Francisco, seis anos depois: que há de bom, de mau e de misericordioso
- Opinión
“Para Francisco, a Igreja não é um clube de campo para os bons e os belos. Pelo contrário, é uma ‘Igreja pobre para os pobres’, um ‘hospital de campanha’ para os feridos. É por isso que ele enfatiza a compaixão e a misericórdia.”
O comentário é do jesuíta estadunidense Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos Estados Unidos, de 1998 a 2005, e autor de “O Vaticano por dentro” (Ed. Edusc, 1998), em artigo publicado por Religion News Service, 13-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há seis anos, no dia 13 de março, o Colégio dos Cardeais surpreendeu o mundo com a eleição do jesuíta argentino Jorge Bergoglio como papa. Assumindo o nome de Francisco, ele conquistou a admiração e o respeito de católicos e não católicos com sua simplicidade e preocupação com os pobres e marginalizados.
A cada ano que passa, porém, as críticas ao papa se tornam mais expressivas, especialmente por parte da direita católica, que pensa que ele está rompendo com o ensino tradicional da Igreja, e da direita política, que não gosta das suas opiniões sobre o aquecimento global, a imigração e a justiça social. Francisco também tem sido incapaz de satisfazer aqueles que dizem que a resposta da hierarquia católica aos abusos sexuais do clero foi inadequada.
Eu sou um grande fã de Francisco, em parte porque eu acho que qualquer avaliação dos seus primeiros seis anos como papa mostra que suas conquistas superam as suas falhas.
Primeiro, suas conquistas.
Francisco deu uma nova imagem, com sucesso, à Igreja Católica, que havia passado a ser considerada como uma instituição clerical que enfatizava as regras e a uniformidade. Se você quisesse ser um bom católico, você recebia o Catecismo para decorar e era mandado a seguir as regras.
Francisco odeia o clericalismo. Ele está constantemente dizendo aos bispos e padres a não agirem como príncipes, mas sim como servos do povo de Deus. Embora ele seja gentil e compassivo com o mundo em geral, ele pode ser muito crítico quando fala aos bispos e padres. Ele adverte contra a tentação de manipular ou infantilizar os leigos. Ele exorta os clérigos a dar poderes aos leigos “para irem discernindo, conforme o seu processo de discípulos, a missão que o Senhor lhes confia”.
Para Francisco, a Igreja não é um clube de campo para os bons e os belos. Pelo contrário, é uma “Igreja pobre para os pobres”, um “hospital de campanha” para os feridos. É por isso que ele enfatiza a compaixão e a misericórdia.
Em contraste com os dois últimos papas, que ensinavam usando conceitos teológicos complexos, Francisco apela para o coração. Ele reclama que “talvez nós tenhamos reduzido a nossa exposição do mistério a uma explicação racional; no povo, pelo contrário, o mistério entra pelo coração”.
Ele acredita que “perdemos aqueles que não nos entendem, porque desaprendemos a simplicidade, inclusive importando de fora uma racionalidade alheia ao nosso povo”.
Esse não é um papa que se preocupará, como fizemos no papado anterior, sobre se a tradução do Credo de Niceia deveria dizer que Jesus é “um em ser” ou “consubstancial” com o Pai.
O foco de Francisco na mensagem simples do Evangelho é bastante ameaçador para aqueles católicos que confundem teologia com fé. A teologia é o modo como explicamos a fé para nós e para os outros. Santo Agostinho usou o neoplatonismo para explicar a fé a uma geração cujos intelectuais eram todos neoplatônicos. São Tomás de Aquino usou o aristotelismo, o pensamento de vanguarda do século XIII, para explicar a fé no seu tempo.
O erro que os conservadores de hoje cometem é simplesmente citar esses grandes pensadores, em vez de imitá-los no desenvolvimento de novas formas de explicar o cristianismo às pessoas do século XXI. Com poucos neoplatônicos ou aristotélicos por aí hoje, os teólogos devem ter a liberdade de descobrir novas formas de explicar o cristianismo, mesmo que isso leve a novas formas de entender os direitos humanos, a justiça, a sexualidade, o casamento e o papel das mulheres.
Ao contrário de seus antecessores, Francisco não tem medo de encorajar a discussão na Igreja. “Os debates fraternos e abertos fazem crescer o pensamento teológico e pastoral”, disse Francisco em uma controversa entrevista em 2014 ao jornal italiano Corriere della Sera. “Eu não tenho medo disso. Ao contrário, eu busco isso”.
A abordagem de Francisco tem implicações para as prioridades pastorais da Igreja Católica. Para ele, as primeiras palavras da evangelização devem ser sobre a compaixão e o amor de Deus. Tudo no cristianismo flui a partir dessa mensagem, que Jesus enfatizava constantemente nos Evangelhos. A pregação deve fluir do Evangelho, e não ser apenas uma apresentação do Catecismo e de um livro de regras.
Em suma, Francisco está preocupado sobretudo com o modo como vivemos a fé, mais do que como a explicamos. A ortopraxia supera a ortodoxia.
O impacto prático dessa ênfase no amor e na misericórdia é uma atitude mais compassiva em relação aos católicos divorciados e em segunda união, assim como aos católicos LGBT. Se a Igreja é um hospital de campanha, então a comunhão não é apenas para os mais íntegros e perfeitos, mas também para os doentes e feridos.
Francisco continuou o trabalho de ecumenismo e diálogo inter-religioso iniciado pelos seus antecessores. Ver um papa junto com um bispo luterano para celebrar o 500º aniversário da Reforma é algo verdadeiramente histórico. Da mesma forma, seu diálogo contínuo com o grão-imã de Al-Azhar é crucial para o entendimento inter-religioso e a paz.
E, ao continuar a preocupação da Igreja com a justiça social, ele não se esquivou de temas polêmicos como a imigração e o aquecimento global. Colocar a Igreja do lado do ambiente é crucial para os seres humanos no século XXI.
Mas Francisco não é perfeito.
Até o ano passado, ele não entendia verdadeiramente a crise dos abusos sexuais. Depois de saber que ele havia sido enganado pelos bispos chilenos, ele exigiu que todos eles apresentassem suas renúncias, porque não haviam protegido as crianças. Ele também começou a se encontrar com vítimas de abuso para ouvir em primeira mão as suas histórias.
Isso foi transformador, mas, embora ele tenha começado a responsabilizar os bispos pela segurança das crianças, ele ainda não criou uma estrutura para fazer isso de maneira sistemática.
Em resposta à crise dos abusos sexuais, Francisco também pediu transparência. O verdadeiro teste dessa ética virá com a investigação sobre o que as pessoas no Vaticano sabiam sobre a má conduta de Theodore McCarrick. Os resultados serão públicos? Se o relatório concluir que o Vaticano sabia o tempo todo – antes da sua nomeação ao arcebispado de Washington – que McCarrick dormia com seminaristas, isso será muito embaraçoso para os dois últimos papas e para os cardeais que os cercavam.
Quando o papa fala sobre as mulheres, ele também se atrapalha, parecendo um avô cujos netos o amam, mas que reviram os olhos quando ele fala. Ele está fora de contato com a linguagem e as sensibilidades feminista do Primeiro Mundo. Seu foco, em vez disso, é nas questões das mulheres do Terceiro Mundo, o que o torna, sim, um defensor capaz de combater o tráfico de seres humanos e um apoiador das políticas que tiram as mulheres da pobreza.
A força de Francisco é a de um pastor que chama as pessoas à conversão. Ele não pensa como um administrador, alguém que estabelece políticas e estruturas para garantir que as coisas sejam feitas corretamente.
Por essa razão, a sua reforma da Cúria vaticana alcançou poucas coisas. Ele entende a importância de mudar a cultura da Igreja, mas não entende a importância de reformar as estruturas da Igreja.
Esperançosamente, Francisco terá muitos mais anos como papa para poder nomear mais bispos que apoiem a sua visão de Igreja e para lidar com outras questões que estão diante da Igreja e do mundo.
14 Março 2019