Foro de São Paulo: a esquerda deve reconstruir o significado da democracia

18/07/2018
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As tarefas pendentes da América Latina e da esquerda regional, a soberania dos meios e as políticas comunicacionais, a midiatização da política e o uso da Internet como uma das plataformas que suporta e expande o poder cultural, econômico e político da direita e dos Estados Unidos, foram o tema principal de análise da segunda jornada do 24º Encontro do Foro de São Paulo, que acontece em Havana, capital de Cuba.

 

O diálogo necessário entre movimentos e partidos

 

No encontro entre os partidos de esquerda e os movimentos sociais e populares, o costarriquenho Jorge Coronado, mostrou que 10 plataformas regionais da América Latina, de diversos movimentos, de expressões sindicais, de mulheres e de jovens, iniciaram um diálogo com os partidos para ver como enfrentar esta contraofensiva, e qual é a aposta política dos setores de esquerda e progressistas para enfrentar esse processo de forma mais coordenada.

 

Coronado mostra que não existe um diagnóstico comum e que há diferenças de análise entre os movimentos populares (com maior proximidade com os territórios e as comunidades) e a esquerda política, a respeito dos processos deste mecanismo neoliberal do capitalismo predador, que são diferentes da prática histórica planteada pelos partidos.

 

“Os partidos não sempre conseguem ler todas as sensibilidades de grupos e comunidades locais. Em muitos casos, se concentram na superestrutura, ou não estão lendo os temas do momento. Por exemplo, a luta por uma justiça fiscal na América Latina, onde as elites e as corporações extraem recursos e não pagam impostos. A esquerda política não está abordando este assunto, nem o da dívida interna, nem o extrativismo”, detalhou.

 

Deve-se, então, estabelecer os diálogos: não é que os movimentos sociais tenham que fazer sempre a leitura integral correta, mas sim uma análise de como se envolver nesses temas. E há uma discussão fundamental que precisa ser feita: a da democracia. Especialmente porque a institucionalidade burguesa terminou absorvendo uma corrente importante da esquerda que segue a lógica dessa institucionalidade.

 

“Temos que reconstruir o conceito de democracia – que não deve ser só eleições e acesso ao parlamento – uma visão de esquerda hoje deve ser mais ampla que isso, e oferecer algo que hoje não existe”, indicou Coronado, que acredita que a esquerda erra ao se centrar nessa superestrutura de representação política. “Só é possível confrontar a arremetida neoliberal articulando de baixo para cima”, concluiu.

 

Vários delegados se somaram à ideia de se aproximar das novas realidades, com sensibilidades diferentes, que requerem propostas diferentes, como os movimentos LGTBI, os jovens, o movimento negro, as mulheres e a nova lógica de identidade de gênero. São universos que vão construindo o discurso de lógica democrática que vai mais além dos paradigmas da institucionalidade superestrutural construída para satisfazer a burguesia.

 

A juventude de esquerda não está perdida

 

O décimo Foro de Juventudes, que foi um dos eventos dentro deste Foro de São Paulo fez um chamado à unidade contra o inimigo comum – o poder imperial, neoliberal e alienante – para alcançar a segunda e definitiva independência da América Latina e do Caribe. As mais angustiantes e problemáticas realidades da região e o futuro da esquerda e dos movimentos populares, foram analisadas por centenas de jovens reunidos em Havana.

 

Diosvany Acosta, da União de Jovens Comunistas (UJC) de Cuba, contou que “a cultura é um campo de batalha, em especial para os países que buscam uma alternativa, e também é um terreno de resistência contra as manipulações do imperialismo e das oligarquias nacionais, que buscam implantar uma hegemonia imperial dos seus valores ao mundo”.

 

Indicou que é útil para os Estados Unidos ver uma juventude descontente, desmobilizada, alheia às suas realidades, que se transforma em terreno fértil para a desvinculação dessa geração com as passadas e insistiu em que “as questões da hegemonia cultural, as novas tecnologias e os meios de comunicação cumprem um papel vital, como ferramentas de dominação ou ferramentas para a liberação e descolonização. O objetivo é saber como utilizá-las”.

 

A Juventude do PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) abordou o tema dos golpes brandos, que se tornaram uma das cartas mais usadas nos últimos anos pelas agências de inteligência, em especial a CIA (principal órgão da inteligência estadunidense), para derrubar governos inconvenientes para seus interesses. Embora não sejam infalíveis, esses golpes vêm tendo sucesso ultimamente.

 

A representante brasileira União da Juventude Socialista (UJS), se referiu à perseguição política sofrida pelos ex-presidentes Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva. Planteou que o emprego de instrumentos jurídicos, a destruição da imagem do líder e o desmantelamento das instituições podem se confundir com os debates sobre a corrupção, que impedem ver o golpe do imperialismo onde ele aconteceu e desarmam a esquerda e a unidade do progressismo.

 

Por sua vez, a Juventude Comunista Colombiana (JUCO) dialogou sobre as intromissões estrangeiras, a aplicação da Doutrina Monroe por parte dos Estados Unidos, a legitimação das intervenções militares e o perigo de ver a realidade fragmentada e não analisá-la como um todo, enquanto os dirigentes da Organização Continental Latino-Americana e Caribenha de Estudantes (OCLAE, por sua sigla em espanhol), se referiram aos desafios da educação e das organizações estudantis

 

A batalha cultural

 

A cultura é o terreno no qual se disputa uma batalha crucial entre a liberação e a alienação das mentes a nível global, e por isso foi um dos debates mais importantes do segundo dia do 24º Foro de São Paulo. O cientista político cubano Enrique Ubieta falou sobre os interesses do imperialismo sobre esse tema, e das consequências do poder dos grandes meios de comunicação, de mentir com impunidade: “não importa se, com o passar dos dias, parte da sociedade descubra essas mentiras, pois a ação já obteve o efeito desejado, o de deixar uma marca na consciência das massas”.

 

Ubieta sustenta que a esquerda não reparou, nem durante todo o Século XX e nem neste começo de Século XXI – que a batalha cultural é provavelmente a mais difícil, e também a decisiva, já que “não existe uma sociedade nova sem uma cultura nova”, e acrescentou: “a ofensiva imperialista não se apoia numa reconquista do eleitorado, e sim em atos criminosos, golpes de estado judiciais, perseguições de líderes políticos e sociais... e tudo isso requer um relato coerente e bem amarrado”.

 

Vários participantes defenderam a criação de novos trabalhos e propostas envolvendo arte, pensamento e história, para construir cultura política, e que esta possa ser difundida a partir das bases, e concordaram em que os intelectuais de esquerda devem ter um outro papel neste sentido, de “ajudar o povo a pensar”.

 

Os intelectuais

 

Hernando Calvo Ospina, jornalista e escritor colombiano exiliados na França, falou sobre o papel que terá a intelectualidade de esquerda nesta conjuntura: “Primero, deve entender que são de esquerda. Nossa agenda na esquerda está sendo controlada pelos grandes meios de informação. Mesmo que digam algo que sabemos que não é verdade, são capazes de nos fazer duvidar do que sabemos”.

 

“É hora de percebermos que o inimigo é um só, e não há outro: o grande império, encabeçado pelos Estados Unidos. Devemos ter consciência de classe. O sistema (burguês) tem consciência de classe e sabe defender seus interesses. Nós não. É um problema muito grave. Não sabemos falar com as pessoas. Muitos de nossos companheiros, quando se expressam, parecem ter um certo prazer em buscar os sinônimos mais complicados”, disse Calvo, que contestou essa tendência: “queremos falar sobre o povo, mas não sabemos falar com o povo”.

 

O contexto comunicacional

 

Raúl Garcés, decano da Faculdade de Comunicação da Universidade de Havana, recordou que já não se pode ver o poder somente em termos de economia e de organização política, mas também em termos de poder simbólico, e o que determina isso nas sociedades contemporâneas é a configuração de governos, sistemas políticos e a relação entre governos e a opinião pública. “Por isso, os centros de poder dedicam tanto dinheiro a essas matérias”.

 

Entre os principais traços e tendências que definem o poder simbólico hoje, Garcés menciona a norteamericanização, a personalização, a comercialização e inclusive o que alguns chamam de “norteamericanização de segundo grau”, já que a dominação não é só de Norte a Sul, como também dentro do próprio Sul.

 

“Há um claro processo de norteamericanização da comunicação política, a partir do também evidente domínio dos Estados Unidos sobre os modelos de comunicação política imperantes”, disse o acadêmico, que também considera que esse fato influi, ademais, no ponto de vista de exportação dos modos de produção e das relações entre o sistema político e o sistema comunicativo no mundo de hoje.

 

Garcés disse que outra característica é a tendência a personalizar os processos políticos com um objetivo: dar a entender que desaparecendo as pessoas desaparece o problema, como fizeram com Fidel Castro, com Hugo Chávez e agora com Rafael Correa. “O sistema aponta um líder como seu inimigo e, para se defender, promove a ideia de fazê-lo desaparecer, como se este não fosse parte condutora de processo muito mais complexo, que vem de baixo para cima”, comentou.

 

Dar sentido às alternativas da mensagem hegemônica significa restaurar o sentido da palavra “deliberação”. Não há comunicação democrática sem debate, não há debate sem que as pessoas tenham voz, e não há voz sem que as pessoas sejam educadas e instruídas a compartilhas essas ideias.

 

Colonialismo 2.0

 

“Numa sociedade que transita aceleradamente da produção e comércio de bens e serviços físicos à produção digital, a nova e intensa concentração comunicativa e cultural – cujo centro está nos Estados Unidos – é o que decide como as pessoas gastam a maior parte dos seus recursos e suas horas diárias, e sua influência abrange ao menos um quarto da população mundial”, analisa Rosa Miriam Elizalde, vice-presidenta da União de Jornalistas de Cuba.

 

“Há poucas instituições públicas a nível nacional ou global que podem enfrentar estes superpoderes transnacionais. Aliás, as novas plataformas tecnológicas alteraram dramaticamente a natureza da comunicação pública. Não existe Estado-nação que possa remodelar a rede por si só, nem frear o colonialismo 2.0, mesmo executando normativas locais de proteção antimonopolistas”, considera a jornalista e investigadora.

 

Segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), cerca de 90% da informação eletrônica que circula na América Latina e no Caribe passa por algum filtro administrado direta ou indiretamente pelos Estados Unidos, e entre 70% e 80% desses dados intercambiados internamente pelos países da região também passam por cidades estadunidenses, onde se localizam 10 dos 13 servidores raízes que conformam o código mestre da Internet.

 

Esses mesmos dados apontam que a América Latina “é a região mais atrasada com respeito à produção de conteúdos locais, embora seja líder em termos de presença de internautas nas redes sociais. Dos cem sítios mais populares na região somente 21 difundem conteúdo do seu próprio pais ou região: isso quer dizer que em vez de criar riqueza para a região, o continente está transmitindo riquezas todos os dias aos Estados Unidos, onde estão alojadas as grandes empresas de Internet”.

 

Como disse Darcy Ribeiro, se trata de um novo tipo de colonização, que se aproveita de uma tecnologia revolucionária, e os Estados Unidos está cumprindo seu papel com enorme eficácia, no sentido de buscar complementariedades que nos tornarão dependentes dela permanentemente. Elizalde acredita que “as chamadas plataformas sociais não são um serviço isento, que explora um serviço genérico. Elas são o cimento tecnológica e ideológicos do sistema institucionalizado que foi desenhado para manipular as conexões”.

 

Vários delegados concordaram com a falta de estratégias e programas que permitam à esquerda desafiar e intervir nas políticas públicas, e gerar linhas de ação e trabalho definidas para construir um modelo verdadeiramente soberano da informação e da comunicação – mesmo sem ter conseguido concretizar o projeto de um canal próprio de fibra ótica, que foi um sonho da hoje boicotada União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

 

A esquerda na Europa e na América Latina

 

Os delegados do Partido da Esquerda Europeia e os membros do Foro de São Paulo advogaram por uma frente comum para enfrentar as ameaças a que afligem um e outro lado do Atlântico e suas estratégias para perseguir os movimentos progressistas e contrários ao status quo. Pablo González, da Frente Ampla uruguaia, disse que existem desafios novos, e que é necessário construir respostas efetivas. “Nossa incapacidade de discutir estes temas é uma vantagem para a direita”, disse,

 

A delegada italiana Ana Campos Silveiro explicou que, do lado europeu, o maior problema é a construção de uma integração que prioriza os temas econômicos, militares e comerciais, e não a justiça social e o fortalecimento da democracia e da participação popular. Silveiro também denunciou que seu país conta com mais de 300 bases militares dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o que significa um novo tipo de colonização e subordinação. “Precisamos ter mais coragem, e propor modelos diferentes”, afirmou a representante italiana, que criticou a socialdemocracia europeia por se aliar aos interesses econômicos do capital especulativo.

 

Por sua parte, a deputada alemã Heike Haense, vice-presidenta do Partido da Esquerda (Die Linke), criticou a intromissão dos Estados Unidos e da União Europeia nos assuntos internos de diferentes países, assim como o distanciamento de governos progressistas com alguns setores da população e dos movimentos de base. Ela assegura que “na Europa, o fortalecimento da direita é fruto do fracasso dos partidos socialdemocratas e socialistas, que deixaram um vazio político que, em muitos casos, tem sido ocupado pelos partidos da direita radical e pelos neonazistas.

 

- Elmer Pineda dos Santos é jornalista cubano associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE). www.estrategia.la

 

18/07/2018

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Foro-de-Sao-Paulo-a-esquerda-deve-reconstruir-o-significado-da-democracia/4/40974

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/194189
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