O lugar do Sul na política externa brasileira do governo provisório

19/05/2016
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Foto: Roberto Stuckert Filho/PR  presidentes cumbre mercosur
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 Desde seus primeiros minutos em ação, o governo provisório, liderado pelo presidente interino Michel Temer, já reiterou por diversas vezes seu intuito de resgatar a credibilidade internacional entre investidores estrangeiros e fortalecer a inserção da economia brasileira no mercado internacional.

 

A nomeação de José Serra, um político de peso e com conhecidas aspirações presidenciais, para a pasta de Relações Exteriores, eleva a prioridade da política exterior no debate político doméstico.

 

A ênfase em negociações comerciais, a tradicional preferência do PSDB por relações com países desenvolvidos e a baixa prioridade (por vezes beirando a retórica do desprezo) dada às relações do Brasil com os vizinhos (sobretudo aqueles capitaneados hoje por líderes de esquerda) indicam um realinhamento geopolítico, marcado por não priorizar a cooperação política e econômica no eixo Sul-Sul e o ressurgimento de uma visão de política externa como servindo quase que exclusivamente de instrumento ao desenvolvimento econômico doméstico.

 

O sentido de desenvolvimento aqui muito se aproxima da ideia de crescimento econômico, deixando de lado outras dimensões da ação externa do País exploradas nos últimos anos, como o combate à fome e a diversificação das relações diplomáticas em um contexto internacional multipolar.

 

Sob a batuta petista, a política externa brasileira também buscava elevar o protagonismo internacional do Brasil por meio de uma política “altiva e ativa”. De certo que a altivez e a pró-atividade já estavam em baixa e a agenda comercial já ganhara protagonismo desde o início do segundo mandato de Dilma. No entanto, a guinada atual aparenta ser mais profunda.

 

Diante das mudanças já anunciadas ou verbalizadas por meio de uma sucessão de discursos e notas, o objetivo dessa reflexão não é um exercício de futurologia sobre o papel do Brasil no Sul, mas sim contribuir a um debate mais aprofundado que leve em consideração a realidade da política externa brasileira em seus diversos eixos e atente para as implicações dos atuais contextos doméstico e internacional para o seu imbricado processo decisório.

 

Ainda que a orientação da política externa certamente desprivilegiará a relação com países em desenvolvimento, baseada nos interesses mútuos de desenvolvimento e na solidariedade, o processo decisório da política externa responde a inúmeras variáveis domésticas e internacionais que nos levam a acreditar que o descarte da dimensão Sul-Sul seria uma ação imprudente à política externa brasileira.

 

Entre essas variáveis elencamos: o contexto internacional multipolar; princípios já consolidados de autonomia e diversificação das relações exteriores do Brasil; o carácter horizontal do processo decisório em política externa; a institucionalidade dos atuais engajamentos do Brasil com seus parceiros do Sul; o custo político e simbólico de abster-se de temas globais e os desafios que a própria crise política e econômica impõe para a política externa.

 

No atual contexto internacional, caracterizado pelo aprofundamento da multipolaridade e protagonismo de países em desenvolvimento, pensar um Brasil dedicado exclusivamente a cultivar suas relações com os ‘do Norte’ é ignorar, não somente a,identidade internacional do País, mas também os importantes câmbios na estrutura do sistema internacional das últimas duas décadas.

 

Não se trata de uma conjuntura passageira e é por isso que o Itamaraty, um órgão que tradicionalmente preza pela continuidade da estratégia de inserção internacional do País e dos sempre disputados “interesses nacionais”, tem trabalhado nas últimas décadas para consolidar a presença brasileira no entorno regional, assim como sua atuação em espaços multilaterais e na democratização dos organismos de governança global.

 

Nestes três eixos estratégicos da política externa exigem-se do Brasil não apenas boa interlocução, mas sobretudo articulação e relações amistosas, baseadas em ganho mútuos, com os países do Sul.

 

Ao mesmo tempo, o Itamaraty não é o único ator responsável pelas decisões em política externa. Há tempos constata-se que a política externa responde à dinâmica e multifacetada agenda global, na qual ministérios e empresas público-privadas participam de uma infinidade de redes e compromissos internacionais.

 

Essa horizontalização do processo decisório em política externa traz ao menos duas implicações que podem diminuir a margem de manobra discricionária do governo provisório. Essa inserção internacional difusa proporciona ao processo decisório maior permeabilidade a distintos interesses econômicos e sociais, complexificando a negociação de posições.

 

No que diz respeito ao engajamento brasileiro junto a outros países do Sul, este processo de horizontalização implica em que atores nacionais tenham interesse econômicos de longo prazo em continentes como África ou América Latina, ou junto a demais potências “emergentes” como Índia ou China. Ainda, movimentos e organizações da sociedade civil brasileira seguirão mobilizados em torno da política externa, seja para defender espaços e agendas conquistados, seja para denunciar ações do governo brasileiro que contradigam princípios constitucionais ou ainda comprometimentos internacionais assumidos pelo Brasil anteriormente.

 

A institucionalidade das relações com outros países do Sul também deve ser levada em conta: um eventual rompimento acarreta custos de natureza diferente para cada um dos casos.

 

No caso do agrupamento BRICS, cujo mais recente capítulo se refere à recente institucionalização do Novo Banco de Desenvolvimento, um eventual rompimento significaria não apenas desperdiçar esforços econômicos e políticos na nova instituição financeira, mas sobretudo perder um importante canal de diálogo com potências com China e Rússia e diminuir a relevância do Brasil no debate sobre financiamento internacional ao desenvolvimento.

 

No caso do Mercosul, a institucionalidade existente no bloco - fruto de desdobramentos progressivos desde a década de 1990 - implicam esforços importantes para qualquer tipo de reforma ou rompimento por parte do Brasil, gerando resistências e desgastes doméstico e internacionais, com os demais sócios do Mercosul.

 

A Cooperação Sul-Sul para o Desenvolvimento, por sua vez, tampouco é uma agenda que convém abandonar. Nos últimos anos, a cooperação brasileira cresceu em número e em capilaridade geográfica, revertendo ao Brasil entre outros um capital simbólico não-negligenciável. Atraiu o interesse de doadores tradicionais e o país estabeleceu parcerias importantes com países como Alemanha, Inglaterra, Japão e Estados Unidos, assim como com organismos internacionais, para atuar conjuntamente - por meio da cooperação trilateral - em prol do desenvolvimento de outros países do Sul. Apesar de ser uma agenda de menor peso, traz espaço para concertação com distintos países, assim como para influenciar a agenda dos organismos internacionais em temáticas específicas.

 

Apesar da crise conjuntural, neste mundo multipolar o Brasil segue sendo uma potência média e um importante ator internacional. As expectativas em relação ao seu desempenho e atuação nos grandes desafios globais podem reduzir temporariamente, mas não cessarão por completo. Há espaço e anseios pelo contínuo compromisso do Brasil em crises como a dos refugiados com sua política ‘de braços abertos’ quando a Europa insiste em fechá-los, na mediação de interesses entre o Norte e o Sul em negociações de mudanças climáticas como foi o caso na COP de Paris, ou então nas distintas contribuições feitas ao longo do processo de negociação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, apenas para citar alguns exemplos.

 

Para além dos fatores mencionados, uma mudança radical de rumos da política externa enfrenta também os desafios conjunturais da atual crise política e econômica doméstica. A negociação de novos acordos de comércio leva tempo, mobiliza distintos interesses domésticos e não trará os frutos prometidos tão cedo. Simultaneamente, a crise debilita a atuação internacional do País, valendo para quaisquer que sejam suas orientações.

 

Soma-se a isso o fato da necessidade do governo provisório fazer valer sua legitimidade em um contexto no qual meios de comunicação internacionais questionam o processo de impeachment e a credibilidade dos integrantes do novo governo, assim como as declarações de diversas chancelarias têm enfatizado a natureza provisória do governo ou, diretamente, não o reconhecem.

 

Por fim, se o Sul merece ter seu lugar na política externa deste governo provisório, as incertezas permanecem muitas para que este lugar esteja garantido. Quais serão os principais atores que se mobilizarão nas pautas de política externa de cada ministério e como estas pautas dialogarão com os compromissos anteriores assumidos perante os parceiros do Sul?

 

Como a política externa do governo provisório responderá às expectativas da comunidade internacional para que o Brasil mantenha seu papel de potência emergente? Como responderá às frentes abertas que buscaram ampliar o escopo de política externa como um instrumento de desenvolvimento social e humano e não apenas do crescimento econômico? Como formulará uma política externa que responda a os desafios globais de um contexto multipolar que exigem um Sul, do qual o próprio Brasil faz parte, mobilizado e atuante?

 

- Melissa Pomeroy é doutora em Ciência Política pela Universidade Autônoma de Barcelona.

- Laura Trajber Waisbich é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris.

*Convidadas do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

 

19/05/2016

http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/o-lugar-do-sul-na-politica-externa-brasileira-do-governo-provisorio

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/177568
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