Por dentro de um edifício do Texas onde o governo mantém crianças imigrantes

27/06/2019
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Centro de detenção da Patrulha Fronteiriça
Foto: Cedro Attanasio/AP
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Centenas de crianças imigrantes que foram separadas de seus pais ou familiares estão mantidas em condições sujas, negligentes e perigosas nas instalações da Patrulha Fronteiriça no Texas. Esta semana, uma equipe de advogados entrevistou mais de cinquenta crianças em uma daquelas instalações, em Clint, Texas, a fim de monitorar o compromisso do governo com o acordo de Flores, que exige que as crianças devam ser mantidas em condições seguras e higiênicas e que sejam retiradas da custódia da Patrulha Fronteiriça sem delongas desnecessárias. As circunstâncias que os advogados  encontraram foi chocante: surto de piolho e gripe seguem sem tratamento, e as crianças estavam imundas, dormindo no chão gelado, tomando conta uma das outras devido a falta de atenção dos guardas. Algumas delas estavam nos centros de detenção há semanas.

 

Para discutir o que os advogados viram e ouviram, falei por telefone com um deles, Warren Binford, professora de direito da Willamette University e diretora de seu programa de consultoria júridica. Disse-me que, embora Flores seja um exemplo de corte ativo, alguns dos advogados ficaram tão perturbados com o que viram que decidiram falar com a midia. Nós discutimos o cotidiano das vidas das crianças sob custódia, o papel que os guardas representam no centro, e o que deve ser feito para reunir muitas dessas crianças com seus pais. Nossa conversa foi editada para dar mais clareza e devido a duração.

 

Quantos advogados estavam junto com você? E você pode descrever o que aconteceu quando você chegou?

 

Nós estávamos em 10 advogados, médicos, e intérpretes em EL Paso esta semana que passou. Nós não planejamos ir ao centro de detenção de Clint, porque não é um centro que historicamente recebe crianças. Não estava nem no nosso radar. Era um centro que historicamente era ocupado por no máximo 104 pessoas e era um lugar para adultos. Então nós não estávamos esperando ir lá, e então nós vimos o relatório, na semana passada, que mostrou que as crianças estavam sendo levadas à Clint, assim decidimos colocar quatro equipes lá. As equipes são de um a dois advogados, ou um advogado e um intérprete. A ideia é de que nós entrevistaríamos uma criança por vez, ou um grupo de irmão de cada vez.

 

Quantas entrevistas vocês realizam por dia?

 

Fazemos uma rápida entrevista para primeiro ver se as necessidades básicas das crianças estão sendo atendidas. Está quente o suficiente? Eles tem um lugar para dormir? Faz quanto tempo que estão lá? Eles estão sendo alimentados? E se parece que as necessidades básicas estão sendo atendidas, então não precisamos entrevista-los mais. Se, quando começamos a entrevistar as crianças, eles começam a nos contar coisas como que eles estão dormindo no chão, estão doentes, ninguém está cuidando deles, eles estão com fome, então os entrevistamos de uma foma mais profunda. Essas entrevistas podem duar duas horas ou mais. Então depende basicamente do que as crianças nos contam. Dessa forma, eu diria, com um time de quatro advogados, se você esta entrevistando muitos grupos, o que algumas vezes tentamos fazer, ou quando se você entrevista crianças mais velhas que estão cuidando de crianças mais novas, então você está entrevistando, vamos dizer, alguma coisa entre dez a vinte crianças por dia.

 

Quantas crianças estão no centro de detenção agora, e vocês tem alguma noção de como separá-los pela região de onde são?

 

Quando chegamos, na segunda-feira, havia aproximadamente 350 crianças. Eles estavam constantemente recebendo crianças e constantemente transferem crianças para um espaço O.R.R. (Centro de Acolhimento à Refugiados). Então o número é dinâmico. Nós ficamos assustados com o número de crianças que estavam lá, porque é um espaço que tem a capacidade para 104 pessoas. E nos informaram que o centro acabou de ser expandido, mas eles não nos levaram para fazer um tour no local e legalmente nós não temos o direito de visitar a facilidade.

 

Nós dirigimos no entorno depois e descobrimos que eles colocaram um galpão gigante no lugar. E parece que esse galpão supostamente aumentou a capacidade para um adicional de 500 crianças. Quando conversamos com os agentes da Patrulha Fronteiriça no final da semana, eles confirmaram a suposta expansão e quando conversamos com as crianças uma delas descreveu uma quantidade de aproximadamente 300 crianças naquele espaço, naquele galpão, basicamente, em algum momento quando ele chegou. Não tinham janelas.

 

Então o que fizemos foi identificar as idades das crianças, e ficamos em choque pelo numero de crianças pequenas que estavam lá. Na primeira vez que fomos lá, tinha mais de 100 crianças. E havia mães adolescentes que também estavam lá, e então começamos a puxar as mães adolescentes e seus bebês, começamos a nos certificar de que suas necessidades estavam sendo atendidas. Começamos a separar as crianças menores para saber quem estava cuidando delas.

 

E então começamos a separar as crianças que estavam lá há mais tempo para descobrir quanto tempo as crianças estão sendo mantidas lá. As crianças nos descreveram que estiveram lá havia três semanas ou mais. E assim, imediatamente daquela população que estávamos tentando fazer a triagem, eles estavam imundos, havia muco nas camisas, as camisas estavam sujas. Nós vimos leite materno nas suas camisas. Havia comida nas camisas e nas calças também. Eles nos disseram que estavam com fome. Eles nos disseram que alguns deles não tinham tomado banho ou não tomaram banho até o dia ou dois dias antes de chegarmos. Muitos deles contaram que apenas escovaram os dentes uma vez. Este centro de detenção ficou sabendo na semana passada que estavamos chegando. O governo sabia há três semanas que estávamos indo.

 

Então, de qualquer forma, as crianças nos disseram que ninguém está cuidando delas, de modo que basicamente as crianças mais velhas estão tentando cuidar das crianças mais novas. Os guardas perguntam às crianças mais novas ou às crianças mais velhas: “Quem quer cuidar desse menino? Quem quer cuidar desta garotinha?” e eles trazem uma criança de dois anos, uma de três anos e outra de quatro anos. E então espera-se que as crianças menores sejam cuidadas pelas crianças mais velhas, mas então algumas das crianças mais velhas perdem o interesse por elas e essas crianças são entregues a outras crianças. E algumas vezes ouvimos sobre as crianças mais novas largadas sozinhas no chão.

 

Muitas das crianças relataram dormir no chão de concreto. Eles estão recebendo cobertores do exército, aqueles cobertores de lã que são realmente duros. A maioria das crianças disse que estão recebendo dois cobertores, um para colocar embaixo deles no chão. Algumas das crianças dizem apenas ter recebido um cobertor e tem de decidir se devem colocá-lo embaixo delas ou sobre elas, porque há ar-condicionado nessa instalação. E então eles têm de fazer uma escolha: eu tento me proteger do cimento, ou eu tento me manter aquecido?

 

Nós não planejamos originalmente estar lá na quinta-feira, mas uma das razões pelas quais voltamos para o quarto dia é que algumas das crianças, na quarta-feira, nos disseram que houve uma infestação de piolhos, bem como um surto de gripe nesse centro de detenção, e assim um número de crianças estão sendo levadas para salas de isolamento, áreas de quarentena onde não há ninguém com eles, exceto outras crianças doentes.

 

Havia uma mãe adolescente que levou seu bebê para lá, porque o bebê pegou a gripe. E então a mãe, porque ela estava lá cuidando da criança, também pegou gripe. Assim, ela ficou lá por uma semana, e eles levaram o bebê para fora e o deram a uma criança sem grau de parentesco para tentar cuidar do bebê da mãe adolescente. Desculpe, eu estava tentando lembrar onde eu estava tentando chegar com iso.

 

Tudo bem.

 

Ah, eu sei o que queria te dizer. Isso é importante. Então, na quarta-feira, recebemos relatos de crianças de um surto de piolho em uma das celas onde havia cerca de 25 crianças e o que elas nos disseram é que seis das crianças tinham piolho. E então eles receberam um xampu contra piolhos, e as outras crianças receberam dois pentes e disseram para compartilhá-los, dois pentes de piolhos e pentear os cabelos com os mesmos pentes, o que é algo que você nunca faz em um surto de piolho. E então o que aconteceu foi que um dos pentes se perdeu, e os agentes da Patrulha Fronteiriça ficaram tão furiosos que tiraram os cobertores e colchonetes das crianças. Eles não tinham permissão para dormir nas camas e tinham de dormir no chão na noite de quarta-feira como punição por perder o pente. Então você tinha uma cela cheia de crianças que tinham camas e colchões em um momento, não para todo mundo, mas para a maioria deles e em outro foram forçados a dormir no concreto.

 

De onde são essas crianças e onde estão a maioria dos seus pais na maioria dos casos?

 

Quase todas as crianças que entrevistamos tinham pais ou parentes nos Estados Unidos. Muitos deles tinham pais nos Estados Unidos e estavam vindo para cá para ficar com eles. Algumas das crianças que entrevistamos foram separadas dos pais. A maioria delas foi separada de outros parentes adultos. Quase todas as crianças vieram com um membro adulto da família e foram separadas deles pela Patrulha Fronteiriça. Algumas delas foram separadas dos próprios pais, outras vezes era uma avó ou tia ou um irmão mais velho. Nós não sabemos onde os pais estão sendo mantidos.

 

Eles são principalmente da Guatemala, El Salvador e Honduras. Há alguns do Equador e um do Peru.

 

Qual é a atitude dos guardas para com sua equipe?

 

Eles estão do nosso lado. Muitos guardas nos disseram enquanto estávamos lá que eles estão do nosso lado e querem que tenhamos sucesso, porque as crianças não pertencem àquele lugar e precisam ser levadas e colocadas em lugares apropriados para elas. Eles querem que tenhamos sucesso.

 

Então coisas como o pente e a punição, essa é uma história rara? A maioria dos guardas se preocupa com o bem-estar das crianças até certo ponto?

 

Não vou dizer que a maioria dos guardas se preocupa com as crianças, porque não conversamos com a maioria dos guardas, mas acredito na bondade inerente das pessoas. E quando eu falei com os guardas, eles pareciam se importar, e eles tinham guardas que, quando as crianças estavam lá para essas longas entrevistas, levaram os almoços das crianças na sala de conferências. Os almoços são terríveis. É assim que alguns dos guardas são, mas o fato é que alguns dos guardas são pessoas más e não há dúvidas sobre isso.

 

Há algumas outras histórias que ouvimos das crianças, como a de que um dos guardas escolhe uma criança mais velha, de dezessete anos, para atuar como guarda não oficial dentro da sala. Então ele diz às crianças o que fazer e ela tenta manter a sala limpa e arrumar os colchões e tudo mais. Então, os guardas a recompensam com comida extra e quando um menino de sete anos viu que este menino mais velho estava recebendo comida extra sendo útil, ele perguntou se ele poderia ajudar a limpar o quarto e mantê-lo limpo para que ele também pudesse receber mais comida. E o rapaz de dezessete anos o castigou por isso, e quando o irmão mais velho tentou defender seu irmão mais novo, o guarda interveio e repreendeu tanto o menino mais novo quanto seu irmão mais velho.

 

E então você tem um guarda que está manipulando essas crianças, muito parecido com o que ouvimos sobre os campos de concentração. Eu não vou chamar isso de campo de concentração, embora eu saiba que algumas pessoas o fazem.

 

Estou curioso, apenas a nível humano, sobre você estar nesses campos esta semana, enquanto grande parte do país, ou um bando de políticos, parecia ultrajado principalmente pelo fato de que Alexandria Ocasio-Cortez usou o termo “campo de concentração. ”

 

Bem, não estamos vendo as notícias. Eu ví um tuite. O problema é que toda a nossa capacidade é absorvida. Estamos acordando às seis da manhã e estamos na estrada pouco depois das sete para visitar diferentes locais e nos encontrar com as crianças. E nos reunimos com elas até as cinco horas, às vezes - isso não aconteceu esta semana, mas em outras visitas ao local ficamos até as oito horas, porque há muitas crianças para entrevistar. E depois o que acontece é que voltamos e fazemos uma reunião de balanço. Nós não comemos até as onze horas da noite de quarta-feira, e então fomos para a cama, levantando algumas horas depois e fazendo tudo de novo. Não há espaço para processar o que está acontecendo no mundo real. A atenção está voltada somente para essas crianças e as condições horríveis em que estão.

 

Havia alguma coisa que você acha que fosse especificamente ilegal?

 

Acabei de voltar desta instituição, onde as leis estavam sendo quebradas para a direita e para a esquerda. Há um processo neste caso que diz que as crianças devem ser tratadas de uma certa maneira quando estão sob custódia do governo. Todas essas crianças estão sob custódia do governo e esses padrões básicos estão sendo violados.

 

Por exemplo, em Flores, que é a ação coletiva que regula os padrões para o cuidado dessas crianças que estão sob custódia dos EUA, diz claramente que as crianças devem ser mantidas em condições seguras e sanitárias. E não há nada sanitário sobre as condições em que estão. E elas não estão seguras, porque estão ficando doentes, e não são adequadamente supervisionadas pelos policiais da Patrulha de Fronteiriça. Isto é uma violação da jurisprudência. Além disso, essas crianças não devem estar em uma instalação da Patrulha de Fronteiriça por mais tempo do que deveriam, e em hipótese alguma devem estar lá por mais de setenta e duas horas. E muitos deles estavam lá por três semanas e meia.

 

E, além disso, eles não devem separar famílias. No caso da Sra. L, que foi trazida no ano passado, quando as crianças estavam sendo rotineiramente separadas de seus pais, o juiz determinou que as crianças precisam ser mantidas com seus pais, que a integridade da família é um direito constitucional e está sendo violada. Havia crianças neste estabelecimento que vieram com os pais e foram separadas deles. Havia outras crianças na instituição que vieram com outros membros adultos da família. Não conhecemos quase nenhuma criança que veio desacompanhada. Os Estados Unidos estão levando as crianças para longe de sua unidade familiar e as reclassificando como crianças desacompanhadas. Mas elas não eram crianças desacompanhadas. E algumas delas foram separadas de seus pais.

 

Você tem alguma esperança ou senso de que os tribunais intervirão prontamente?

 

Essa é a esperança. Eu vou ser honesto com você: eu não estou autorizado a falar sobre o caso Flores. Eu não sou um dos advogados litigando esse caso. Eu estou lá como um especialista em monitoramento de conformidade. É um caso muito ativo, e os advogados principais nesse caso estão muito preocupados com o que encontramos na visita ao local. Mesmo as pequenas coisas - quando estão transportando os bebês, transportando as crianças e os pré-escolares, eles não as colocam em assentos infantis ou assentos elevatórios e dirigem pelas rodovias do Texas, as quais exigem que as crianças sejam colocadas apropriadamente no veículo. É tão frustrante ouvir a atual administração falando sobre o Estado de Direito quando desrespeitam o Estado de Direito a todo custo.

 

Eu sei que você está fazendo isso há cerca de três anos. Para as pessoas que você conhece que estão fazendo isso há mais tempo, até que ponto isso é o pior que já viram, e até que ponto isso é um aspecto da nossa política de imigração que vem acontecendo há muito tempo, ou existe apenas um holofote a mais sobre isso agora?

 

Essa é uma pergunta muito boa. As coisas sempre foram horrendas nas instalações da Patrulha Fronteiriça, especialmente para as crianças. É por isso que Flores exige que as crianças sejam retiradas de lá com a maior rapidez possível. Então, sempre nos preocupamos com as condições das instalações da Patrulha Fronteiriça. O que nos preocupa agora é o número de crianças que estão lá, as crianças muito jovens e o tempo que elas estão sendo deixadas lá.

 

Quase todas essas crianças têm membros da família, incluindo pais, nos Estados Unidos, que podem e querem cuidar de seus filhos. Tudo o que precisamos fazer é levar essas crianças para suas famílias e sabemos que quase todas elas serão bem cuidadas e não custará ao contribuinte dos EUA para cuidar delas, porque elas serão cuidadas pelos seus pais.

 

Agora, quando digo isso - é claro que há certos custos inerentes ao funcionamento de uma sociedade que serão incorridos, mas, no que diz respeito a cuidados diretos, nas instalações que temos os dados, como as grandes instalações, por exemplo, Homestead, custa 775 dólares por dia para cuidar dessas crianças. Não há razão para o contribuinte americano ter de pagar 775 dólares por dia para cuidar de crianças que têm famílias que as amam, estão aqui nos Estados Unidos e querem cuidar delas. Há várias crianças que poderíamos colocar em um avião esta semana para estar com seus pais nos Estados Unidos. Muitas delas nunca conversaram com seus pais desde que chegaram lá.

 

- Isaac Chotiner é redator da The New Yorker, onde é o principal colaborador de Q. & A., uma série de entrevistas oportunas com grandes figuras públicas em política, mídia, livros, negócios, tecnologia e muito mais.

 

*Publicado originalmente no The New Yorker

 

Tradução de Cristiane Manzato

 

26/06/2019

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Antifascismo/Por-dentro-de-um-edificio-do-Texas-onde-o-governo-mantem-criancas-imigrantes/47/44507

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/200663
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