Entrevista com Yuri Martins Fontes

O México de Obrador, entre a pobreza e o narcotráfico:

21/08/2018
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São Paulo.- A eleição de López Obrador revive no México a esperança de superar a pobreza e derrotar o narcotráfico. O país bate recorde de homicídios, a maioria em consequência da ação do crime organizado, mas se apronta para novos tempos, com a eleição do primeiro presidente de esquerda a assumir o país. A ascensão do líder do Movimento Regeneração Nacional (Morena) dá respaldo popular para uma nova fase político-social que possa mudar a realidade atual.

 

Os números da violência no México assustam: em 2017 foram em média 80 mortes por dia, ou 2.400 por mês, o que representa o recorde de homicídios na história nacional. Este avanço no índice de homicídios, na avaliação de especialistas, é reflexo das políticas de segurança mal elaboradas, da fragmentação e competitividade dos cartéis e da diversificação de suas atividades ilegais. Além disso, todos esses fatores são sustentados por uma cultura de corrupção e impunidade, de alianças entre o crime organizado e dirigentes políticos e, especialmente, por um contexto de profunda disparidade política e econômica entre a elite e a maioria da população.

 

Segundo o historiador Yuri Martins Fontes, analista político e colunista da Fórum e ALAI, o problema do México é a “falência de um modelo” a que seus últimos governos se submeteram: “o modelo neoliberal, que desde o início dos anos 2000 vem degringolando e, recentemente, chegou a ser criticado até mesmo em relatório do Fundo Monetário Internacional”. Para Martins Fontes, o fator corrupção sistêmica é relevante como causa desse poder de atuação dos cartéis, mas a “corrupção” faz parte da “própria essência da cultura capitalista”. E especialmente, investir em “polícia e exército, sem educação, sem emprego, sem saúde, sem um prato de comida na mesa, não resolve nada, e aliás, piora, pois você dá uma arma na mão de um ser humano que é igualmente precarizado pelo sistema”.

 

LV- Ao longo dos anos, a violência e a atuação dos cartéis de drogas afetaram diretamente o povo mexicano. A proximidade geográfica com os EUA, maior mercado consumidor de drogas, contribuiu para o avanço cada vez mais intenso do poder do narcotráfico no México?

 

YMF- Toda violência afeta a população. E para se resolver este problema, é preciso ir às origens dele – ir à raiz do problema. É isto que a teoria crítica chama de “análise radical” – verificar o porquê, a causa profunda do problema em questão. O México tem 55 milhões de pessoas vivendo na pobreza – ou 43% de sua população de 130 milhões –, sendo 10 milhões em condições de miséria extrema. Aqui se começa a vislumbrar uma “causa profunda”. O problema do México é a falência de um modelo ao qual seus últimos governos se ajoelharam: o modelo neoliberal, que desde o início dos anos 2000 vem degringolando, e recentemente chegou a ser criticado até mesmo por relatório do FMI, em que a organização faz sua mea-culpa. Logicamente que com o intuito de “corrigir” detalhes visando sua manutenção, enquanto seja possível ou tolerável – enquanto as populações miseráveis o suportem, e enquanto o planeta, o meio ambiente o suporte.

 

Claro que a violência afeta todo o povo. E, aliás, o resultado está nas urnas, com seu recado: a recusa do neoliberalismo, que no resto da América já perdeu a confiança da opinião pública desde há 15 anos, mas no México, “quintal-primeiro” dos EUA, este processo somente agora mostra seu efeito. Em verdade, para sermos precisos, na eleição de 2006, Obrador foi eleito, mas roubado nas urnas, e assim perdeu por margem ínfima. Se eleito há 12 anos, quem sabe, teria podido reforçar a aliança interperiférica (entre os países americanos-africanos-asiáticos) – e isso teria talvez mudado os rumos deste primeiro intento nacional-desenvolvimentista do começo dos anos 2000, dado o peso do México na balança dos países latino-americanos (seu PIB é 20% do total).

 

Mas de volta à questão, a proximidade com os EUA certamente conta no problema do narcotráfico. E não apenas pelo mercado consumidor grandíssimo do Norte, mas especialmente pelo fato de o México ser uma das nações mais influenciadas pelos EUA na história. Há uma frase que vi pichada em muitos muros do México, que diz: “Pobre México, tão longe de deus e tão perto dos EUA”. De fato, 73% das exportações totais do México são para os EUA! Imagine o percentual do comércio de drogas! Veja-se um exemplo dessa influência daninha dos EUA no México, no acordo de livre comércio NAFTA, que arrasou a economia mexicana, e no próprio neodesenvolvimentismo tardio, que somente agora chega ao México – uma década e meia após o início do ciclo do restante da América.

 

Aliás, o México ganha um rumo progressista numa época peculiar, pois coincide com o retrocesso desse neodesenvolvimentismo na América e no mundo – queda motivada pela crise econômica do sistema (agravada desde os anos 1970 e cujo clímax se dá em 2008), o que reflete na baixa dos preços das matérias-primas, com o consecutivo ciclo de golpes brandos que começaram a dar frutos, baseados nos “discursos” anticorrupção e na judicialização da política.

 

Veja-se, ainda, que esses são os casos não só do Brasil de Lula e Dilma – mas da Argentina (de Cristina K., perseguida pelo judiciário), do Equador (Correa, idem, com mandado de prisão), do Paraguai, de Honduras, etc. E o mesmo se passou também em países da África e Ásia – como percebemos quando observamos o contexto mais geral das amplas alianças anti-hegemônicas: como o importante IBAS, um dos predecessores dos BRICS. No caso por exemplo da África do Sul, Jacob Zuma começou a sofrer acusações de corrupto na mesma época que se aproximava dos BRICS e de Lula, tendo que renunciar e assim dar espaço à ascensão da direita, representada pelo atual governo de Cyril Ramaphosa. Isto aconteceu também na Índia (e na mesma época): Manmohan Singh foi acusado de corrupto – algo jamais provado – e nas eleições, a centro-esquerda acabou superada pelo direitista Narendra Modi (como no caso argentino, mediante um golpe “apenas” midiático).

 

LV- Por que os cartéis têm tanta força, seria por manterem ligações com os governos?

 

YMF- Decerto que a corrupção sistêmica é importante, mas a corrupção, o querer ganhar mais, levar vantagem, faz parte da própria essência da cultura capitalista: doa-se verba para uma campanha de determinado candidato, depois se vai lá cobrar sua “vantagem” na obra a ser construída. Esse é o modo de funcionar, de ser, do capitalismo. Quanto ao “narcotráfico”, assim como o “terrorismo”, como bem observa Samuel Pinheiro Guimarães, com a derrota da União Soviética na Guerra Fria, os EUA precisavam de uma outra justificativa para seguir dominando mais e mais o mundo, para seguir impondo por meio da força seus interesses econômicos. Essa nova justificativa se traduz nas “novas ameaças”, os “novos temas” que passam a ser estudados nas Relações Internacionais. Contudo, nem o narcotráfico nem o terrorismo por si sós tem forças para ameaçar a soberania nacional de um Estado – muito menos de uma potência como os EUA, como é óbvio. Mas serviram como ótimos argumentos para que o Império pudesse invadir qualquer parte do planeta, dominando petróleo, territórios geoestratégicos, derrubando inimigos, ampliando territórios sujeitos à exploração neoliberal – e sempre alegando sua “autodefesa”.

 

Assim, é muito perigoso ficarmos pondo o peso do problema na sua “consequência” – a corrupção – e deixarmos de ir atrás das suas causas. Lembremos que Hitler e Mussolini se elegeram com discursos anticorrupção – e Collor também.

 

LV- Em que medida a questão do narcotráfico e da violência consequente desse processo influenciam nas relações do México com outros países?

 

YMF- Esta pergunta, que se relaciona com o que tratávamos na questão anterior, talvez devesse ser feita ao contrário: “como a relação do México com outros países influenciou a questão do narcotráfico mexicano?”. O problema do México é o mesmo problema de todos os Estados periféricos do sistema-mundo capitalista: é uma nação subalterna, constrangida pela estrutura global a produzir e vender matérias-primas sem valor agregado, e a comprar produtos industrializados a preços muito superiores; uma nação sem autonomia, sem soberania nacional, sem soberania alimentar, um Estado que não logrou completar seu projeto de nação – e assim se mantém sujeito aos interesses dos Estados mais fortes, enfim, do Imperialismo.

 

O professor filipino Walden Bello, em um excelente artigo sobre a crise de fome que ocorreu em 2008, mostra como a agricultura mexicana foi pouco a pouco dominada pelos EUA, após o NAFTA. O México, submetido a tais acordos de “livre-comércio” com os EUA – acordos que promovem a absurda “liberdade” da raposa negociar com a galinha – perde, a partir de então, sua autonomia secular na produção de milho (que vinha de culturas originárias antiquíssimas). Isto se dá tanto por causa da redução das tarifas aduaneiras (a chamada “abertura comercial”), como pela redução drástica de políticas sociais agrárias (como o crédito agrícola, incentivos, etc). Assim, o México, que domesticou centenas de espécies de milho em sua história milenária, em 10 anos passaria a ser dependente do milho estadunidense (insalubre, transgênico!). Passa então a importar milho dos EUA, o que com a crise de preços dos alimentos começada em 2007, geraria o caos da fome. Aí, já se pode antever o resultado: com a fome generalizada e o desespero que daí resulta, chegam também as soluções desesperadas, tais como, por exemplo, buscar em quaisquer atividades, inclusive ilegais, uma forma de subsistir (o que é bastante natural).

 

Vale um aparte para mencionar que estas políticas de ajustes e Estado-mínimo – exigidas pelos EUA e UE – não foram realizadas pelos EUA e a UE. Os países ricos mantêm até hoje seus fortes incentivos agrícolas (mediante repasses ocultados sob formas indiretas) – problema do “protecionismo” do Norte, que inclusive geraria em 2008 o fracasso da Rodada de Doha da OMC. Já no caso do Estado-mínimo, trata-se de um discurso, obviamente, voltado para nós, da periferia do sistema – pois que os países centrais mantêm seus Estados fortíssimos, como se pode observar na capacidade destes governos de salvarem bancos da bancarrota, ou de promoverem intervenções militares e sanções econômicas contra nações não alinhadas (caso da Iugoslávia, Iraque, Irã, Líbia, Síria, Venezuela etc).

 

Digo isso para frisar que é justamente a questão social mal resolvida que gera problemas como o do narcotráfico, violência, etc. Se os cartéis conseguem arregimentar jovens para atividades ilegais, é porque esses jovens já não veem outra possibilidade de inserção social, de sobrevivência, já não têm outro projeto de vida. É o mesmo caso da violência nas favelas brasileiras, em que grupos criminosos crescem e ganham poder. Por quê? Porque eles cumprem a função que o nosso Estado, agora golpista e “mínimo”, não cumpre, ou seja: oferecem emprego, promovem segurança para as comunidades, e até mesmo assistência social. Aí, o conservadorismo arcaico vem com militares para querer enfrentar um problema que é social. Isso não resolve nada – como estamos vendo agora na tragédia da assassina intervenção militar carioca.

 

LV- Além dos homicídios associados ao narcotráfico, aumentaram os registros de mortes atribuídas à violência doméstica ou contra as mulheres (mais de 1.500 processos foram abertos por feminicídio em 2017). A causa disso pode ser a falência das políticas de segurança pública implantadas ao longo dos anos e através dos governos?

 

YMF- Parece-me que não exatamente. Esta violência se mostra ligada não apenas à falência das políticas de segurança pública, mas às políticas sociais como um todo, das quais fazem parte a segurança de modo geral (não só segundo a visão policialesca, mas em perspectiva social): a saúde, a educação, a agricultura.

 

Aí está o problema de que falávamos: um estado neoliberal, curvado aos interesses do Imperialismo e de suas transnacionais, vai atrás de empréstimos (a juros impagáveis que somente resolvem o orçamento de imediato) e fazem os tais ajustes estruturais – redução de investimentos em políticas sociais, menor intervenção do estado na economia. Ou seja, menores investimentos somente nas políticas sociais, pois na “segurança policialesca”, pelo contrário, o Estado acaba tendo que aumentar sua intervenção, para poder controlar o caos que a falta de investimento social gera. É o caso dos gastos nesta tal “guerra contra as drogas”, dentre outros.

 

Só que polícia e exército, sem educação, sem emprego, sem saúde, sem um prato de comida na mesa, não resolve nada, e aliás, piora, pois você dá uma arma na mão de um ser humano que é igualmente precarizado pelo sistema: alguém com pouca educação, sem formação humana mínima, sem perspectivas de cidadania.

 

LV- Você acredita que a chegada ao poder de Andrés Manuel López Obrador, o primeiro candidato de esquerda a vencer a eleição presidencial no México, pode mudar esse quadro? Antes do pleito ele já havia dado declarações de que não descartaria a possibilidade de dialogar com representantes dos grupos criminosos para acordar uma espécie de anistia em nome da redução da violência. Você acredita que essa medida pode ser um caminho correto e dar resultados eficazes?

 

YMF- Obrador chega ao poder com um discurso-programa centro-esquerdista, de aliança nacional, à semelhança dos demais neodesenvolvimentistas na América, de Lula a Correa, passando por Chávez – guardadas as nuances que os distinguem um pouco. Se ele conseguir cumprir suas propostas políticas voltadas ao combate à pobreza e redução do abismo social entre ricos e pobres, isso decerto vai logo refletir na diminuição do poder dos cartéis de drogas.

 

Contudo, como nos demais governos nacional-desenvolvimentistas, as alianças são um problema. Acordos com as elites (corruptas, mesquinhas, violentas, sejam elas de empresários “legais” ou ilegais), são necessários, mas são sempre temerários. Como se sabe, sem alianças não se alcança o poder em uma semi-nação, incompleta em seu processo de efetiva independência, como é o caso do Brasil ou do México. Se tais alianças, porém, se curvam por demais aos interesses das elites antinacionais, como as que temos em nossa América, na primeira chance que tais classes dominantes tiverem de acelerar seus ganhos (mediante antirreformas trabalhistas, previdenciárias, etc), ou de evitarem as perdas inerentes da crise do sistema (como a que se agrava desde 2008), essas elites então promoverão a sabotagem e o golpe.

 

Recordemos que nossas elites sempre foram voltadas ao estrangeiro, jamais se identificaram com seu próprio povo e nem pensaram um projeto de nação, para além de seus lucros imediatos. Como bem o analisaram grandes pensadores latino-americanos como Mariátegui e Caio Prado, nossas classes dominantes não são “nacionais”, mas sócias do estrangeiro. Formadas majoritariamente por gente xucra, pouco afeita aos estudos e reflexão, e avessa ao planejamento político, pensam que são “europeias”, ainda que não passem de elites subalternas – e portanto, nessas condições, tenham menos ganhos de que as elites das matrizes do centro do sistema. Com esta curta visão histórica, têm se contentado em manter tais alianças com o interesse estrangeiro, mesmo que tenham lucros menores. Ganham menos, mas o que ganham é de modo rápido e certo – pensam.

 

Aí, na medida em que há uma época de perdas, de crise mundial como a desatada em 2008, elas apertam mais os trabalhadores para manter sua margem de lucro: é o fenômeno da superexploração do trabalho.

 

No caso do México, ao que parece, Obrador terá maioria no Parlamento – esperamos que uma maioria mais fiel do que a do lulismo (refém do fisiológico PMDB até o golpe do vice entreguista). Mas Obrador deverá observar atentamente os grandes erros cometidos por governos de linha próxima à sua, buscando extrair daí aprendizados – em especial o caso brasileiro, já que ambos os países têm características comuns: territórios e diversidade cultural imensa, elites não-nacionais controladoras das estruturas de comunicação e ensino, e voltadas às negociatas com os EUA e Europa, uma população com pouca educação formal e facilmente manipulável, recursos energéticos e naturais abundantes, etc. Eis as principais tarefas de Obrador: retomar a soberania de sua produção agroalimentar e energética (petróleo, etc), frear a financeirização da economia, democratizar as telecomunicações, reformar a educação mercantilizada.

 

E já que você focou a questão das drogas: Obrador poderia dar um passo grandioso, como o fez o Uruguai, e legalizar o consumo das drogas no país, o que reduziria grandemente o problema do narcotráfico, como mostram diversas pesquisas especializadas sobre o tema. Afinal, nunca se provou que consumir psicotrópicos seja mais danoso à saúde de que consumir transgênicos. Aliás, os poucos estudos que há sobre o tema mostram que é ao contrário. E ainda: por que alguém deve ser constrangido a não consumir algo que faça dano a sua saúde? No caso da droga, ao menos, há uma escolha, usar ou não. Já no caso do alimento transgênico-cancerígeno cada vez mais generalizado, como se pode ficar sem comer?

 

Enfim, será que a preocupação do sistema é mesmo a saúde da população? Além destas políticas internas, no âmbito externo, o México tem agora a oportunidade histórica de romper com o pacto neocolonial (no seu caso, o acordo NAFTA), podendo dar um passo rumo à integração interperiférica – a dita “cooperação Sul-Sul” – afastando-se da subserviência aos EUA, mediante alianças com emergentes fortes: como a China, a Rússia e algumas nações ainda livres da América Latina, como a Venezuela. Assim, reduzindo sua vulnerabilidade externa, o México poderia ter forças para reduzir sua vulnerabilidade interna – e ambas estão intimamente relacionadas.

 

Já com relação a países que foram sujeitados a golpes de Estado, brandos ou não, como o Brasil e a Argentina (que vêm implementando um neoliberalismo tardio), enquanto a situação de retrocesso democrático durar, o México faria bem em se manter afastado. Ao menos por ora, pois ao que parece o neoliberalismo arcaico, já tão erodido na opinião pública (ainda que Globos e Folhas o defendam em tempo integral), já não aguenta mais nenhuma eleição presidencial.

 

Contudo, ante a realidade de emergência do fascismo criada por estes meios de imprensa-corporativa golpista, aliados de parlamentos e judiciários fisiológicos, quem sabe, agora, diante da barbárie explícita, as elites não soltam um pouco a mão, e permitem a nossos países voltarem a um rumo minimamente nacional? Seria um excelente momento para a união latino-americana, e assim para a consolidação de nossas (ainda) semi-nações.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/194859

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