Monopólio, desemprego e desigualdade: faces da crise capitalista (I)

A medida que caminha o “progresso tecnológico” de modelo capitalista, caminha junto, morro acima, o contingente de desempregados.

14/02/2020
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Foto: que-leer.com
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“A desigualdade está fora de controle”, diz recente informe da OXFAM. A organização – patrocinada por transnacionais que em nada podem ser “acusadas” de socialistas – apresenta dados que mostram que o patrimônio de 3,8 bilhões de seres humanos está concentrado por apenas 26 magnatas (“Bem Público ou Riqueza Privada”, 2019).

 

Já relatório da Organização Internacional do Trabalho da ONU, “Perspectivas sociais e do emprego no mundo” (2020), diz que a “insuficiência de empregos remunerados” afeta quase “500 milhões de pessoas”; desde a crise econômica mundial de 2008, o sistema capitalista não consegue mais criar “empregos suficientes” para absorver os jovens que se incorporam ao mercado de trabalho a cada ano. Segundo o diretor-geral da OIT, Guy Ryder, a “persistência e a amplitude da exclusão e das desigualdades relacionadas ao emprego” impõem obstáculos cada vez mais intransponíveis para que se possa encontrar um “trabalho decente”.

 

Algumas consequências disto são: a “uberização” da vida, ou seja, a precarização das condições de trabalho, o salve-se-quem-puder-cada-um-por-si das propostas de “contra-reformas”: sem direito a férias, nem a aposentadoria, nem a décimo-terceiro – e nem a um leito hospitalar em caso de acidente com o “uber” (pois a crise fechou o hospital).

 

“Esta é uma conclusão extremamente preocupante, que tem repercussões graves e alarmantes para a coesão social” – observa ainda o diretor da OIT. De fato, não precisa muita visão de mundo para se perceber os efeitos desta paupérrima coesão social no crescente discurso fascista – que contamina o mundo deste novo século: xenofobia, preconceito, violência, o pavor que acomete o ser fragilizado diante da falta de perspectivas; o desespero que, na falta de quem culpar pela própria desgraça, culpa o outro, o diferente, o imigrante, o periférico. O ódio que vota com ódio no candidato do ódio – porque, ao menos, “é diferente do que está aí”… Será?

 

Como os problemas da desigualdade e do desemprego se entrelaçam? Por que se agravaram desde a crise capitalista de 2008? E por que tudo tende a piorar – se nada for feito para frear o (erroneamente) denominado “progresso” de moldes capitalistas?

 

Vejamos algumas causas desta situação, que a ONU – lamentavelmente – apenas “sistematiza” em relatórios, mas nada faz de efetivo para mudar o cenário (dado o poder de veto dos EUA e seus aliados subalternos europeus-ocidentais, a organização não tem quase voz).

 

O problema do desemprego na “crise estrutural capitalista”

 

Conforme pesquisas sociológicas e histórico-econômicas – teóricas e empíricas –, que vem sendo aprofundadas por variadas correntes marxistas contemporâneas (István Mészáros, Robert Kurz, Moishe Postone, Eleutério Prado, etc), vivemos desde as últimas décadas do século XX um agravamento da “crise estrutural” do capitalismo (o que motivou, por exemplo, a degradação do estado de bem-estar social europeu).

 

Com a automação e o imenso aumento da produtividade industrial, resultado da Terceira Revolução Industrial (microeletrônica), a necessidade de trabalho humano (para tocar a produção) diminuiu significativamente. Porém, com esta baixa, também os lucros do capital tendem a diminuir: fenômeno que já tinha sido previsto por Karl Marx, no século XIX.

 

Embora, em um primeiro momento, os capitalistas mais simplórios possam ter entendido este processo de “enxugar trabalhadores” como algo “positivo”, a contraditória consequência disto é a criação de um obstáculo à acumulação de capital, o que pode encaminhar o atual sistema para um colapso. E a crise econômica de 2008 é uma dura “prova real” (com dados empíricos, calculada matematicamente) deste movimento de decadência do regime ocidental-moderno.

 

Em linhas gerais, essa queda tendencial da taxa de lucro se dá por causa da automação ascendente da indústria. Com maiores tecnologias em cena, as “taxas de lucros” da produção concorrencial capitalista tendem, não a aumentar, mas a decrescer: pois o trabalhador assalariado (que tende a ser despedido com a chegada da nova máquina) é justamente quem produz o “valor” (de onde o capitalista subtrai seu lucro)! As máquinas não produzem nada sozinhas: não trabalham por si só (não existem moto-contínuos, são uma impossibilidade termodinâmica).

 

Por menos que se precise, atualmente, de trabalhadores para operar as fábricas (que com sua supertecnologia produzem cada vez mais, em menos tempo), serão sempre os seres humanos – os trabalhadores – que farão as máquinas e demais criações materiais se transformarem na criação de “novos valores” (donde o capitalista retira o lucro)! É justamente neste processo de criação de “novos valores” que o patrão enriquece ainda mais, retirando de seu empregado, para si mesmo, a tal “mais-valia” (de que falava Marx).

 

A “mais-valia”, em poucas palavras, é aquela quantia que é roubada de cada trabalhador pelo seu patrão. O capitalista paga ao seu empregado somente aquilo que lhe é o necessário para sobreviver (comer, se vestir, pagar a condução, aluguel e portanto continuar vivo e trabalhando); entretanto, ele exige de seus empregados que trabalhem, a cada jornada, “um pouco mais de tempo” do que esse tempo efetivamente “pago” (que como dito, é aquele necessário à sua sobrevivência).

 

Mais-valia, na prática, é isto: o empregado trabalha “um pouco mais”, mas não ganha “um pouco mais”: é furtado sistematicamente pelo empregador, que assim enriquece, ao pôr em seus bolsos (leia-se “bancos”) esse valor-extra produzido pelo trabalho-extra do trabalhador.

 

O mecanismo da crise estrutural capitalista

 

Contudo, a “lógica capitalista” não é somente mesquinha: ela é irracional, inoperante e em longo prazo tende a destruir a maioria de capitalistas, concentrando o poder nas mãos de cada vez menos “donos do mundo”.

 

Vejamos como isso se dá:

 

1o) o empregado assalariado vai se tornando mais e mais dispensável ao processo de produção geral, e o desemprego aumenta drasticamente;

 

2o) por outro lado, com menor necessidade de trabalhadores, o capital aumenta a exploração do operário (pois este, com receio do desemprego, aceita mais restrições de direitos trabalhistas, previdenciários, redução salarial, etc);

 

3o) embora a tal “mais-valia” seja aumentada “relativamente” (já que a tecnologia traz incremento de produtividade, permitindo que o empregado superexplorado produza muito mais do que antes), apesar disso a “mais-valia” tende a diminuir em montantes absolutos, já que a tendência é haver cada vez menos trabalhadores a serem subtraídos (furtados em seu tempo e produção, através do mecanismo acima descrito). Sim! Pois conforme passa o tempo e aumenta a tecnologia, conforme os operários são dispensados de fábricas cada vez mais modernas, o capitalista terá cada vez menos empregados assalariados para explorar.

 

A “crise” na prática cotidiana

 

Uma forma bem concreta de se pensar este fenômeno é compreender que, no sistema capitalista, as riquezas materiais produzidas pelos trabalhadores, antes de se tornarem coisas a serem “usadas” pelas pessoas em seu cotidiano (portanto, antes de terem um “valor de uso”, nos termos marxistas), as riquezas produzidas têm a função de servirem de “valor de troca”, ou seja: de serem vendidas, gerando assim “lucro” ao proprietário da indústria.

 

Perceba-se que, se tais produtos não forem vendidos, obviamente o patronal não conseguirá embolsar seu lucro. O patrão enriquece na medida em que as pessoas realmente comprem aquela mercadoria que seus operários fabricaram. Porém, com o aprofundamento da “crise estrutural do emprego assalariado” (aqui descrita), ou seja, com a exclusão da maior parte dos seres humanos do trabalho assalariado (pois a indústria cheia de novas tecnologias já não necessita deles), acontece que, gradativamente, haverá menos gente com poder de compra.

 

Estando a maioria das pessoas “desempregadas” – excluídas do sistema produtivo e do “mercado” – não haverá portanto “consumidores” para o imenso montante de novos produtos saídos das indústrias supermodernas. Ou de outro modo: o capital, ao excluir uma enorme massa de gente do trabalho assalariado, acaba por se abster de explorar diretamente essas pessoas – o que diminui sua possibilidade de auferir lucro.

 

Consequências da crise capitalista

 

Resultado imediato disto para a grande maioria dos patrões: futuramente serão “ex-patrões”. Pois a concorrência capitalista, que já é brutal, ao ser aumentada, fará com que os capitalistas menores quebrem, agravando a concentração das riquezas mundiais nas mãos de pouquíssimas pessoas (poderosos controladores de tudo e de todos que, em breve, poderão talvez ser contados nos dedos, se a situação persistir).

 

Como diz o mencionado relatório da OXFAM: a “desigualdade” na distribuição de riqueza do mundo está “fora de controle”. Duas dúzias de abutres detêm o mesmo que metade da população miserável do planeta.

 

No caso do Brasil (que “normalmente” já é um gigante da desigualdade e ignomínia), dois anos após o golpe de Estado (liderado pelo MDB de Temer, o Congresso de Cunha e o STF vergonhoso de tão poucos), a contabilidade macabra girava na casa de meia-dúzia de donos de monopólios (Facebook, Ambev, Safra, Votorantim) controlando o mesmo que 100 milhões de pessoas! Resumo do eterno golpe brasileiro: Seis senhores-de-engenho contra metade da população.

 

Assim, a medida que caminha o “progresso tecnológico” de modelo capitalista (consolidado há uns dois séculos), caminha junto, morro acima, o contingente de desempregados – trabalhadores excluídos do sistema, e para nunca mais voltar. O que cabe a estas pessoas, normalmente, é apenas o “progresso” da miséria: passando a viver de modos não “monetarizados”, através de precárias atividades de subsistência. Mas mesmo essas atividades básicas de sobrevivência vem sendo dificultadas pela destruição dos recursos naturais promovida pelo capitalismo, em sua ilógica do “crescimento eterno”: fenômeno impossível em um planeta com recursos energéticos finitos, e cujo limite vem se aproximando.

 

O problema ambiental: outra história que é a mesma

 

Não cabe, neste breve artigo de explanação geral do problema do desemprego, tratar do problema ambiental (igualmente causado pela irracionalidade da “estrutura” capitalista em expansão).

 

Mas veja-se ao menos o alerta das Nações Unidas quanto aos desastres climáticos que “vem ocorrendo semanalmente” e “requerem investimentos bilionários”: tais desastres, provocados pelo aquecimento global, têm um custo avaliado em 2,7 trilhões de dólares.

 

Observemos ainda a constatação, também da ONU, de que a humanidade se encaminha para uma espécie de “apartheid climático”, em que um punhado de ricos – senhores do sistema e causadores desta situação distópica – dominarão os cada vez mais raros locais com menor sujeição aos efeitos do caos ambiental, legando aos demais humanos as consequências da mudança climática (em grande parcela provocada pela insensata concorrência de seu modo-de-produção capitalista).

 

Logicamente, tais “mudanças” – ou antes, “catástrofes” – ecológicas trazem sua contribuição à crise econômica global: a mesma OXFAM afirma que todo ano 20 milhões de pessoas imigram para fugir de secas, inundações, incêndios e outras desgraças.

 

***

 

Em suma: a crise do emprego (que inclui o processo de monopolização do capital e desigualdade social), assim como a crise ambiental, são ambas apenas faces da “crise estrutural capitalista”. E esta crise estrutural, por sua vez, não tem por consequências “somente” graves e recorrentes crises econômicas, mas tende a se amplificar socialmente, enquanto decadência ética, enquanto declínio civilizacional da (ainda) dominante “modernidade burguesa ocidental”.

 

- Yuri Martins-Fontes – Filósofo e doutor em história econômica pela Universidade de São Paulo, pesquisa o pensamento e literatura latino-americanos, os movimentos sociais, a ética marxista e os saberes originários. Exerce atividades também como professor, escritor, tradutor e jornalista. Coordena projetos de educação popular e formação política do Núcleo Práxis da USP. É autor do livro “Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui”, dentre outros. Desde 1999 colabora com meios independentes, como Caros Amigos, Revista Fórum, Agencia Latinoamericana de Información, etc.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/204762
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