A geopolítica do capital: pré-sal na mira dos EUA

30/01/2020
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O atentado de 11 de setembro de 2001 mudou a história e a doutrina de segurança dos Estados Unidos.

 

Desde o fim da União Soviética, o governo norte-americano acreditava ter entrado em uma era de controle total sobre os concorrentes.

 

De repente, com o ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono, a sensação de invulnerabilidade começou a desmoronar.

 

O episódio representou uma ruptura no sistema de relações internacionais, forjando um realinhamento dos Estados Unidos em relação à ordem global.

 

O governo então passou a exercer uma marcação maior sobre transações financeiras e intensificou as ações políticas e a cooperação jurídica com outros países.

 

A toque de caixa, eles aprovaram um novo plano nacional de segurança.

 

“Eu dizia que os EUA estavam agindo como um império, pela força, pela independência, pela reação sem levar em consideração regras internas e regras internacionais. E realmente, naquele momento, acho que nunca houve na história da humanidade nenhum País que concentrasse tanto poder. Não tinha outra potência fazendo contraste. Eram os EUA que faziam tudo para assegurar sua segurança”, afirmou o ex-embaixador do Brasil em Washington, Rubens Barbosa.

 

“Na doutrina de segurança norte-americana que foi passada logo em seguida tinha um parágrafo que dizia que os EUA farão qualquer coisa para impedir que uma outra nação se aproximasse do poderio americano”, acrescentou.

 

O Departamento de Segurança Interna, o DHS, e a Agência de Segurança Nacional, a NSA, foram encarregados de preparar o País contra novas ameaças.

 

Juntos, eles formam o núcleo de proteção cibernética dos Estados Unidos.

 

Com orçamento estimado em 8 bilhões de dólares, a NSA surgiu na década de 1950, para fazer espionagem eletrônica dentro e fora dos Estados Unidos, em continuidade ao trabalho desenvolvido a partir da Segunda Guerra Mundial.

 

Já o DHS começou com um orçamento 5 vezes maior. Foi criado em 2002, justamente para coordenar o serviço de inteligência depois do fracasso em prevenir os atentados de 11 de setembro.

 

Com o tempo, ficou evidente que essa grande estrutura de combate à corrupção era capaz de operar como um instrumento geopolítico. Sobretudo porque o papel de polícia mundial incorporado pelos Estados Unidos começou a esbarrar na soberania de outras nações.

 

Historicamente, o governo norte-americano tem invadido países em guerras armadas. Essas guerras se tornaram cada vez mais caras e ineficazes. Mas nesse contexto existiam poucos recursos para que eles pudessem interferir nas grandes disputas comerciais, a não ser que fosse apoiando golpes de Estado em favor de aliados.

 

A soberania nacional impedia qualquer atuação mais decisiva em favor dos interesses das companhias norte-americanas. Pois cada País deveria julgar os crimes cometidos por suas empresas e cidadãos.

 

Uma primeira brecha para subverter esse processo interno foi aberta a partir da criação de uma corte internacional para julgar crimes contra a humanidade, uma pauta humanitária legítima.

 

Em cima dessa brecha, surgiu a Convenção Anti-Suborno da OCDE, na qual os Estados Unidos pressionaram para que os países membros se comprometessem com o combate aos crimes de colarinho branco.

 

“Me parece que a ideia está correta, mas houve também uma deturpação. E hoje, tanto a FPCA como também essas leis que foram criadas supostamente para o combate à corrupção e ao suborno, estão sendo hoje utilizadas para a prática de lawfare, seja para fins geopolíticos, políticos e também comerciais”, avaliou o advogado Cristiano Zanin.

 

Assim os Estados Unidos montaram a parte central da nova estratégia geopolítica:

 

Com a NSA e o Departamento de Segurança Interna, teceram a maior rede de inteligência e espionagem do planeta.

 

Com a profusão de leis anticorrupção impulsionada pela Convenção da OCDE, ganharam poder para punir empresas estrangeiras através de um conceito bastante elástico. Bastava alegar que o dinheiro investigado, em algum momento, transitou por um banco nos Estados Unidos ou prejudicou um cidadão norte-americano.

 

Para colocar o bloco anticorrupção nas ruas, o Departamento de Justiça, o DOJ, passou a assinar acordos de cooperação com o Ministério Público em diversos países, especialmente da América Latina.

 

Rapidamente, ocorreu a cooptação de procuradores, juízes e delegados federais, instituindo uma parceria informal.

 

A forma de cooptação era simples: os procuradores ganhavam poder com as informações repassadas pelo DOJ sobre corrupção política em seus países. Depois, montavam denúncias contra grandes corporações nacionais que disputavam o mercado global.

 

Mais tarde, esses mesmos procuradores poderiam integrar grandes escritórios de advocacia e usufruir da indústria do compliance, sobre a qual falaremos nos próximos capítulos.

 

Nesse modelo, bastava ao DOJ direcionar as investigações para países ou empresas que, de alguma maneira, afrontam os interesses dos Estados Unidos. É só oferecer aos procuradores aliados o prato pronto, com os dados que alimentam as investigações.

 

Ex-procurador do DOJ, o advogado William Burck esteve no Brasil em maio de 2019 e admitiu que “não há a menor dúvida” de que os Estados Unidos usam o combate à corrupção como “um instrumento de política externa.”

 

No caso da Lava Jato, ele declarou que os procuradores brasileiros “trouxeram a raposa para tomar conta do galinheiro.”

 

Burck ainda citou na entrevista ao site Consultor Jurídico uma máxima cravada na história de seu País: “O negócio dos Estados Unidos é fazer negócio. O governo sempre vai querer garantir que as empresas americanas estejam bem onde quer que estejam. Eles querem sempre proteger seus negócios.”

 

E encontraram na Lava Jato os melhores parceiros que poderiam conseguir, pois em nenhum momento os agentes brasileiros manifestaram publicamente a menor preocupação com os interesses nacionais.

 

“As empreiteiras brasileiras eram a grande arma, instrumento de projeção do Brasil na África e América Latina. Você queimou todo esse canal de influência para abrir espaço para chinesas e empreiteiras do mundo inteiro. Quem vai para a África são as indonésias, tailandesas, turcas, gregas. Eles vão dar comissão também na África. Sai ‘nós’, entram outras. Que vantagem tem para o Brasil isso? Perdemos tudo isso porque a cruzada moralista liquidou com isso.”

 

Essa cruzada moralista merece um comentário à parte, porque não é apenas o governo dos Estados Unidos que usa a luta contra a corrupção em benefício próprio.

 

Ao longo das últimas décadas, grandes empresários passaram a injetar muito dinheiro na campanha eleitoral de políticos e na formação de jovens lideranças ao redor do mundo.

 

Magnatas do petróleo como os irmãos Koch, ou a família Mercer – que fez fortuna no mercado financeiro – criaram institutos e fundações que operam como verdadeiros “think tanks” dos novos movimentos conservadores que cresceram no embalo das redes sociais.

 

Onde a democracia representativa entrou em colapso, esses bilionários encontraram espaço para uma intervenção rigorosa através dessas fundações.

 

Assim avançaram as militâncias digitais que, no Brasil, foram usadas na defesa incondicional da Lava Jato, no impeachment de Dilma Rousseff e na promoção de uma ampla agenda neoliberal para a economia.

 

O Movimento Brasil Livre é fruto dessa árvore. Seus membros passaram pelo principal programa de treinamento da academia de lideranças da Atlas Network, uma fundação  que atua em mais de noventa países, com patrocínio dos Koch.

 

O PRÉ-SAL NA MIRA DOS EUA

 

Qual foi o impacto da descoberta do pré-sal brasileiro para o Departamento de Estado?

 

“Foi muito maior do que se imagina. Porque há uma lógica nos EUA, de que não podem ser vulneráveis a zonas de conflitos permanente, como é no Oriente Médio. Outra coisa que também estão tentando fazer é usar petróleo de lugares mais próximos dos Estados Unidos. Então o pré-sal, nesse sentido, serial o ideal”, afirmou o advogado e consultor André Motta Araújo.

 

O pré-sal foi talvez o melhor campo para os Estados Unidos fazerem uso da chamada guerra híbrida, uma estratégia militar que une táticas de guerra convencional e ciberguerra, misturando ainda fake news, lawfare e interferências no plano político-eleitoral. A Petrobras foi alvo desse tipo de artilharia.

 

Em 2008, a empresa foi vítima de um furto. Levaram quatro notebooks e dois HDs trancados no interior de um contêiner, com dados sigilosos sobre o pré-sal. As suspeitas eram de espionagem industrial, mas o episódio foi deixado de lado.

 

Nos anos seguintes, uma missão diplomática dos Estados Unidos no Brasil começou a enviar correspondências para Washington sobre a exploração do pré-sal.

 

Revelado pelo Wikileaks, o conteúdo das mensagens indicava que as petroleiras não gostaram nada do regime de partilha discutido ao final do governo Lula.

 

O fato da Petrobras ser a operadora de todos os campos transformaria as estrangeiras em meras financiadoras da prospecção, diziam seus representantes.

 

Havia ainda uma preocupação com o avanço da concorrência chinesa a partir do novo modelo.

 

Em 2013, Joe Biden, então vice-presidente dos Estados Unidos, visitou o Brasil e alguns países vizinhos, de olho no petróleo.

 

O governo norte-americano não escondia de ninguém que buscava aumentar sua influência na América Latina por causa do “papel estratégico” que a região representa para o futuro dos Estados Unidos na questão energética.

 

Biden, inclusive, disse à imprensa que os países do continente seriam os responsáveis por dois terços do crescimento do suprimento mundial de petróleo nas próximas décadas.

 

“A meta principal deles na América Latina, desde sempre, tem sido ter países alinhados completamente, ou mais importante, alinhados à política externa deles. É com isso que eles mais se preocupam agora”, disse o economista e pesquisador Mark Weisbrot.

 

“É impossível para os EUA ‘aceitar’ outra potência no hemisfério. Aí acho que tem várias coisas, tem o pré-sal aqui, e tem uma política externa que tem várias consequências. Uma integração da América do Sul, né? Eu sempre cito, tem uma capa da Economist que diz assim: ‘não é mais o quintal de ninguém’. Cê acha que… Isso para o pensamento estratégico americano é impossível”, acrescentou o ex-chanceler Celso Amorim.

 

“Então você tem aqui grandes reservas de petróleo. Além do interesse econômico, você ao mesmo tempo abre um canal de estratégias com os Brics, sobretudo com China e Rússia, que até hoje são os problemas centrais dos EUA, o resto é tudo secundário comparado com China e Rússia. Acho que isso mexeu com o estado profundo”, pontuou.

 

“E ao mesmo tempo você tem, eu acho, a partir de pelo menos 2008, 2009, uma visão de que o Brasil tinha crescido demais e era preciso cortar as asas. E aí, o que eles usam sempre, é a coisa da corrupção”, finalizou.

 

Em setembro de 2013, cerca de seis meses antes da primeira fase da Operação Lava Jato ser deflagrada, o mundo foi abalado pelo dossiê Snowden, que desnudou a espionagem dos Estados Unidos sobre lideranças políticas e empresas estratégicas.

 

A ex-presidente Dilma e a Petrobras foram vigiadas ilegalmente.

 

Snowden escreveu ao povo brasileiro para esclarecer a finalidade daquela violação. A carta dizia:

“A NSA e outras agências de espionagem nos dizem que, pelo bem de nossa própria ‘segurança’ – em nome da ‘segurança’ de Dilma, em nome da ‘segurança’ da Petrobras –, revogaram nosso direito de privacidade e invadiram nossas vidas.”

 

“Dizem que isso é feito para manter as pessoas em segurança. Estão enganados.”

 

“Esses programas nunca foram motivados pela luta contra o terrorismo: são motivados por espionagem econômica, controle social e manipulação diplomática. Pela busca de poder.”

 

“Há muito questionamento por conta de diversos países sobre a espionagem para fins comerciais, que não envolve interesse de segurança nacional, mas sim de interesse comercial. Então eles utilizam todo esse documento, esse arquivo de espionagem via FISA, que é uma corte que ninguém tem acesso, e utilizam nos autos para munição, para municiar as operações anticorrupção do FCPA, mas que na realidade visam, de alguma forma, privilegiar as empresas americanas”, explicou a advogada Valeska Teixeira.

 

TENTÁCULOS PELA AMÉRICA LATINA

 

Em julho de 2017, durante um evento promovido por um centro de lobby de Washington, Kenneth Blanco, que na época era advogado-geral adjunto do Departamento de Justiça, fez uma das mais comprometedoras revelações a respeito dos bastidores da Lava Jato.

 

Ao lado de Rodrigo Janot, então procurador-geral da República, Blanco escancarou que os procuradores brasileiros se comunicavam com os norte-americanos sem o acompanhamento da autoridade central, que tem o papel legal de intermediar a troca de informações e cuidar dos interesses nacionais em xeque.

 

Blanco não parou por aí. Ele celebrou a prisão de Lula como resultado do sucesso da cooperação internacional na Lava Jato. E de quebra, mostrou como os Estados Unidos espalharam seus tentáculos por outros países da América Latina.

 

A declaração de Blanco é a prova final de que os Estados Unidos conseguiram transformar os procuradores do continente em seus colaboradores, sem a necessidade de uma guerra declarada.

 

Hoje, esse coleguismo resulta em encontros curiosos, como o que ocorreu no final de 2019 entre Victor Laus – o desembargador que condenou Lula em segunda instância – e um “conselheiro” da embaixada dos Estados Unidos em Brasília.

 

O agente do governo norte-americano queria trocar figurinhas sobre como a Justiça brasileira está tratando grandes casos de corrupção, como a Lava Jato.

 

No final da reunião, Laus ainda afirmou que é muito importante que os Estados Unidos se aproximem dos nossos tribunais, pois isso possibilita maior “integração e articulação entre as instituições”.

 

“O Brasil tem sido o grande prêmio para eles. Eles perderam o Brasil depois de 2002 até 2016. Eles não tinham esse País no bolso. O Brasil é mais difícil do que, especialmente, estes outros países para os EUA conseguirem se aproximar, porque tem uma longa tradição, uma questão de tradição moderna de independência, mesmo na ditadura militar”, disse Weisbrot.

 

“Quando essa história for finalmente escrita, eu acho que o golpe contra Dilma, Lula e o PT, será visto como um dos mais importantes apoios dos Estados Unidos, em grande escala, a um golpe na América Latina”, finalizou.

 

- Luis Nassif e Cintia Alves, do GGN

 

30/01/2020

https://jornalggn.com.br/noticia/a-geopolitica-do-capital-pre-sal-na-mira-dos-eua/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/204486
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