Entrevista a Dênis de Moraes

“Não basta ter no papel legislações avançadas para garantir mudanças”

01/02/2017
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- Haveria no mundo anômico e conflituoso de hoje alguma esperança para uma cidadania planetária dos humanos e, por projeção utópica, uma cidadania para todos os seres (e, claro, ressalvados contextos de sobrevivência e respeito)?

 

Dênis de Moraes - O saudoso Milton Santos foi preciso e inspirador ao escrever, em seu magistral livro Por uma outra globalização, que a esperança na formação de uma consciência planetária que assegure direitos à cidadania faz parte da ideia de movimento e mudança inerente à evolução da humanidade. Se estamos imersos em um mundo violento, segregador e conflituoso, absolutamente não quer dizer que devemos abrir mão de buscar, em todos os espaços ao nosso alcance – da experiência de superação da escassez cotidiana aos usos de técnicas e tecnologias a favor da condição humana -, o que Milton chamou de “revanche” dos oprimidos, dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da “exaltação da vida de todos os dias”. Por mais que essas buscas transcorram por décadas e gerações, elas se mantêm encorajadas diante da tirania do dinheiro e da violência, porque se baseia na resistência cidadã, na solidariedade social e na convicção de que não estamos condenados à racionalidade dominante e à concentração de poder e riqueza; ao contrário, o desejo de mudança se orienta na direção das contrarracionalidades e contrassentidos capazes de produzir o novo, o que poderá ser um dia partilhado e distribuído mais equanimemente pelos cidadãos.

 

- Como encara o ceticismo com relação à possibilidade de uma circulação de todos os cidadãos pelo Planeta, independentemente de nacionalidade e portar ou não um cartão de crédito?

 

D.M. - É fato que o mundo interligado por tecnologias encurtou ou suprimiu distâncias, sobretudo no âmbito da internet, nas comunicações instantâneas e nas transmissões em tempo real. É fato também que os mercados financeiros nunca antes tiveram a sincronia e a velocidade dos fluxos globais para a expansão exponencial de seus negócios. Seja como for, essas e outras mutações estão longe de desfazer barreiras e conflitos que cerceiam, quando não proíbem, uma livre circulação planetária. Somos testemunhas de discriminações e desigualdades alarmantes, sob o signo das exclusões (sociais, econômicas, políticas, culturais). O drama atual dos refugiados e imigrantes pobres que tentam uma saída de vida na Europa, vindos de países dilacerados pela guerra e pelo terror, é uma das faces mais cruéis de um tempo de estigmas e alijamentos – tempo que, para ser ultrapassado nos desdobramentos do processo histórico-social, dependerá de uma longa e árdua luta da cidadania pela prevalência dos direitos humanos.

 

- Acredita que o terrorismo, tido por Habermas como uma das patologias da modernidade, sairá vitorioso nos seus propósitos de tentar impor, pelo medo, os seus valores políticos e religiosos e, com suas ameaças, fazer com que países como Estados Unidos e França fechem cada vez mais as fronteiras para estrangeiros e migrantes?

 

D. M. - Eu me recuso a imaginar que o terrorismo venha a impor, pelo medo, seus "valores" políticos e religiosos. Seria admitir que uma das mais hediondas manifestações da barbárie possa prosperar. Lastimavelmente, as consequências da insanidade do terror e também da ação imperial e belicista dos Estados Unidos e seus aliados são muito graves para a humanidade: mortes, fechamento de fronteiras a estrangeiros e migrantes, perseguições étnicas e religiosas, repressões indiscriminadas e conflitos brutais. Edgar Morin escreveu, após os atentados terroristas de Paris em 13 de novembro de 2015, um magnífico artigo no Le Monde sustentando que ou entendemos a necessidade de construir uma cultura de paz e tolerância, ou continuaremos reféns dos ódios, do terrorismo e da obsessão da guerra como revide.

 

- Antevê algum avanço da mídia em termos de ampliação de suas pautas, para além dos interesses "nacionais"?

 

D. M. - Não tenho ilusões quanto a avanços da mídia hegemônica no sentido de ampliar e diversificar suas pautas. A mídia move-se, quase sempre, por injunções políticas e por fatores mercadológicos e financeiros que resultem em mais lucratividade, rentabilidade e domínio. No que poderíamos chamar de gestão midiática da realidade, os principais veículos seguem inabalavelmente difundindo juízos de valor e sentenças sobre fatos e acontecimentos, sem delegação social para tal, mas se autoproclamando intérpretes da vontade geral. A intenção, assumida mas não declarada, é disseminar informações, ideias e noções que ajudem a organizar e a unificar a opinião pública em torno de determinadas concepções de mundo. Não são neutros, como querem fazer crer; são parciais, tomam partido, elegem os atores sociais que, a seu ver, merecem ser incluídos ou marginalizados em noticiários e programações, quais as agendas e pautas que devem ser destacadas ou ignoradas.

 

- O Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, refere-se aos direitos de informar e de ser informado. Acredita o professor que as redes sociais contribuirão para uma sociedade global mais humanitária e mais informacional por parte dos cidadãos, mesmo face a sinalizações de que essas mesmas redes têm facilitado as ações do tráfico de drogas, dos racistas e dos sexistas?

 

D. M. - As redes sociais já constituem um importante espaço de sociabilidade e interação, de circulação informativa e debate cultural. Comportam grande variedade de usos e objetivos. Podemos perceber formas mais descentralizadas de obtenção, apropriação e compartilhamento de dados, sons e imagens, bem como outras dinâmicas de aproximação, convívio e intercâmbio. Mas a internet não representa o Eldorado; está cheia de impurezas e contradições. Ela reflete o mundo desigual que aí está, inclusive seus riscos, como fraudes, piratarias, vigilância ilegal, espionagem, invasão de privacidade, rastreamento de dados pessoais e financeiros, violação de direitos protegidos em lei, desrespeito a direitos de propriedade intelectual, incitação a atos deletérios, pornografia infantil, falsidade ideológica, crimes digitais, etc. Ainda há a censura imposta em alguns países por governos autoritários que temem o contraditório. O que me parece alvissareiro é a chance de aproveitarmos os recursos da internet para a liberdade de informação, a expressão de identidades e reivindicações sociais, as afinidades eletivas, as criações culturais, as trocas não mercantilizadas. Uma ambiência na qual certas idiossincrasias e deturpações da mídia podem ser denunciadas ou confrontadas a qualquer momento. Agora mesmo muitas pessoas estão nas redes sociais comentando temas que não aparecem nos noticiários, ou até expondo mentiras no que é divulgado.

 

- Como o senhor avalia as políticas de comunicação colocadas em prática ou deixadas de lado nos países latino-americanos?

 

D. M. - A ênfase nas políticas públicas de comunicação é decisiva para a criação e a aplicação de mecanismos de proteção às demandas da coletividade frente às ambições lucrativas do setor privado. Está em questão fazer prevalecer um conjunto de princípios e práticas que assegure a pluralidade e proteja as identidades e as tradições culturais dos povos, com o reconhecimento de sua essencialidade na vida dos indivíduos e das comunidades. Para isso, sobressai a exigência de se reestruturar a radiodifusão sob concessão pública em moldes democráticos, bem como impulsionar medidas que fomentem a diversificação das fontes produtoras e distribuidoras de conteúdos. As modificações nos sistemas de comunicação em países latino-americanos prosperaram a partir de fins dos anos 1990, com a ascensão de presidentes eleitos com as bandeiras da justiça social e da inclusão das massas nos processos de desenvolvimento, na sequência de mobilizações populares contra a degradação da vida social durante décadas de hegemonia do neoliberalismo. Pela primeira vez, ações que visam reestruturar os sistemas de comunicação passaram a constar das agendas públicas, com base no convencimento de que é preciso barrar a dramática concentração da mídia nas mãos de um reduzido número de megagrupos. Governos progressistas – notadamente os de Hugo Chávez na Venezuela; Rafael Correa no Equador; Evo Morales na Bolívia; e Néstor e Cristina Kirchner na Argentina – levaram adiante um conjunto de leis, normas e políticas capazes de se opor à concentração da mídia, a partir do entendimento de que cabe ao Estado tentar compatibilizar os interesses público e privado e zelar pelos direitos à informação e à diversidade. Entre as novas legislações antimonopólicas, destacam-se a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina, a Lei Orgânica de Comunicação do Equador, a Lei de Comunicação Popular da Venezuela, a Lei Geral de Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação da Bolívia e as Leis de Radiodifusão Comunitária e de Serviços Audiovisuais do Uruguai. Em linhas gerais, essas legislações ampliam a regulação da radiodifusão, instituindo parâmetros socialmente equilibrados para a licitação de outorgas de rádio e televisão e impedindo que as mesmas empresas acumulem canais abertos, a cabo ou via satélite. Ao mesmo tempo, apoiam, através de editais de fomento, produções audiovisuais independentes e plataformas digitais, mídias sociais e comunitárias; geração e distribuição de conteúdos regionais e locais sem fins lucrativos; financiamento de coproduções e redes alternativas de distribuição e exibição para filmes, documentários e seriados televisivos. A chamada Ley de Medios argentina (2009) foi pioneira ao estabelecer condições equitativas entre os três tipos de prestadores de serviços de radiodifusão sob concessão pública: a gestão estatal (meios públicos), a gestão privada com fins lucrativos e a gestão social sem fins lucrativos (organizações não governamentais, entidades comunitárias, universidades, sindicatos, produtores independentes). Esse ponto é chave para tentar reverter a acentuada predominância do setor privado-comercial, pois prioriza a equanimidade em termos de acesso, difusão, prerrogativas e representatividade. Cumpre assinalar que a intensidade das mudanças e os resultados já alcançados variam de país para país, em função de circunstâncias políticas e econômicas, dos embates eleitorais, das correlações de forças, de respaldo popular, de envolvimento dos poderes públicos em situações específicas, do grau de mobilização social e participação comunitária nos processos comunicacionais, culturais e políticos, entre outros quesitos. Uma evidência do que acabo de dizer ocorre atualmente na Argentina, onde o governo direitista de Macri tudo faz para desfigurar e enfraquecer a Ley de Medios e, por consequência, favorecer a concentração monopólica da mídia e os interesses dos grupos empresariais do setor.

 

- Que possíveis perspectivas e obstáculos podem existir para a renovação das políticas de comunicação nos países latino-americanos?

 

D. M. - Mesmo considerando promissoras as medidas regulatórias e de fomento à comunicação audiovisual, existem obstáculos às propostas democratizadoras, e um dos mais tenazes é a oposição dos conglomerados midiáticos, sobretudo quando entra em pauta a revisão das leis de radiodifusão. Eles não admitem modificações que venham a afetar suas receitas com as joias da coroa – as licenças de rádio e televisão. Temem perder as vantagens econômicas e a influência na conformação do imaginário social. Os discursos da mídia contra os governos progressistas, reiterados com virulência retórica, insistem na falácia de que a “liberdade de expressão” estaria em perigo nas mãos de governos “populistas” ou “ditatoriais”. Trata-se de uma batalha arriscada e desigual para os governos progressistas. O poder de fogo da mídia empresarial dificulta o esclarecimento da sociedade sobre a urgência de um sistema democrático de comunicação, porque inibe o debate público e incute argumentos que não correspondem à realidade vivida em cada país. Os governos progressistas, com seus acertos e erros, não são fortalezas inexpugnáveis; há discrepâncias e disputas internas, bem como dificuldades de coordenação política, de conscientização e politização de setores populares e de maior articulação com expressões organizadas da cidadania. Sem falar na tendência de meios estatais de privilegiarem excessivamente agendas positivas, sem analisar na devida conta problemas econômicos, políticos e sociais que vêm debilitando a imagem de governos progressistas perante segmentos ponderáveis da opinião pública. Torna-se precipitado asseverar que o horizonte de mudanças levará a alterações definitivas – até porque o destino dos governos progressistas no continente ainda é incerto, tendo em vista as oscilações eleitorais, os instáveis cenários econômicos, as contendas políticas, as batalhas judiciais, os fatores culturais, as insatisfações sociais, as contradições internas dos próprios governos progressistas, etc. Também é preciso reconhecer que os avanços, tanto no âmbito do Estado quanto na sociedade civil, ainda não são suficientes para reduzir o enorme peso histórico dos grupos privados de comunicação. As contraofensivas do conservadorismo exigirão, por parte das forças que conduziram até agora os processos de transformação socioeconômica e cultural, autocríticas, reavaliações de estratégias e renovações de políticas públicas e programas. Sem falar nos desafios postos a modelos de desenvolvimento inclusivos e autossustentáveis em meio a economias globalizadas sob o jugo do capital financeiro especulativo. Podemos deduzir que não basta ter no papel legislações avançadas para garantir mudanças consistentes; se as condições políticas e sociais requeridas para a sua plena vigência não forem alcançadas, haverá sempre o risco de retrocessos, aí incluída a meta de fortalecer o direito humano a uma comunicação plural.

 

 

*Versão revista e editada da entrevista de Dênis de Moraes a Fernando Oliveira Paulino, Luiz Martins da Silva e Jairo Faria, publicada na Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, ALAIC, volume 13, número 24, janeiro de 2017.

 

Dênis de Moraes é pesquisador sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, do Brasil, e doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor, coautor e organizador de mais de 30 livros, 9 deles publicados no exterior (Espanha, Argentina, Cuba, Colômbia e México). Seu mais recente livro é Crítica da mídia e hegemonia cultural (2016).

https://www.alainet.org/pt/articulo/183245
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