O neoliberalismo e a difusão do desenvolvimento

20/11/2018
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O nível da actividade económica sob o capitalismo está sujeito a fluxos e refluxos prolongados. Quando a economia está numa fase ascendente, este mesmo facto actua como um elixir que incentiva os capitalistas, criando-lhes a expectativa de que os "bons tempos" devem continuar. Isto os torna menos preocupados em assumir riscos, mais "aventureiros" e portanto mais inclinados a tomar decisões "arrojadas" quanto à sua preferência por activos. E devido a isto eles também empreendem investimentos em activos físicos como construção, equipamento e maquinaria o que faz com que o boom continue e dessa forma justifique a sua euforia.

 

Acontece o oposto quando há uma fase descendente. Ela introduz uma perspectiva sombria entre os capitalistas; eles se tornam mais agudamente conscientes dos riscos, tornam-se timoratos quanto às suas preferências por activos e restringem seus investimentos, preferindo ao invés possuir moeda que é um activo menos arriscado (embora nada ganhem com isso). Esse mesmo facto, por sua vez, prolonga a crise e, assim, justifica seu medo de assumir riscos.

 

Esta característica perfeitamente óbvia do capitalismo, nomeadamente a euforia auto-sustentável associadas aos booms e a melancolia auto-sustentável associada às recessões, tem influência sobre a questão da difusão do desenvolvimento para o terceiro mundo. Estamos aqui a falar da difusão que se verifica espontaneamente através da actuação do capitalismo sem restrições da espécie tipificada pelo neoliberalismo, não a difusão provocada através da acção deliberada do Estado no terceiro mundo envolvendo proteccionismo e outras medidas.

 

Para o capital, quer o da metrópole quer o do terceiro mundo, este último constitui um sítio de risco maior. A metrópole é a casa mãe do capitalismo e os capitalistas de todo tipo, qualquer que seja a cor da sua pele, sentem-se mais seguros ali do que até nos seus próprios países (razão pela qual grande parte da transferência de fundos do terceiro mundo é efectuada pelos seus próprios capitalistas). Entretanto, num boom, que é um período de euforia, o risco de manter activos no terceiro mundo é subestimado. A euforia de um boom estende-se ao domínio da preferência de activos, onde não só o maior investimento em geral é feito pelo capital (ao invés de manter seus investimentos no activo estéril mas sem risco, a moeda), mas mesmo activos do terceiro mundo são exigidos numa maior medida. A preferência diferencial pelos activos metropolitanos em relação aos do terceiro mundo fica reduzida, o que, além de trazer maior investimento directo para o terceiro mundo, também acarreta maior financiamento para a compra de activos no mesmo. O preço relativo de activos do terceiro mundo em relação aos activos metropolitanos aumenta; ou, dito de modo diferente, para qualquer dado preço de activos metropolitanos, o preço de activos do terceiro mundo eleva-se, o que aumenta a produção de tais activos (isto é, aumenta o investimento) e portanto aumenta a taxa de crescimento no terceiro mundo.

 

Acontece exactamente o oposto numa recessão económica mundial. Quando os capitalistas se tornam mais avessos ao risco, não só fazem secar os fluxos de investimento directo para o terceiro mundo (o que pode ser ainda mais agravado pelo proteccionismo na metrópole, do género que Trump está a introduzir), como o capital financeiro também cessa de vir para o terceiro mundo. Na verdade, desenvolve-se uma tendência para que as finanças, originárias da metrópole ou mesmo do terceiro mundo, se movam em direcção à metrópole. O preço relativo dos activos do terceiro mundo, em comparação com os da metrópole, diminui ainda mais o investimento local, provocando uma queda na taxa de crescimento do terceiro mundo.

 

O que foi dito acima tem duas implicações. A primeira, a qual é certamente indubitável, é que booms no capitalismo mundial nas condições do neoliberalismo estão associados a taxas de crescimento mais altas no terceiro mundo, ao passo que recessões no capitalismo mundial têm o efeito oposto. A segunda implicação é que quanto mais forte forem as flutuações nas taxas de crescimento das metrópoles, uma vez que o impacto da aversão ao risco sobre o investimento cai ainda mais fortemente sobre o terceiro mundo do que sobre as metrópoles, com preços de activos no terceiro mundo também a flutuarem em relação aos metropolitanos. Em suma, a euforia ou tristeza no capitalismo mundial tem um impacto ainda maior sobre o terceiro mundo do que sobre a metrópole nas condições do neoliberalismo.

 

O que isto significa é que os muito "sabichões" que durante os anos de boom do neoliberalismo louvavam o crescimento mais alto no terceiro mundo em comparação com os do seu próprio passado – e utilizando tal crescimento como prova dos efeitos benéficos do neoliberalismo (esquecendo convenientemente que mesmo naquele tempo um processo de acumulação primitiva de capital estava a ser desencadeado contra camponeses e pequenos produtores, o qual inchou as reservas de trabalho em detrimento de todos os trabalhadores incluindo mesmo os trabalhadores sindicalizados do sector organizado) – terão agora de engolir suas palavras. Na medida em que a recessão capitalista mundial continua e mesmo se agrava, na medida em que a finança começa a fluir de volta para as metrópoles como já está a acontecer (resultando numa depreciação de várias divisas do terceiro mundo, incluindo sobretudo a rupia em relação ao US dólar), a taxa de investimento e de crescimento no terceiro mundo definhará numa extensão ainda maior do que nas metrópoles.

 

Uma vez que não há fim à vista para a recessão capitalista e uma vez que o proteccionismo que está a ser praticado por Trump só piorará a crise mundial ao intensificar a angústia quanto ao futuro (mesmo que os EUA ganhem temporariamente com essa política do ";roubo o meu vizinho";, só até os outros retaliarem), com o sofrimento particularmente agudo do terceiro mundo que a recessão provoca, ela será também um fenómeno prolongado. O terceiro mundo em resumo está a afundar num período de estagnação prolongada. Isto provocará aflição aguda ao povo trabalhador, uma vez que a acumulação primitiva de capital à custa dos camponeses e pequenos produtores que acompanhou o boom capitalista continuará inabalável, ao passo que a estagnação só reduzirá ainda mais a geração de emprego dentro do sector capitalista.

 

O alarde quanto à difusão do desenvolvimento ao terceiro mundo desaparecerá em breve. Não será a primeira vez que uma tal reversão acontece. No fim do século XIX e princípio do XX, durante os booms no final do período Vitoriano e no Eduardiano, também houve um alvoroço acerca da difusão do desenvolvimento ao terceiro mundo. Mas muitos dos países do terceiro mundo que então cresciam rapidamente contam-se hoje entre os "menos desenvolvidos" do mundo, Myanmar é um exemplo clássico. A difusão do desenvolvimento ao terceiro mundo durante o boom capitalista do período neoliberal recente certamente foi mais pronunciada do que no anterior – e a fortuna de Myanmar estava ligada aos seus recursos petrolíferos cuja exaustão determinou a sua ruína. Mas o ponto a destacar é que o fenómeno de os campeões de ontem serem os atrasados de hoje não é de modo algum incomum.

 

A Grande Depressão dos anos 1930 seguiu-se ao colapso do longo boom Vitoriano e Eduardiano. E durante a Depressão só floresceram aqueles países do terceiro mundo que conseguiram desligar-se da teia do mundo capitalista sem restrições através da imposição de controles sobre fluxos de comércio e de capital. Notáveis entre eles foram os países latino-americanos que embarcaram numa "estratégia nacionalista" de industrialização por substituição de importações depois de derrubarem as oligarquias locais que estavam mancomunadas com o imperialismo. Economias colonizadas como a Índia, em contraste, apesar de verem alguma industrialização, uma vez que até mesmo o regime colonial teve de introduzir uma quantidade escassa daquilo que foi chamado de "protecção discriminatória" a fim de apaziguar a burguesia local, não viu o suficiente da mesma.

 

Uma coisa no entanto é indubitável. Ultimamente criou-se a impressão de que o terceiro mundo pode ultrapassar sua miséria económica mesmo permanecendo dentro da órbita do capitalismo mundial, que o neoliberalismo estava a dar origem a uma difusão do desenvolvimento ao terceiro mundo a partir da metrópole, a qual seria tão pronunciada que a argumentação anterior de que só o socialismo pode criar condições para superar as dificuldades económicas do terceiro mundo, tornou-se ultrapassada; e mesmo que alguma pobreza residual permanecesse no terceiro mundo, apesar do rápido crescimento, era apenas uma questão de tempo até que isso também desaparecesse através de um "gotejamento" (trickle down) do crescimento. O capitalismo, em suma, seria a panaceia para a pobreza em massa no terceiro mundo e não o seu progenitor, como os marxistas argumentavam. A crise que agora está a envolver as economias do terceiro mundo liquida tal afirmação.

- Prabhat Patnaik é Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2018/1118_pd/neo-liberalism-and-diffusion-development .

Tradução de JF.

 

18/Novembro/2018

https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_18nov18.html

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/196635

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