Sobre vírus, fissuras na ordem e rupturas

27/03/2020
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As velhas certezas estão desabando. O que parecia impossível pode acontecer. Para tentar salvar-se, a ordem capitalista faz contorcionismos. Mas este movimento mostra a todos: o que era inalterável pode ser transformado

 

Momentos de exceção legitimam respostas políticas excepcionais. Decretos de emergência, quase por definição, significam que os direitos e liberdades democráticas são restringidos. Situações como a de agora, porém, podem também oferecer oportunidades para experiências que expandam os limites do politicamente possível, de formas que ampliam a imaginação democrática.

 

As mudanças no que parece politicamente possível podem significar mais regulação estatal. Os orçamentos nacionais subitamente tornam-se mais flexíveis, oferecendo novo espaço político para argumentos keynesianos, em favor de ampliar a intervenção estatal para amenizar o choque. Em paralelo, a crise pode desencadear formas não-estatais de organização coletiva. O auxílio mútuo, enfatizado historicamente por pensadores anarquistas, torna-se concreto em muitas localidades.

 

As ações dos trabalhadores podem assumir novas dimensões – como quando os motoristas ou cobradores do transporte público recusam-se a receber dinheiro, por medo de contágio. Isso cria, como consequência não prevista, experimentos em mobilidade urbana gratuita, Mas também pode abrir horizontes para um sindicalismo de movimento, em que os sindicatos incorporam as demandas de outros atores sociais. Para pesquisadores, privilegiados, permanecer em casa pode ampliar o tempo disponível para refletir sobre ordens mundiais alternativas, e debater, a distância, como torná-las concretas.

 

Muitas destas experiências podem ser fugazes e reversíveis. A difusão da pandemia Covid-19 tem no momento terríveis consequências humanas. Os riscos de contágio não se distribuem de modo igual. Muitos têm obrigações que tornam o isolamento, ou o distanciamento social, difíceis. É importante enfrentar a possibilidade de desespero distópico que o cenário atual está criando para os mais vulneráveis, e ao mesmo tempo buscar horizontes democráticos, durante a crise. Para melhor ou pior, ela abre, no presente, brechas que poderão fornecer sinais do futuro.

 

A governança do Coronavírus

 

Um choque externo às realidades sociais e políticas atrai o que Vivien Schmidt chamou de empreendedores discursivos (orig: “discursive entrepreneurs”). Eles “servem como catalisadores para mudança, à medida em que concebem e articulam as ideias de comunidades e coalizões discursivas” (Schmidt 2008, 310). Uma intervenção bem sucedida de empreendedores discursivos pode conduzir à definição de possíveis mudanças de paradigma. De outra perspectiva, também pode significar o que sugere Naomi Klein (2020): “O futuro será determinado por quem estiver disposto a lutar mais intensamente pelas ideias que sustenta”. Talvez Naomi estivesse superestimando a capacidade de agência, mas as distintas plataformas de mídia social estão agora repletas de tentativas de articular respostas imediatas sobre como controlar a pandemia. Combinadas com as respostas dos Estados e outras instituições, elas produzem a emergência de um novo campo de experiência participatória. Chamâmo-lo “governança do coronavírus”.

 

A governança do coronavírus inclui singularidades ideológicas, como a oposição de direita pedindo ao governo de esquerda, na Finlândia, que assuma poderes mais autoritários. Mais globalmente, muitos estão se perguntando se a forma de lidar com a crise adotada na China oferece evidência em favor, ou contra, as possibilidades de manejo de que dispõe um Estado explicitamente autoritário. Neste debate, a Coreia do Sul é muitos vezes mencionada como um modelo possível.

 

O fato de os europeus e norte-americanos estarem agora mirando as experiências da Ásia como algo com que aprender pode ter consequências de longo prazo. Nas perspectivas eurocêntricas e coloniais tradicionais, ainda hoje muito vivas, são os outros povos que precisam seguir a Europa. Se os europeus e outros ocidentais aprenderem a aprender com os outros, o mundo pode tornar-se menos eurocêntrico e, ao menos potencialmente e em algum sentido, mais democrático. Para usar termos cunhados por Saara Särmä, é possível que o mundo pós-colonial seja ligeiramente mais pós-colonial. Por isso, aprender com a China também pode significar difusão mais eficiente de técnicas de controle autoritárias. Para futuros democráticos, de vários tipos, a crise do coronavírus apresenta tanto perigos quanto oportunidades

 

Como Naomi Klein argumentou (2007), em A Doutrina de choque, as oportunidades, diante de crises súbitas, são frequentemente definidas pelas elites capitalistas. Porém, um choque como o do coronavírus também pode permitir que outras ideias entrem no discurso público. Durante eclosão da “doença da vaca louca”, por exemplo, algumas demandas externas ao discurso da elite puderam entrar temporariamente na arena política mundial. Entre elas estavam as demandas de proteção da saúde pública e dos consumidores (Aaltola 1999). Os efeitos de longo prazo, no entanto, foram limitados. É possível, mas não está de forma alguma assegurado, que a atenção global sem precedentes da mídia para a crise atual ajude a converter as preocupações com saúde numa prioridade mais alta das políticas públicas, no futuro.

 

Erguendo um véu do passado

 

A reação à crise da covid-19 pode ajudar a derrotar presunções falaciosas do passado. A alegação de que o financiamento público de um Green New Deal é impossível é questionada pelas novas políticas para enfrentar a incapacidade dos mercados para lidar com a crise atual. Se há dinheiro público e vontade política para enfrentar a nova crise, por que não há para a crise climática? Países fiscalmente conservadores, como a Alemanha, estão se preparando para gastos públicos e déficits fiscais. O Partido Conservador britânico está trocando as políticas e “austeridade” por enormes estímulos fiscais,

 

A intervenção ampliada do Estado certamente envolve um elemento de solidariedade de classe: os interesses imediatos dos capitalistas estão em jogo. A natureza inerentemente política do capitalismo torna-se ainda mais visível quando as corporações não podem contar com o mercado e precisam blindar-se contra potenciais protestos de baixo (Zinn 1990, 328). Há um debate muito antigo entre os economistas e profissionais das finanças sobre os papeis e possibilidades das políticas monetárias e fiscais. Algumas das ideias em conflito estão em teste agora.

 

A crise também inspira propostas políticas para aliviar o sofrimento, ainda que uma parte importante da motivação seja o apoio a estruturas existentes de poder. Nos EUA, Tulsi Gabbard, postulante à indicação pelo Partido Democrata às eleições presidenciais deste ano, propôs uma Renda Básica Universal de 1000 dólares, durante a crise. Desde que fez a proposta, os planos de distribuir dinheiro tornaram-se ainda mais ousados, e agora até o próprio governo Trump está propondo oferecer cheques aos norte-americanos, para lutar contra o colapso econômico. Nos países que desfrutam de relativa soberania monetária, tornar real a proposta de Gabbard não seria um grande problema financeiro. Não há nenhuma garantia de que qualquer destas práticas excepcionais possa resultar em transformação de longo prazo, mas elas podem fazer com que demandas mais radicais tornem-se amplamente aceitáveis. Um programa de renda básica mais permanente poderia ajudar a prevenir contágio em futuras pandemias, já que as pessoas poderiam permanecer em suas casas muito mais facilmente.

 

O fim do TINA

 

Os atuais pacotes de resgate macroeconômico não são prova de mudança de paradigma. Mas há novas práticas em outras área também. As rotinas foram rompidas e há mudanças materiais na vida diária. Os hábitos de trabalho e lazer mudam. Tudo isso torna possível enxergar além das clássicas afirmações segundo as quais não há alternativas.

 

Os movimentos de base podem ganhar proeminência em tempos de crise. Novos grupos de ajuda mútua estão emergindo, ligados a atitudes para ajudar as pessoas em suas vizinhanças. Um grupo de Facebook em Helsinki, Finlândia, sustenta: “a ideia é estabelecer laços com os que estão em quarentena, os doentes e os vulneráveis – com membros das comunidades próximas a eles que possam entregar-lhes os suprimentos necessários (ou o que precisarem)”. Ainda é preciso saber até que ponto este tipo de organização poderia resultar em formas mais permanentes, e não-estatais,de construção de comunidades.

 

Num livro a ser lançado em breve, The Revival of Polítical Imagination [“O Ressurgimento da Imaginação Política”], Keijo Lakkala escreve: “especificamente, a utopia pode ser entendida como uma contra-prática social motivada por um desejo de ser melhor. A utopia tem a potência tanto de relativizar a sociedade atual (ao nos distanciar de uma dada ordem social) quanto de criar fissuras no presente e abrir possibilidades para novas formas de ser e fazer. A ruptura do presente abre uma pluralidade de futuros” (Lakkala, a sair 2020, 20). Em paralelo aos choques de oferta negativa e de demanda nos mercados, a crise pode ampliar a oferta e demanda por pensamento utópico.

 

A crise abre fissuras em “um mundo que se apresenta como fechado” (Holloway, 2010, 9). Quando as fissuras são suficientemente largas, a miríade de possibilidades na estrutura da realidade social, enterradas sob às práticas correntes, tornam-se visíveis. As salvaguardas da ordem atual adaptam-se de modo eficiente, e há demandas autoritárias tentando emergir. Mas outros utilizam a ruptura concreta do presente para expandir os horizontes democráticos, abrindo uma pluralidade de futuros.

 

- Teivo Teivainen é professor em política mundial na Universidade de Helsinki. E-mail: teivo.teivainen@helsinki.fi, Twitter: @teivoteivainen
- Pauli Huotari é candidato ao doutorado em political mundial na Universidade de Helsinki. E-mail: pauli.huotari@helsinki.fi, Twitter: @paulihuotari

 

 

Open Democracy

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/205541
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