culpar a si mesmo ou a Deus se algo der errado, mas nunca ousar sugerir que o problema pode ser o capitalismo. Mas mesmo os bons “sujeitos neoliberais” podem ver que há algo de errado com a resposta a esta pandemia, e com o fardo desproporcional que devem suportar para sustentar a reprodução da ordem social.”

 

“Formas coletivas de ação são necessárias para nos tirar dessa grave crise ao lidar com o Covid-19. É preciso ação coletiva para controlar sua disseminação – quarentenas e comportamentos de distanciamento, todo esse tipo de coisas. Essa ação coletiva é necessária para, eventualmente, nos liberar como indivíduos para viver do jeito que gostamos, porque agora não podemos fazer o que gostamos. Isso acaba por ser uma boa metáfora para entender o que é o capital. Ele significa uma sociedade na qual a maioria de nós não é livre para fazer o que quer, porque estamos realmente ocupados com a produção de riqueza para a classe capitalista.”

 

“O que Marx poderia dizer é, bem, talvez esses 26 milhões de desempregados, se pudessem realmente encontrar alguma maneira de obter dinheiro suficiente para sustentar a si mesmos, comprar as mercadorias que precisam para sobreviver, e alugar a casa em que viver, então por que não buscar a emancipação em massa do trabalho alienante?”

 

“Em outras palavras, queremos sair dessa crise simplesmente dizendo que há 26 milhões de pessoas que precisam voltar ao trabalho, em alguns desses trabalhos horríveis que podem ter feito antes? É assim que queremos sair da crise? Ou podemos perguntar: Existe alguma maneira de organizar a produção de bens e serviços básicos para que todos tenham algo para comer, todos tenham um lugar decente para viver, e possamos colocar uma moratória nos despejos, e todos possam viver de graça? Este não é um momento em que poderíamos realmente pensar seriamente sobre a criação de uma sociedade alternativa?

 

Se somos capazes o suficiente para lidar com esse vírus, então por que não tomar o capital ao mesmo tempo? Em vez de dizer que todos queremos voltar ao trabalho e recuperar esses empregos e restaurar tudo como era antes da crise, talvez devêssemos dizer: Por que não saímos dessa crise criando um tipo totalmente diferente de ordem social?

 

Por que não pegamos esses elementos dos quais a atual sociedade burguesa está grávida – sua surpreendente ciência, tecnologia e capacidade produtiva – e os liberamos, fazendo uso da inteligência artificial e das mudanças tecnológicas e formas organizacionais para que possamos realmente criar algo radicalmente diferente de qualquer coisa que existia antes?

 

Afinal, em meio a essa emergência, já estamos experimentando sistemas alternativos de todos os tipos, desde a oferta gratuita de alimentos básicos a bairros e grupos pobres, até tratamentos médicos gratuitos, estruturas alternativas de acesso através da internet, e assim por diante. De fato, os traços de uma nova sociedade socialista já estão sendo expostos – e é provavelmente por isso que a direita e a classe capitalista estão tão ansiosas para nos levar de volta ao status quo ante.

 

Este é um momento de oportunidade para pensar em como uma alternativa pode surgir. Este é um momento em que a possibilidade de uma alternativa realmente existe.

 

Em vez de apenas reagir de uma maneira e dizer: Oh, nós temos que obter esses 26 milhões de empregos de volta imediatamente, talvez devêssemos procurar expandir algumas das coisas que já estão acontecendo, como a organização da provisão coletiva.

 

Este é o ponto que Marx traz: que a raiz do individualidade real e da sua liberdade e emancipação, ao contrário do falso que é constantemente pregado na ideologia burguesa, é uma situação onde todas as nossas necessidades são cuidadas através da ação coletiva, de modo que podemos só trabalhar seis horas por dia, e podemos usar o resto do tempo exatamente como quisermos.

 

Em conclusão, este não é um momento interessante para realmente pensar sobre o dinamismo e as possibilidades de construção de uma sociedade socialista alternativa? Mas para trilhar mos um caminho tão emancipatório, primeiro temos que nos emancipar para ver que um novo imaginário é possível ao lado de uma nova realidade.

 

Nota:

1 É preciso uma resposta coletiva ao dilema coletivo do coronavírus

 

Fonte: Jacobin

 

Tradução, resumo e adaptação: José Carlos Ruy

 

05/05/2020

https://vermelho.org.br/2020/05/05/david-harvey-a-crise-e-o-que-podera-vir-no-pos-crise/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/206391
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