O Tribunal das Águas e o sentido da vida comum

20/12/2016
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A cidade de Valência foi fundada por uma legião romana há quase dois mil anos. O nome da legião era “Valentia” do qual derivou o seu nome atual. Neste novembro de 2016, governa a cidade uma coalizão política estranha à tradição partidária espanhola, composta por novos partidos, setores partidários tradicionais e organizações políticas originárias de movimentos sociais, que romperam os quadros da política tradicional. Esta nova coalizão governa depois de 24 anos de direção do Partido Popular, que hoje novamente faz a gestão do ajuste no Estado espanhol.

 

Neste mês de novembro completou-se 80 anos da transferência do Governo Republicano para a cidade de Valência, durante os anos duros da guerra civil, face ao avanço avassalador dos Exércitos Franquistas, apoiados pela força bélica da Alemanha nazista. Esta considerava a Espanha um território fundamental na sua missão de dominar a Europa. Valência é uma bela cidade de tradição romana e mourisca, que simboliza o berço cultural de um processo civilizatório aqui marcado pela beleza da sua arquitetura e das suas tradições locais. Mouros e romanos legaram, neste espaço da Europa, o melhor da sua civilização.

 

A cidade é envolvida por um abraço do rio Turia, de onde partem oito canais de irrigação que servem centenas de hortas e laranjais que fazem da região um corpo verde de fertilidade, de jardins cultivados e folhagens, nos quais a irrigação permanente faz explodir na paisagem uma enorme variedade de cores. No centro de Valência foi construído um chafariz, no qual fluem as águas do rio Turia, através da estátua de oito ninfas de ferro que cercam um homem deitado, assediado pelo frescor permanente das águas. É o símbolo do “sentido comum” arquitetado pela vontade humana, para distribuição equitativa da água, modo da inteligência milenar da comunidade.

 

O “Tribunal das Águas de Valência” é a mais antiga instituição de justiça democrática existente na Europa. Ele trata de organizar os privilégios de distribuição que gozavam as hortas nos tempos dos árabes, para fazer justiça respondendo às necessidades de cada agricultor. Este tribunal vem dos tempos do Califado de Córdoba, de tradição islâmica, adequado aos tempos novos em que os Reis espanhóis organizaram seu poder no território. Nesse Tribunal os Juízes trabalham sem remuneração, fiscalizados in loco pelo povo da cidade, cuja legislação reconhece não só a sua autonomia, mas também a validade plena de suas decisões.

 

Valência e a região são herdeiras da civilização romana, árabe e das lutas modernas pela formação do Estado espanhol. O Tribunal das Águas representa o que de mais profícuo produziu a presença islâmica, em termos de justiça, nesta história que já tem oito séculos. A professora Elinor Osstrom, Prêmio Nobel de Economia de 2009, escreveu um livro poderoso sobre esta experiência de valorização do “sentido comum”, através da qual a comunidade orienta a resolução de seus conflitos. Trata-se do livro “O governo dos bens comuns” no qual este patrimônio humanitário, comunitário e de profundo sentido socialista é incorporado como o possível elemento de uma Economia Política de Justiça.

 

Valência, com a sua memória também formada pela Guerra Civil Espanhola não fica por aí como história. La está o Hotel Metropol, antiga embaixada da URSS, durante a instalação da República na Guerra Civil, residência também de Mijail Kultjov correspondente do Pravda, que regressa a URSS no fim da Guerra Civil, onde é fuzilado pela polícia de Stalin. Lá está, na Calle Poeta Querol, o lugar onde se hospedava Ernest Hemingway e John dos Passos, sitio simbólico onde ambos rompem uma velha amizade porque dos Passos buscava incessantemente o professor Pepe Robles, celebre tradutor do general russo Gorev, o grande defensor de Madrid Hemingway desdenhava desta busca. Pepe Robles havia sido “sumido” pela KGB, porque sabia demais. O General Gorev quando volta à Moscou também é fuzilado a mando de Stalin.

 

Como se vê, Valência guarda a grandeza do heroísmo, a covardia da paranoia, as tragédias e as glórias de um vasto período histórico, no qual a generosidade da luta pela República contra o Fascismo sofreu os impasses, não só da violência nazifascista e do franquismo, mas também a violência burocrática do aparato soviético que, ao mesmo tempo que sustentava a República, procurava estender o seu monopólio da violência de Estado mais além do seu território.

 

Valência, porém, sobrevive com o exemplo do Tribunal das Águas como um atestado dessa época gloriosa de lutas republicanas. Trata-se de um órgão de jurisdição sobre a distribuição das águas dos canais do rio Turia, que emite suas sentenças irrecorríveis, discutidas e acordadas publicamente perante a comunidade, tendo seus juízos e procedimentos orais cumpridos imediatamente: água distribuída na medida de quem dela precisa. Ela faz florescer não somente hortas e laranjais, mas o “sentido comum” de Solidariedade e de Justiça que pode unir uma comunidade de destino. O Tribunal das Águas não é um organismo folclórico e inoperante de mera representação da tradição, mas, antes de tudo, um modelo de justiça que “o homem da horta” constituiu e respeitou, que sobreviveu a todas as reformas.

 

Lá na cidade que foi o último suspiro da República, onde convergiram homens e mulheres de todas as regiões do mundo, para defenderem os ideais da República e da Democracia, sobrevive uma instituição que dá luz à memória de todos os heróis da Guerra Civil. E que é, ao mesmo tempo, uma crítica feroz da burocracia, do autoritarismo, da violência estatal sem medidas. Hemingway, dos Passos, Pepe Robles, Osstrom representam suas melhores lembranças, hoje nas mãos de uma nova Frente Política com o Prefeito de Valência Joan Ribó (do Grupo Político “Compromis”), com a Vice-presidenta da região Mónica Oltra, com o Presidente do Parlamento Valenciano Enric Morera, com o Presidente da Generalitat Valenciana Ximo Puig (da esquerda do PSOE), que receberam recentemente a honraria da FAO reconhecendo Valência a “capital mundial da alimentação” em 2017.

 

O jornal valenciano “Levante” (13.12.2016) anuncia na sua manchete principal que “Los trabajadores que ganam menos de 524 Euros recibirán renta de inclusión”. Na contra-tendência dos ajustes liberais do mundo, pelos quais os pobres pagam as contas da dívida pública, Valência faz a complementação de renda dos trabalhadores precários, intermitentes, meia-jornada, desempregados, vítimas principais das insanidades do neoliberalismo, como os originários da PEC 241/55.

 

A experiência política atual de Valência tem dois significados importantes para nosso tempo brasileiro. De uma parte, é uma nova experiência de Frente Política que foge dos padrões daquelas propostas pelos partidos tradicionais e se expressa, inclusive com apoio do PODEMOS na instalação do Governo, como uma nova forma de fazer política, na qual os partidos e movimentos, juventudes dos movimentos sociais e quadros históricos das lutas sociais e democráticas, convergem para produzir um novo sentido para a política e para a vida comum.

 

De outra parte, o Tribunal das Águas, como instituição milenar, mostra que a arquitetura que gerou o poder de Estado pode ser permeada por uma participação direta da comunidade nas questões essenciais atinentes a sua vida. O sentido do comum pode integrar o Estado moderno e dissolver as barreiras burocráticas e autoritárias que separam o cidadão comum da gestão pública. O sentido do comum derrota o privatismo, o aparelhamento, a ideologia neoliberal do mais forte e o poder privado sobre os bens da naturalidade.

 

A dinâmica política, as ações culturais e as dimensões múltiplas da vida cotidiana, mostram que os seres humanos podem se apropriar do seu destino. Basta, como ponto de partida, que se reconheçam como iguais, para combinar Gestão, Democracia, República e Justiça, numa mesma totalidade compreendida como solidariedade e compromisso. Aliás “Compromis” é o nome da formação política inovadora, que juntamente com os socialistas autênticos, a Izquierda Unida e o PODEMOS reacenderam a luz da Democracia e da República na alma da humanidade valenciana , espanhola e universal.

 

19/dez/2016

http://www.sul21.com.br/jornal/o-tribunal-das-aguas-e-o-sentido-da-vida-comum/

 

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Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

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https://www.alainet.org/pt/articulo/182477
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