O bolsonarismo é um subhumanismo

24/07/2019
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Claro está, para quem escreve esse curto ensaio, que o tema merece um tratamento mais abrangente, coisa que será apresentada futuramente. Aqui, fica a menção ao fato de que, por necessidade conjuntural, é que o presente texto foi escrito. Seu objetivo é de permitir que, a partir da nossas experiências e vivências cotidianas, sejamos capazes de romper a atividade de adjetivações e passemos, de uma outra maneira, a analisar o movimento/pensamento que vem sendo desenvolvido em nossas latitudes. Por mais que abundem em análises, faltam – ao nosso entender – novas coordenadas político-filosóficas que contribuam na hora de demarcar o território político-conceitual que permeia o bolsonarismo. É, justamente, por esta falta, que o exposto aqui adquire sentido e validade.

 

Subhumanismo

 

I

 

 

De distintas maneiras é definido o fenômeno do bolsonarismo. Não faltam exemplos sobre isso. Alguns o veem como neofascista4, outros enquanto movimento revolucionário conservador5. Seja como for, salta à vista o caráter de movimento reacionário, tanto de massas ou de vanguarda do atraso6.

 

Dentre as diversas definições ou tentativas, o que não foi dito é que o bolsonarismo é um subhumanismo. Exatamente isso deve ser esclarecido para que não restem dúvidas sobre o caráter e o potencial destruidor que cerca este pensamento/movimento. A fim de dissertar sobre este movimento, é realizada aqui um ensaio político-filosófico que não se atém a uma narrativa histórico-cronológica.

 

* * *

 

O clima de época no qual estamos imersos parece conter uma contradição que não tem lugar para superação. Se, por um lado, ele permite maior visibilidade e conhecimento de crimes brutais e genocídios, por outro lado, permite, também, que a experiência destes seja vivenciada enquanto Naturalisierung da barbárie. Outrora, as imagens de uma guerra como a do Vietnã causaram repúdio e mobilizaram milhões por todo o mundo. Hoje, em contrapartida, as guerras e as ondas de refugiados são assistidas como um espetáculo que alimenta um ódio em direção às vítimas que se refugiam.

 

As causas para uma mudança na empatia ou mesmo na solidariedade (que ainda existem) não são frutos espontâneos de um esgotamento da vontade de ajudar, algo próprio das relações sociais.

 

O poder em sua forma concentrada se pôs a construir, a partir de sua experiência ao longo das guerras no século XX, um tipo de sensibilidade moldada. Ora, o ato de comer (pela manhã ou pela noite) enquanto assistimos a programas violentos, assim como ver uma série de ficção ou de terror com cenas de tortura ou ir ao cinema para desfrutar de violência em espaço coletivo, tudo isso – que não é casual, como se estivesse desprovido de interesses e objetivos a serem transmitidos de forma normalizada –, mesclado com doses de vídeos de assassinatos compartilhados em escala massivamente transnacional por aplicativos como WhatsApp ou espaços virtuais comunitários como Facebook, proporciona uma tendência em que matar ou morrer são sentidos, vivenciados e realizados de modo trivial e fantásticos.

 

A exemplo de nossa empiricidade sentida enquanto brasileiros, a violência tornou-se parte comum de nossa experiência cotidiana, perpassando todos os âmbitos possíveis, de modo que seria mesmo tarefa inútil negar o seu caráter de instrumento pendular de medição da própria existência.

 

Graças as tecnologias hodiernas e as revoluções nos meios de produção comunicativos, a violência, por um lado, pode transpassar as dimensões da experiência coletiva, transformando aquele sofrimento que margeia a morte em um espetáculo experimentado em escala industrial, e, por outro lado, pode ela reconfigurar em hábito comum a sensibilidade frente a experiência do terror. Terror, que outrora enfrentado por um tipo de sensibilidade humanista, era denunciado enquanto antihumanismo virulento próprio dos horrores de guerra.

 

Parece que, independente das latitudes, o peso do complexo fabril-financeiro da indústria bélica atua constantemente ditando medidas, ainda que não sejam absolutas, para neutralizar qualquer forma alternativa de altruísmo, seja ele qual for. Daí a aberração da figura do liberal-conservador: “liberal” enquanto salve-se quem puder no “mercado” – entidade coberta pela áurea místico-religiosa de ser um espaço onde podem ser encontradas as soluções do teu problema; “conservador” frente ao questionamento (seja ele de ordem moral, intelectual, religiosa ou política) da barbárie que o “mercado” trouxe até aqui e ao questionamento das faltas de alternativas coletivas que o poder vem guiando a humanidade.

 

Neste cenário pincelado acima, que não é obra do acaso, tampouco fruto da intencionalidade, algo veio à tona. De prática circunscrita a um lugar, aquilo que parecia ter sido derrotado, sob novas condições históricas, agora aspira a ser regra geral. O espírito político de nossa época se encontra dividido e a banalização do mal caminha para ser sua tendência sucessora, apresentando um genuíno modus operandis de fazer política (prático-ideológico): o subhumanismo.

 

Na qualidade de pensamento e de movimento, o subhumanismo se manifesta como rebaixamento transversal, como exituspolitics e como memória atual mítica.7 Estes três aspectos são indissociáveis. Estes três aspectos regem a lógica interna do bolsonarismo. Estes três aspectos serão no presente ensaio político-filosófico tratados.

 

Rebaixamento transversal e Exituspolitics

 

II

 

Falar em racismo como vetor central de acusação e de definição do bolsonarismo, não é apenas simplista, mas sobretudo um equívoco. Isso é assim, porque tal caracterização por si só não permite entender o significado de um movimento e pensamento que não apenas possuem aspectos endógenos ao cenário político-cultural local.

 

Dizer que é um movimento racista em seu sentido tradicional, como ódio a pessoas negras ou não-brancas, gera inúmeras situações complexas e inconveniências explicativas diante do sentido comum das pessoas, já que as próprias relações pessoais e políticas da máxima figura pública, representante visível deste movimento, está atravessada por relações em que negros e brancos se encontram envolvidos.8 Ainda que o próprio Bolsonaro seja mestre em declarações e manifestações de racismo.

 

Frente a esta dificuldade acima mencionada é que, precisamente, o conceito de rebaixamento transversal aparece como mais adequado. No imaginário do bolsonarismo, pelas próprias condições brasileiras da formação do poder de dominação, as divisões raciais não são elementos suficientemente fortes para a construção de um movimento de massas com pretensões revolucionárias conservadoras de unificação nacional em torno da valorização da família e da “nossa tradição judaico-cristã”9. O racismo no Brasil não gera nem movimentos massivos de supremacistas brancos nem públicos próprios, igualmente massivos, como é o que pode ser observado nos EUA.

 

Neste sentido, parece-nos que, ao invés de utilizar o conceito racismo estrutural – entendido como aspecto basilar que atravessa nossa sociedade brasileira de modo estruturante e estruturado –, o conceito de rebaixamento transversal tem sua força na possibilidade de permitir a apreensão do plano simbólico-imaginário da construção de um movimento heterogêneo no qual o ser-outro é tomado como “inferior” em sua múltipla diversidade.

 

Vale dizer, que o uso de rebaixamento transversal não se direciona ao estudo da sociedade em sua constituição-formação. Antes, é aplicado para esclarecer como, por uma parte, uma gama de sujeitos dos mais variados grupos sociais, políticos, sexuais e religiosos, aparece estando completamente conjugada sob o prisma de um mesmo bloco, o do “inferiores”, e, por outra parte, como, também, indivíduos de diferentes grupos sociais, políticos, sexuais e religiosos, se articulam enquanto movimento com base num imaginário-simbólico comum, no qual o ser-outro é rebaixado ontologicamente de estatuto. Por isso que, entendemos, seria uma destreza mágica querer atribuir ao bolsonarismo a condição de ser um movimento/pensamento que se articularia em torno das variáveis “brancos”, “homens” e “ricos”, limitando a análise a pensar este fenômeno a partir de uma forma binária de racismo, que o senso comum assimila como sendo o único existente.

 

A ideia de transversalidade (e de racismo) adquire o significado, então, de um mecanismo o qual se realiza mediante um processo de redução de diferentes grupos – sejam eles imaginários ou não, negros ou não – à onto-condição de seres inferiores, sub-humanos, menos que outros. De tal maneira que, a título de exemplo, as figuras do “esquerdista”, do “comunista”, dos “vermelhos”, da “feminista”, do “gay” etc., são expostas como sendo a de seres que representariam o “mal”, a “maldade”, a “sujeira”, a “corrupção”, etc., atributos compulsivamente remetidos a qualidades inferiores, que imputadas pelo bolsonarismo aos seus “adversários” (agora subtraídos ao denominador comum de “inimigos”), dão vida a um imaginário de uma força social que se edifica a partir da divisão dos indivíduos entre “superiores” e “inferiores”.

 

Nessa lógica, nada é mais claro do que a assimilação automática segundo a qual o “bem” combate o “mal”. Sendo, este último, fruto de grupos minoritários ou “comunistas” que devem ser definitivamente eliminados, banidos ou presos.

 

A desvalorização do ser-outro atinge uma transversalidade em que negros, brancos, comunistas, gays, feministas, etc. são vistos e sentidos como sendo seres de uma ordem inferior que não deveriam existir, pois resultam ser fator de crises (políticas e econômicas, morais e culturais) para a ordem das coisas. O ódio dirigido ao negro pela forma mais visível de racismo é metamorfoseado e aplicado a um campo maior de indivíduos seguindo a mesma lógica da inferioridade racial, agora transmutada em subhumanidade devido a inferioridade moral, política, religiosa e sexual (além da racial).

 

Em síntese, o rebaixamento transversal conduz a uma política de criação imaginária de subcidadãos. Outrora, no feudalismo, apreciados em castas e estamentos divididos, eram os indivíduos entendidos segundo graus desiguais na ordem do mundo. Na concepção subhumanista são os indivíduos vistos como seres que podem ser rebaixados a um grau de inferioridade, o que leva a uma forma do fazer político que encontra na agressão do ser outro (inferior) sua razão de ser.

 

Antes de seguirmos, vale mencionar que – longe de querer identificar qual seria a força hegemônica que dita as políticas no interior do movimento subhumanismo-bolsonarista –, queremos sinalar para o fato de que, no contorno deste pensamento de rebaixamento transversal, é possível gestar um movimento composto por várias frações e indivíduos de diferentes classes sociais com distintos tons (negro ou branco), diferentes religiões e gênero variado (ainda que o poder recaia na figura patriarcal). Tanto os ódios, bem como os desejos e sensibilidades direcionadas por disparadores de WhatsApp, memes, vídeos, fake news, etc. permitem construir uma unificação, um movimento de unidade na diversidade em consonância com as pretensões de unificação nacional entre os brasileiros do Sul ou do Norte em prol da “nação democrática”.10

 

III

 

As “velhas” formas de interações políticas atribuídas ao direitismo tradicional, isto é, suas manhas e artimanhas parlamentares e conchavistas, devem ser derrubadas e desprezadas não por manterem o sistema de espoliação, degradação e exploração, senão justamente por falharem na defesa e manutenção da ordem em suas hierarquias de cor, gênero, religião e divisão no mundo da reprodução do ser social. Além do mais, essa “velha política” está presa aos tempos da vida da direita tradicional, sejam os tempos do parlamento, seja os dos próprios interesses burocráticos partidários. A ruptura com isso deve ser a realização de uma intervenção que proponha uma mobilização constante que toque temas não mais restritos a uma pretendida Sachpolitik (questões/coisas próprias da política). Assim sendo, o lugar da “velha” intervenção passa a ser ocupado, pensamos, por outra lógica, nova, a da exituspolitics.

 

Respeitando os limites do presente ensaio, antes de seguirmos com a apresentação desta nova lógica de intervenção, realizaremos, brevemente, uma digressão para situar o contexto do aparecimento dessa referida lógica.

 

Os ritmos das sociedades com democracia sem públicos (democracy without publics) devem dar lugar a ação direta para-um-fim do Outro. O espetáculo fantasmagórico da representatividade de não representados, coisa própria do momento atual da bürgerliche Gesellschaft, é atacado, mas não para gerar alternativas superadoras ou para realimentar o falido jogo democrático liberal entre diferentes.

 

Diante desta moldura, pareceria mesmo invocação determinista querer chamar a atenção para a homologia que há no resultado alcançado pela conformação a que chegou o absoluto financeiro em sua forma atual – condicionado em sua tentativa permanente de realizar seu poder homogeneizante sem oposição – e aquilo que o subhumanismo representa.

 

Ora, as formas das guerras de repartições do mundo segundo as vontades múltiplas do núcleo monopolista conduziram, no século passado, à enfretamentos mundiais e configuraram um espaço temporal de destruição reabilitadora de mercados. Atualmente, os modos de repartições parecem operar, ao contrário: por meio de uma lógica de dominação que atende a vontade de um absolutismo financeiro, cuja força totalitária exige uma otimização-destruidora de tempos burocráticos de trâmites e transições, numa ofensiva de homogeneização que vê no jargão liberal de “abertura” uma decoração a ser deixada no passado.

 

Enquanto espaço decisivo dos desejos do poder em seus mais variados aspectos, o campo plural da política vigente (que não significa participação igualitária e justa) viu nascer décadas atrás uma forma de intervenção com promessa de não confronto bélico mundial entre povos em prol de um frustrado ethnopluralismus.11 Ainda que fracassada, a promessa deste intervir - a qual foi trazida à luz ainda sob as lembranças muito recentes dos poderes materiais e simbólicos da era de destruição em massa que nascia a partir de Hiroshima e Nagasaki - deixaria uma herança para o dever-ser da política enquanto procedimento de eliminação dos “inferiores”, em diferentes lugares, como processo de homogeneização das culturas/sociedades locais (traduzidas para o caso como “etnias”), com o objetivo de evitar uma nova catástrofe mundial.

 

Aspiração e promessa à parte, o procedimento de homogeneização parece ser – agora retornando de nossa digressão – o fim distópico perseguido pelo subhumanismo, também o bolsonarista. O que dizer da busca por uma identidade/tradição judaico-cristã de nossa etnicidade-única, átomo unificador de uma pretendida brasilianidade?

 

No universo desta mencionada pretensão distópica, a intervenção político-cultural a partir de uma visão/pensamento de rebaixamento transversal se concretiza, no bolsonarismo (e em outros movimentos subhumanistas), mediante a realização da exituspolitics, aqui devidamente esclarecida como política-para-o-fim, política-para-a-morte do outro num duplo movimento que abarca corpo e imagem.

 

Na morte e no fim corpóreo do outro (outros), rebaixado a onto-condição de inferior, reside a primeira face da exituspolitics. Trata-se, pois, de um fazer político que almeja a eliminação física, ultrapassando os próprios limites da política planificada como dialética do reconhecimento.

 

O fim-morte deve se dar em duas dimensões que o plano da corporeidade carrega. Primeiro, as mediações corpóreas/corporais devem ser eliminadas tanto por serem recipientes de “maldade”, “sujeira”, “imoralidade”, etc., e, segundo (e aqui reside o objetivo maior da política-para-o-fim), por serem “recipientes” portadores de projetos coletivos, de tradições de resistências desconstrutivas e de lembranças de lutas ofensivas, de conscientização política e de memória que alimenta novas resistências.

 

Na qualidade de fim e morte da imagem daqueles indivíduos entendidos como inferiores (inimigos), se encontra o outro aspecto da exituspolitics, entendido como uma política de difamação, perseguição e destruição da imagem pública.

 

Este referido aspecto parece ser um móvel constante da práxis do bolsonarismo. A reação em cadeia e em manada de agentes virtuais (milicianos ou não) na busca por corpos que devem ter suas bioimagens destruídas é um elemento de mobilização permanente do subhumanismo bolsonarista em sua política-para-o-fim.

 

Da lembrança-não-passiva, aquela que remete ao corpo-ativo, e que portanto, não se trata de qualquer representação, a bioimagem é portadora em si de ação e, acima de tudo, Bíos (vida), ao mesmo tempo que é uma manifestação, do mesmo modo, da relação de alteridade em que outras(os) se reconhecem em e na criação de movimento. Daí que o aniquilamento da imagem não centraliza suas forças sobre uma representação qualquer. O extermínio é a uma só vez, por um lado, imposição de poder, e, por outro, eliminação das possibilidades de empatias e reconhecimento pelos “inferiores”. O exemplo de Marielle Franco ilustra essa situação. Posta ao fim, sua existência deveria ser abolida, também, no plano da bioimagem. Na lógica do subhumanismo sua morte deveria ser dupla. Aqueles que são identificados e marcados por sua inferioridade plural devem ser assassinados, também, no plano da imagem privada e pública.

 

Um essencial aspecto, o qual pode ser entendido como articulador do duplo movimento acima exposto, é que a própria exituspolitics abre (expande) o campo da política direitista a outros tempos e espaços, não mais submissos às formas tradicionais de operar a dominação. Se o objetivo da “velha” e da “nova” política direitista parece o mesmo, a realização das convicções conservadoras recebe uma valorização diferente e passa a guiar uma prática política de constante mobilização na vida cotidiana, entendida como espaço em disputa na construção de hábitos, sentidos e hegemonia. Neste contexto é que corpo e imagem adquirem um papel singular na mobilização permanente contra os “inimigos” do bolsonarismo.

 

 

Memória atual mítica e Sentido

 

IV

 

Para que o subhumanismo bolsonarista possa atuar completamente e abarcar uma vasta gama de indivíduos das mais distintas frações classes, torna-se imprescindível a necessária implementação viva, não-ilusória, do complexo categorial que fazemos ser conhecido como memória atual mítica. Isso, porque, de outra maneira, a justificativa para o procedimento homogeneizante da exituspolitics não encontraria sua eficácia duradora, já que a política-para-o-fim não apenas deve ser justificada, mas também bem-vinda e adotada.

 

Tragicamente expresso em tons de cores e gêneros diferentes – os quais poderiam pertencer àqueles que reconhecem a sua opressão –, o querer das vontades transversais por uma solução final unificadora não é fruto exclusivo nem da ignorância nem da força. Neste caso, a memória do presente pode ser reveladora.

 

De que maneira seria possível que se aceite e se queira a eliminação do outro no atual estágio do “jogo democrático”, constituído pelo conflito de interesses de diversas facções de classes e grupos de indivíduos, sem que seja transformada a própria memória atual em mítica?

 

Em sua condição natural, a memória atual mítica vem a ser um movimento que vai da sua ação enquanto necromemória até sua realização como comungação. Esse ciclo representa uma valorização permanente, a qual não deve ser interrompida sob pena de que o novo sentido e intencionalidade possam falhar e entrar em conflito.

 

Quando tratada de perto, a necromemória pode, em razão de sua própria nomenclatura, conduzir a um entendimento pelo avesso. De fato, ela não é memória morta, tampouco memória dos mortos. Antes, é memória de morte de um passado e tem seu modus operandi revelado, precisamente, no esforço de construir um novo sentido, com nova intencionalidade e nova sensibilidade históricas. Por esse motivo, a necromemória é usada como uma espécie de dispositivo de revisão subhumanista, o qual visa apagar e rescrever o que aconteceu. De maneira que em suas operações, os mortos se suicidaram, os torturadores foram heróis e os genocidas libertadores de povos.

 

Para que esse dispositivo perigoso se realize, não basta apagar o passado, torna-se necessário que o presente seja vivido sem qualquer remorso, sem que pese sobre nós a necessidade eterna de mantermo-nos dedicados a não repetir aquilo que brutal e tragicamente já vivenciamos. Dessa maneira, o outro aspecto do ciclo de valorização constante da memória atual mítica aparece como comungação.

 

Essa memória é, para os seus adeptos, aquilo que se vivencia no presente em conformidade com as pretensões e imaginários do subhumanismo brasileiro. Para tanto, aquele tradicional senso comum – compreendido enquanto formado a partir de experiências cotidianas, tradições passadas transmitidas, hábitos comunitários, superstições generalizadas, crenças não questionáveis, conhecimento não sistematizados, etc. – dá lugar a um outro, que para tanto, funciona por adesão (racional ou não; emocional ou não) e aceitação de um passado reconfigurado enquanto presente normalizado, onde tudo parece ser permitido – seja o uso da eliminação do ser outro na política (de seu corpo ou de sua bioimagem) até o “direito” de racismo.

 

O processo que vai da necromemória à construção de um novo sentido comum aderido e aceito, exige, para sua realização, a comungação daqueles que conformam o movimento bolsonarista (subhumanista). Sendo assim, e isso deve ser frisado, aqueles indivíduos adeptos de tal movimento/pensamento não devem ser entendidos nem como seres passivos, nem muito menos como alienados.

 

De fato, se esconde por trás deste mencionado processo de realização da memória atual mítica todo um procedimento que destoa de uma operação ópia. Os mecanismos que contribuem para uma alteração da própria memória atual e, por conseguinte, atuam na construção de sentidos, não são obras guiadas por uma pretensão que visa anestesiar as forças sociais. Deste modo, a reversão da memória coletiva de acontecimentos recentes – como pode ser o exemplo tanto do lulo-petismo, que passou de associação quase que automática de “combate à miséria e distribuição de renda”, para uma associação quase que instintiva à corrupção e crise; como o exemplo da defesa e criação de um passado glorioso, supostamente vivido nos tempos “sem violência” e “corrupção” da última ditadura brasileira – deve ser associada ao fazer de uma nova práxis política (que abarca pós-verdade e framings) que aspira recriar, enquanto sentido e memória, aquilo que aconteceu, por exemplo, seja há 30 ou há 5 anos.

 

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4 Boito Jr, Armando. TUTAMÉIA Entrevista Armando Boito Jr. sobre governo Bolsonaro 2019, in https://www.youtube.com/watch?v=SEqlbPzw8G0

 

5 Nobre, Marcos. A revolta conservadora: Bolsonaro será o líder de um governo antiestablishment, in “Revista Piauí”, Edição 147, Dezembro 2018, https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-revolta-conservadora/ .

 

6 Lima, Wilson/ Oliveira, Germano. Generais sob ataque, in “ISTOÉ”, nº 2576 10.05.2019, https://istoe.com.br/generais-sob-ataque/

 

7 As considerações feitas aqui sobre rebaixamento transversal, exituspolitics e memória atual mítica como elementos chaves na hora de compreender o subhumanismo, e, por conseguinte, o bolsonarismo, são apresentadas como forma de poder instaurar, no debate atual, um olhar que abarque o movimento em suas raízes, a partir de considerações adequadas. Vale dizer, também, que tais categorias ainda receberão uma abordagem mais detalhada em outro momento.

 

8 Lara, Bruna de. 'A direita ganhou as classes populares. Eles souberam fazer esse trabalho, e a gente se fudeu' Uma conversa com Gabriela Moura sobre identitarismo nas eleições, in “The Intercept Brasil”, https://theintercept.com/2019/01/03/direita-classes-populares-identitarismo/

 

9 Discurso de posse feito por Jair M. Bolsonaro no dia 01 de janeiro de 2019 no Congresso Nacional. https://veja.abril.com.br/politica/leia-a-integra-dos-dois-primeiros-discursos-do-presidente-jair-bolsonaro/

 

10 Íntegra das primeiras falas de Bolsonaro após ser eleito presidente: Discurso para as emissoras de televisão. Segunda fala feita após ser eleito presidente do Brasil no dia 28 de outubro de 2018. https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/28/veja-a-integra-das-primeiras-falas-de-bolsonaro-apos-ser-eleito-presidente.htm

 

11Para uma compreensão acerca do conceito de ethnopluralismus ver “ Stöss, Richard. Die "Neue Rechte" in der Bundesrepublik, in “Dossier Rechtsextremismus“, 2016”.

http://www.bpb.de/politik/extremismus/rechtsextremismus/229981/die-neue-rechte-in-der-bundesrepublik?rl=0.6663846201140731

 

Antônio Camêlo

Doutorando em História pela Ruhr-Universität Bochum, Alemanha.

 

Virgínio Gouveia

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo, Brasil.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/201196
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