Brasil: governabilidade, só se combinarem com o povo (I)

19/11/2018
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Tópicos para análise da tempestade e da resistência frente a eleição de um fascista: organização popular, esperança e o papel do líder – para além de determinismos ou derrotismos confortáveis

 

São Paulo.- Embora não estejamos (ainda) na iminência da instauração do fascismo enquanto regime pleno – como pregam os místicos catastrofistas –, temos sem dúvida um fascista eleito. É portanto época para reflexões autocríticas e prognósticos que ajudem a apontar novos rumos para a luta, mas sem recairmos em projeções deterministas, positivas ou negativas, que desmobilizam.

 

No planejamento tático de uma frente progressista, não cabem posições sectárias, como o ativismo meramente intelectual ou professoral que não logra transformar boas ideias em projetos sociais consistentes. Para além do teor “revolucionário” de discursos de rede social, é fundamental que a esquerda retome sistematicamente – no seu cotidiano – o trabalho de base.

 

I- O desespero é uma forma de vaidade

 

Doutos puristas da ética, socialistas engravatados, ou mesmo os amantes de debates sobre a penúria do povo, em mesas fartas e com bons vinhos (afinal todo homem é filho dos deuses), limitam seu próprio desenvolvimento humano, se não aprendem também a pisar o chão de terra – que é onde se verificam as verdades das teorias.

 

O derrotismo desesperado (“nada vale a pena”) é tão confortável quanto o otimismo deslumbrado (“basta esperar, tudo caminha bem”).

 

Como a psicologia talvez explique, tais posições “extremas” (e não “radicais”) só servem para justificar a aceitação da zona de conforto pequeno-burguesa. Em que difere a vida mansa de um “marxista de papel”, encastelado no escritório ou academia, do dia a dia morno que desfruta o restante da classe média suicida bolsonarista?

 

A unidade prática das forças sociais é maior de que qualquer projeto teórico pessoal. E o desespero é uma forma de vaidade.

 

II- Crise estrutural e um novo “sentido” para as esquerdas

 

A eleição foi uma farsa obscena, explicitamente fraudada, manipulada por mentiras em massa, após a série de falcatruas dos Tribunais, Congresso e mídia empresarial, o que merece um terceiro turno de intensos protestos populares.

 

Mas a ascensão de um poste neoliberal de viés fascista não resulta somente das ilusões de uma população em grandes proporções analfabeta política, sistematicamente enganada por telejornais e recentemente pela novidade dos criminosos disparos de “fake news” em redes sociais.

 

É preciso ir além na análise: avaliar o descontentamento “objetivo” do povo, que sofre há uma década a quebra econômica de 2008, que se eterniza (como agravamento da crise estrutural – automação/desemprego” – que segundo o pensador e economista belga Ernest Mandel, será de “longa duração”).

 

Neste cenário de disputa acirrada, a esquerda precisa reencontrar seu “sentido” – olhar para as amplas populações de excluídos que ganham protagonismo nesta época de declínio do sistema capitalista. Como disse Mano Brown, no ato de Haddad: “Se não conseguir falar a língua do povo, vai perder mesmo”.

 

III- O rei está nu: Moro, cabo-eleitoral do fascista

 

Com a atitude indecente do pequeno-juiz Moro, o quadro fica explícito: o rei está nu. O golpe chega assim em sua etapa mais sórdida, e já não tem vergonha de desnudar suas vilezas antidemocráticas.

 

Aliás, a “democracia liberal” (ou melhor, “eleitoral”) só existe quando a esquerda não ganha.

 

Mas no Louco – no Monstro – que é apenas um frágil fantoche do trator neoliberal em crise – está agora refletida, e nua, a “famiglia” brasileira, esta massa de manobra fútil e barata de que se compõe majoritariamente a classe média: parcela instruída “tecnicamente”, mas politicamente semi-analfabeta. Ainda assim, breve verão que o rei está nu – mesmo que não o confessem. Quanto mais resistirem ao óbvio, mais a economia do país afundará, e mais os ideais humanos tendem a se levantar contra a barbárie que está nítida em cada gesto, em cada ministro amador, torpe e criminoso (de gatunos especializados, como os vendilhões P. Guedes e S. Moro, ao astronauta garoto-propaganda M. Pontes, ou a eterna figurante com ares de atriz Maitê Proença – para a caga do Meio Ambiente!). Para mostrar a irracionalidade de um fascista, deixe-o falar, para demonstrar sua estupidez, basta que aja.

 

IV- Mercado versus Humanidade

 

A hegemonia do que é humano já supera, ao menos no ideário popular, a hegemonia em decadência do animalesco “mercado”, cujo maior valor é a “competitividade”, a competição suja e desigual (apesar de no campo do poder político, econômico e militar, o capital ainda dominar com vantagem).

 

O problema que os economistas-do-mercado não podem resolver, com sua estreita objetividade científica (que eles supõem ou vendem como “exata”) é o de que: para além de suas teorias matematizantes, positivistas, está o Ser Humano. No cálculo dos resultados, subestimam o poder do “sujeito”: das subjetividades agredidas. Esquecem de combinar a “verdade” de suas teses com o povo, que é sempre quem arca com o maior sofrimento.

 

Como mostra a História, cedo ou tarde a população refuta as teorias rasas, e vêm à luz os interesses escusos (veja-se a impotência da pregação neoliberal em vencer eleições há duas décadas).

 

V- O Poste líbero-fascista é pouco hábil: mas o sistema é potente

 

Bolsonaro é pouco culto, pouco inteligente e inábil – e não esconde isto (a ponto de zombar de si mesmo admitindo se valer de um “posto-ipiranga”, referência a publicidade comercial que remete a resolução de todo problema ao tal posto de gasolina).

 

Contudo, não devemos deixar de ponderar que o sistema a que este fantoche representa é poderoso, e em momentos de desestabilização econômica mundial torna-se ainda mais violento. O tolo Poste, com dificuldades para terminar uma frase, pode ter (e terá) complicações para governar: para tecer alianças ou estimular confianças no centrão fisiológico (sempre dedicado ao “desenvolvimento” de seu patrimônio pessoal).

 

Conforme a analista Tereza Cruvinel, a “prensa” defendida pelo futuro ministro Guedes (o Posto do Poste, denunciado por calote milionário em aposentados) foi logo repelida. De fato, até o direitista tucano T. Jereissati, que pode presidir o Senado, o advertiu: se insistir em votar mudanças na Previdência com esse Congresso de “legitimidade vencida”, o novo governo “pode sofrer a primeira derrota antes da posse”.

 

Já o presidente do Congresso, Eunício Oliveira (MDB) disse que Guedes lhe pressionou para pautar a contra-reforma da Previdência: “Ou o PT volta”! Ao que ele contestou: “Não estou preocupado com a volta ou não do PT... [Seu governo] deve saber o que quer para a frente [pois] assumiu a responsabilidade de governar o Brasil… Ninguém vai interferir nesse Poder [Legislativo]”.

 

Mas o militar-expulso eleito pode também trilhar o caminho da força bruta – e para isto ergueu seu capataz Sérgio Moro. O jogo está aberto: o fascista pode cair, ser derrubado pelo descontentamento das ruas (apesar das instituições coniventes); ou pode encontrar formas de resistir, submetendo-se ainda mais ao projeto neoliberal (que em última análise é quem o elegeu).

 

Qualquer que seja o caminho, uma coisa é certa: o desgaste político da direita se acentuará, pois a população de modo geral já tem alguma consciência de seus direitos. E as grandes ideias, como nota o marxista húngaro Lukács: “conservam-se espontaneamente na memória da humanidade”, pois preparam o homem para a liberdade. E aliás, nem por lei nem por decreto se apaga da História a força de pensamento profundo como o do internacionalmente reconhecido Paulo Freire.

 

Veja-se o recado do povo pobre a Trump na recente votação parlamentar dos EUA; ou a trajetória ascendente do “socialismo democrático” nesse país com autoritárias leis “anticomunistas”, em que mais da metade dos jovens entre 18 e 29 anos afirmam que “preferem viver numa sociedade socialista ou comunista, do que numa capitalista ou fascista” (pesquisa de 2017)!

 

Em um processo de economia travada e intensa repressão, as elites também se prejudicam – pois perdem de vez sua já desgastada máscara de classe dirigente “racional”.

 

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[* Na continuação desta análise, trata-se de como o comandante deve produzir ânimo em seus comandados, sem contudo ocultar as possibilidades da derrota. Vejamos o significado do aforismo de Gramsci, segundo o qual devemos manter o “pessimismo da razão” articulado com o “otimismo da vontade” (a utopia que anima a ação). E abordemos a diferença crucial entre as análises que buscam ser objetivas (científicas), e aquelas que são típicas da subjetividade carismática de um líder (da capacidade intuitiva). São elementos que se deve ter em conta na construção popular da não-governabilidade do fascista brasileiro, retrocesso imposto à nação pelo projeto neoliberal em crise, após anos de golpismo sujo].

 

Novembro de 2018

 

- Yuri Martins Fontes é pesquisador acadêmico pós-doutorado em Ética e Filosofia Política (USP), e em História, Cultura e Trabalho (PUC-SP). Analista de Política Internacional. Coordenador do Núcleo Práxis da USP.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/196613
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