A rede de paraísos fiscais na América Latina

07/06/2017
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Foto: Rebelión del capital rebelion capital
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 522: Até quando existirão os paraísos fiscais? 05/06/2017

Durante o segundo semestre de 2016 dediquei um grande esforço a elaborar um estudo sobre as medidas tomadas por 13 países latinoamericanos[1] na luta contra a Rede de Paraísos Fiscais (RGF)[2]. O breve enfoque descritivo se refere a uma parte da América Latina, embora as conclusões e recomendações a respeito da abordagem necessária para resolver o problema da RGF tenham um alcance global.

 

Começando por uma das questões básicas da luta contra a RGF, sua identificação, vemos que, dos 13 países analisados em 2016, apenas seis apresentam listas ativas de paraísos fiscais (Brasil, México, Equador, Colômbia, Peru e El Salvador); dois já as preveem em sua normativa, mas não as emitiram, portanto, não têm efeito (Nicarágua e Honduras); e quatro deles não possuem nenhuma legislação relacionada a paraísos fiscais nem a preços de transferência (Bolívia, Costa Rica, Paraguai e Guatemala).

 

Na análise das listas de “Paraísos Fiscais” dos seis países da América Latina que as possuem, o primeiro aspecto que chama a atenção é sua heterogeneidade. Apenas 17 jurisdições estão presentes nas seis “listas negras” ativas, embora 42 só em uma delas e 73 se encontrem em algumas das seis listas ativas dos países analisados.

 

As medidas relacionadas a sanções, restrições ou prevenção de evasão e elisão, implementadas nas normativas dos países emissores das listas, são ainda mais variadas em termos de extensão, profundidade, alcance, metodologia e clareza, não só no presente mas na trajetória de cada um dos países. Em geral, estas medidas das normativas surgem relacionadas às questões de preços de transferência e, eventualmente, logo se ampliam, ou não, a outras vinculadas aos aspectos tributários, financeiros, de luta contra a lavagem de dinheiro, comerciais, etc. A variação abrange países que inclusive já preveem em sua legislação a elaboração e difusão de listas de paraísos fiscais, mas que, apesar disso, não o fizeram, anos depois de previstas, como é o caso de Honduras e Nicarágua.

 

Sem dúvida, existe uma relação entre a profundidade com que é tratado normativamente o tema da evasão e elisão fiscais utilizando a RGF e a magnitude do país que emite a normativa e o desenvolvimento de sua Administração Fiscal Federal ou Central. Mas há exceções, como o caso de El Salvador, que, sendo um país de pequeno porte e com um desenvolvimento incipiente na sua Administração Tributária Central, possui um detalhamento normativo de listas anuais e medidas correspondentes que chamam a atenção pela sua profundidade.

 

Soluções globais

 

Segundo a visão do autor, toda medida isolada de prevenção tomada por cada país em relação à RGF está destinada a ser, no mínimo, pouco efetiva. E, a longo prazo, praticamente inútil. A única solução real para o problema da evasão e elisão associadas à RGF deveria se dar globalmente, a partir de uma discussão num âmbito participativo e democrático, como as Nações Unidas. O debate deveria considerar a tributação desenhada nacionalmente em cada país, com base na economia vigente a princípios do século XX, e as soluções provisórias que até nossos dias não mudam sua essência. A discussão então deveria centrar-se na criação de regras internacionais que regulem e imponham tributação às forças produtivas e de comércio internacional, hoje encarnadas em multinacionais com presença e diversificação em dezenas de países. Corporações que apresentam níveis de faturamento que concorrem com os níveis de arrecadação de muitos países em desenvolvimento. Estamos falando de um debate sobre poder, no qual os Estados Nacionais devem enfrentar empresas que em muitos casos os superam em poder econômico e, portanto, fático. A integração entre as empresas de produção e as financeiras determinou que a questão do crescimento do poder das corporações multinacionais se agravasse, e que o uso da RGF não só ameace seriamente a arrecadação impositiva de todos os países do mundo, mas também a estabilidade financeira mundial, como foi demonstrado na crise financeira de 2008.

 

A RGF integra os fundos provenientes de todo tipo de origem, legal e ilegal, lícita e ilícita. E seus facilitadores funcionam como nexos entre todas essas fontes de fundos e os proprietários delas. Isto determina que a luta contra a RGF de cada Estado Nacional, dentro de suas fronteiras e em nível internacional, encontre-se de fato limitada pela disposição de suas classes políticas, indo às vezes contra seus próprios interesses. Isso acontece por serem elas parte do establishment econômico usuário da RGF ou sócias do mesmo, desde em casos de corrupção ou, no “mais inocente” dos “casos políticos”, reféns das forças nacionais ou internacionais ligadas às atividades ilegais violentas, como terrorismo, narcotráfico, tráfico de pessoas ou de armas, também usuárias da RGF.

 

A RGF tem poderes próprios e associados ao poder lobista a nível de medidas globais e nacionais. Foi possível ver que alguns países integrantes da RGF têm uma capacidade muito efetiva de conseguir sua exclusão das “listas negras”, ou de evitar sua inclusão. O Panamá, a Suíça e Luxemburgo são casos claros disto.

 

Ineficácia da OCDE

 

Analisar a profundidade das ações de um país na luta contra a RGF pela extensão de sua “lista negra” seria pecar por superficialidade e inocência, já que é possível incluir numerosos “Paraísos Fiscais” irrelevantes para o país emissor e excluir os mais relevantes. No entanto, em relação a esta questão é importante destacar que, na opinião do autor, a OCDE está tendo um papel chave na exclusão dos “Paraísos Fiscais” de maior relevância das “listas negras”, por meio de diversas ações que - mais do que atacar o problema da RGF – lhes proporcionam uma “cara limpa”, e trazem uma “ordem” a seu funcionamento. Isso seguramente aponta para o respeito aos níveis de poder das potências beneficiárias dos fluxos administrados pela RGF, nas porções que cada um recebe destas potências.

 

Assim, hoje é possível observar como os EUA e o Reino Unido continuam sendo os principais promotores das medidas inefetivas da OCDE. Promovidas e impostas pelo G20, são vistas concretamente, por exemplo, na obrigatoriedade de os países emissores de “listas negras” excluirem delas as jurisdições que, sendo parte iniludível da RGF, firmem um acordo de intercâmbio de informação no marco da “Convenção sobre Assistência Administrativa Mútua em Matéria Fiscal”, vinculado ao “Fórum Global sobre a Transparência e o Intercâmbio de Informação com Fins Fiscais” da OCDE. Como consequência direta destas ações, a OCDE não possui atualmente nenhuma lista de “Paraísos Fiscais” ou similares.

 

Na luta contra a utilização da RGF, está-se deixando de discutir uma série de manobras para elidir ou evadir tributos e para evitar regulações financeiras. A discussão é muito mais profunda e o que está em questão é a própria sobrevivência do estado de bem-estar vigente no século XX. Evitar uma luta frontal com a RGF ou combatê-la supondo que só se está atacando “pequenas ilhas” sem poder efetivo1[3], e que trabalham de forma isolada, anárquica e competitiva, é uma estratégia que a médio ou longo prazo implicará num fracasso. E, portanto, numa redefinição e redução da presença estatal, o que pode levar a um aumento da exclusão social e consequentemente da violência associada a pobreza, marginalidade e indigência.

 

As classes políticas atuais e futuras deverão avaliar se estão dispostas a ir fundo enfrentando a RGF e seus poderosos beneficiários diretos e indiretos, ou serem sócias e estarem dispostos a enfrentar as consequências sociais em seus países, sem ter a opção da violência da repressão, mais cedo ou mais tarde. No coração desta batalha surda, que se trava hoje e que continuará nos próximos anos, está o financiamento da política como nó central: enquanto continuar ligado a atividades ilegais, propinas ou contribuições aos beneficiários da RGF e ao apoio das multinacionais de mídia, a batalha estará claramente definida e as consequências também.

 

Juan Velardi é economista especialista em tributação e luta contra a lavagem de dinheiro. Ex-assessor da presidência do Banco Central, Banco Nação e da unidade contra a lavagem de dinheiro da Argentina.

 

 

[1] A pesquisa abordou um conjunto de 13 países da América Latina. Os 13 selecionados pelas ONGs patrocinadoras e pelo autor são: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai e Peru. Na seleção se combinaram a relevância econômica e populacional dos países junto ao pertencimento às ONGs: Rede de Justiça Fiscal Latino- Americana, LATINDADD. Está prevista a publicação do documento de pesquisa, por parte das ONGs, durante o ano de 2017.

 

[2] O autor resiste a utilizar a tradução habitual dos “Tax Havens” ao espanhol como “Paraísos Fiscais”, não apenas por ser equivocada do ponto de vista formal (a palavra “Paraísos” é “Heaven” em inglês, e não “Haven”), como por trazer implícita uma justificativa do uso da Rede de Paraísos Fiscais (RGF) por empresas e ricos que estariam fugindo do “inferno” dos governos, cuja “voracidade fiscal pretende saquear os benefícios obtidos com seus esforços”. “Haven” se traduz oficialmente como “Abrigo”, entre outras possibilidades, palavra que parece ser a mais representativa do papel cumprido pela RGF desde a época de piratas e corsários a serviço de sua majestade, a Rainha.

NdT: Para a versão em português, mantivemos o termo "paraísos fiscais" por não haver um termo equivalente a "guaridas" para este uso específico.

[3] Como sugere equivocadamente Gabriel Zucman em seu livro “A riqueza escondida das nações” (2015) em relação às ilhas e territórios que fazem

parte da Rede de Paraísos Fiscais, e portanto propõe medidas de solução que carecem de visão política e de disputa de poder entre os grandes beneficiários e os prejudicados.

https://www.alainet.org/pt/articulo/185992
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