Dedo na ferida

26/01/2016
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Foto: Davi Ribeiro o juiz moro
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Não é de hoje que a Lava Jato, dedicada à apuração do esquema de corrupção na Petrobras, é alvo de contundentes críticas por seus métodos pouco ortodoxos. Pela primeira vez, surge um foco de insurgência no meio jurídico.

 

Em carta aberta, publicada na sexta-feira 15 em jornais de grande circulação, 105 advogados, juristas e professores de Direito manifestaram repúdio ao que chamam de “regime de supressão episódica de direitos e garantias” observado ao longo da megaoperação. 

 

A lista de irregularidades e abusos apontados pelo grupo é extensa. O vazamento seletivo de informações sigilosas convive com a sonegação de documentos à defesa dos acusados, diz o manifesto. Denuncia-se, ainda, o desvirtuamento das prisões provisórias, utilizadas para forçar a celebração de acordos de delação premiada.

 

Os especialistas mostram-se igualmente ressentidos com o “menoscabo ao direito de defesa, à garantia da imparcialidade da jurisdição e ao princípio do juiz natural”. A conclusão é enfática: “O que se tem visto nos últimos tempos é uma espécie de inquisição (ou neoinquisição), em que já se sabe, antes mesmo de começarem os processos, qual será o seu resultado”. 

 

Tão logo o documento ganhou publicidade, sobrevieram as reações. Os jornalões abriram espaço para exaltados editoriais e colunas de opinião, em defesa dos agentes envolvidos na Lava Jato.

 

Coordenador da força-tarefa da operação, o procurador Deltan Dallagnol ironizou a postura dos advogados. “Eles violaram o princípio mais básico que defendem, o de não fazer acusações genéricas”, afirmou.

 

Por meio de nota, a Associação Nacional dos Procuradores da República questionou os interesses dos signatários. “A publicação paga, veiculada em vários jornais do Brasil, é de autoria de muitos dos advogados dos próprios investigados na Lava Jato, que se revelou o maior caso de corrupção da história do País.”

 

Segundo o manifesto, é “inconcebível que os processos sejam conduzidos por magistrado que atua com parcialidade, comportando-se de maneira mais acusadora do que a própria acusação”. Eis, aqui, uma das fragilidades do documento: não dar nome aos bois, o que permitiu ao juiz Sergio Moro esquivar-se dos inevitáveis questionamentos.

 

Em vez de declarações públicas, Moro optou por passar um recado nos autos de um processo contra executivos da Odebrecht, no qual acusa os defensores da empreiteira de tentar retardar o julgamento com “novos e intempestivos requerimentos”, além de sentenciar: “O processo é uma marcha para frente. Não se retornam (sic) às fases já superadas”. 

 

O magistrado contou, ainda, com a defesa encampada pela Associação dos Juízes Federais do Brasil. “Quando há provas de um vício ou equívoco processual, o natural é apresentá-las ao Tribunal, para que se mude o curso do caso. Quando elas não existem, uma carta nos jornais parece um meio de dar satisfação aos próprios contratantes”, declarou a entidade.

 

“Essas reações intempestivas demonstram um profundo desprezo pela figura do advogado, que é tão fundamental para o sistema judicial quanto um procurador ou magistrado”, reage Rafael Valim, presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura.

 

“Foram os advogados que denunciaram as torturas e prisões ilegais durante a ditadura. Eles defendiam apenas os interesses de seus clientes? Percebe o absurdo?”

 

Valim destaca ainda que boa parte dos signatários do manifesto não representa réus da Lava Jato. Estão, porém, preocupados com as implicações desses métodos sobre o sistema judicial.

 

“Verifico uma perigosa influência da mídia nos rumos dessa operação. É um processo que se retroalimenta. De um lado, agentes da Polícia Federal ou procuradores municiam os jornalistas de informações, muitas delas sigilosas. De outro, a mídia faz um noticiário que legitima essa operação espetacularizada.”

 

O manifesto faz alusão, por exemplo, à capa da última edição da revista Veja, a estampar fotografias de réus “extraídas indevidamente de seus prontuários na Unidade Prisional em que aguardam julgamento”.

 

Para o grupo de advogados, a estratégia de “massacre midiático” visa construir a crença coletiva de que os acusados são culpados antes mesmo do julgamento, além de legitimar a manutenção de desnecessárias medidas restritivas e prisões provisórias, “engrenagem fundamental do programa de coerção estatal destinado à celebração de acordos de delação premiada”.

 

Professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo, Pedro Estevam Serrano também contesta a acusação de que os advogados se valem de acusações genéricas.

 

“Há quase dois anos, revelou-se a existência de um grampo na cela de Alberto Youssef, mas as sindicâncias conduzidas pela Polícia Federal e pelo Ministério da Justiça ainda não apresentaram conclusões. Todos os dias vemos trechos de delações sigilosas nas páginas dos jornais. Não compete aos advogados fazer o trabalho da polícia ou do Ministério Público”, afirma.

 

“Há réus que já foram condenados no processo da Lava Jato sem que essas questões tivessem sido esclarecidas.”

 

Preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, Youssef encontrou, em abril de 2014, uma escuta ambiental em sua cela, instalada sem autorização judicial. Uma sindicância, instaurada por provocação da defesa do doleiro, concluiu que o grampo estava inativo. O imbróglio está, porém, longe de um desfecho.

 

Dalmey Werlang, analista do Núcleo de Inteligência da PF, admitiu à Justiça Federal no Paraná ter plantado o equipamento na cela de Youssef, mas asseverou cumprir ordens de superiores. O delegado Mário Fanton também contestou as conclusões da investigação e denunciou sofrer pressões de colegas da corporação. 

 

Diante das divergências, a PF abriu uma nova sindicância para esclarecer o episódio, desta vez sob os cuidados de sua equipe em Brasília. Até o momento, nenhuma conclusão foi apresentada. Mesmo com o caso sob apuração, o Ministério Público Federal apresentou uma denúncia à Justiça contra Dalmey e Fanton por calúnia.

 

A Promotoria sustenta que os dois agentes relataram às autoridades que um colega teria sido coagido durante a investigação interna, fato negado pela suposta vítima e pelos delegados da Lava Jato. A denúncia acabou, porém, rejeitada pelo juiz Danilo Pereira Júnior, da 14ª Vara Federal de Curitiba, no fim de setembro.

 

“Caso comprovada a existência do grampo e seu consequente acobertamento na sindicância que apurou o caso, em tese estarão implicados delegados que compõem a força-tarefa da Lava Jato, e nessa condição conduziram as investigações”, diz a criminalista Dora Cavalcanti, que representa executivos da Odebrecht.

 

“Há precedentes de nossos Tribunais Superiores anulando as provas obtidas em investigações conduzidas por delegados, depois que se comprovou terem atuado de maneira desvirtuada e contrária à lei”, acrescenta.

 

O mais recente exemplo é da Operação Satiagraha, invalidada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2011, para o deleite do banqueiro Daniel Dantas, condenado em Cayman, Londres e Nova York.

 

A advogada ressalta, ainda, haver um desvirtuamento das prisões cautelares. “Há casos de investigados que tiveram duas, três, quatro prisões decretadas pelo juiz, e todas elas caíram quando seu acordo de delação foi homologado”, observa.

 

“A vinculação entre delação e liberdade, além de absolutamente ilegal e imoral, representa evidente instrumento de pressão, que tira a voluntariedade das colaborações e as torna passíveis de contestação.”

 

Esse tipo de barganha é totalmente ilegal, emenda Serrano. “O acordo de delação prevê um benefício para quem colaborar com a Justiça ao término do processo, com a redução de sua pena final. No atual modelo, obtêm-se delações de quem está sofrendo restrição de liberdade, sob controle do Estado.”

 

A despeito da insurgência dos advogados, as autoridades não demonstram qualquer inclinação para rever os métodos da Lava Jato. Tampouco José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça, parece empenhado na busca de esclarecimentos sobre os vazamentos seletivos de informações sigilosas ou sobre os supostos grampos ilegais.

 

O Estado de Direito está sob ameaça, alerta Valim. “Não se pode ignorar as regras formais para satisfazer a sede de Justiça. Os fins não justificam os meios.”

 

http://www.cartacapital.com.br/revista/885/dedo-na-ferida

https://www.alainet.org/pt/articulo/175024
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