A política do ódio: o novo golpe de Eduardo Cunha contra a democracia

03/07/2015
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Foto: Carta Capital Br   Manifestação parlamentar
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Uma onda fascista começa a perigosamente ameaçar a nossa Democracia. Insuflada por programas de rádio e televisão destinados exclusivamente a angariar fundos para as empresas que os colocam no ar, grupos conservadores assumem abertamente posições retrógadas promovendo o marketing da violência. Esta situação fica agravada quando observamos que o preconceito está com trincheiras firmadas no Congresso Nacional, especialmente na Câmara dos Deputados, sob a liderança de Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

 

Já destacamos em oportunidades anteriores que a redução da idade de imputabilidade penal, ou da maioridade penal, como afirmam os meios de comunicação, é inconstitucional, pois fere cláusula pétrea da Norma Fundamental.

 

Aliás, não conseguimos observar nenhuma preocupação da imprensa conservadora com a explicação de conceitos jurídicos ou dos processos que levam à violência, o que permite a expansão das suas teses discriminatórias.

 

Como já advertimos anteriormente, a regra da imputabilidade penal está expressa no art. 228 da Constituição Federal, e mesmo estando fora do art. 5º, é uma garantia fundamental, destinada a proteger a juventude e a adolescência da criminalização. Portanto, conforme comando do art. 60, § 4º, é cláusula pétrea, e não pode ser abolida nem por Emenda Constitucional.

 

A Carta Constitucional de 1988 seguiu inspiração dos modernos sistemas alemão e português, e não pode ser submetida à mera leitura exegética do seu texto, como pretendem alguns profissionais do direito mais afoitos, pois não estamos mais na Idade Média, quando a Escola da Exegese dominava. Somente a interpretação sistemática é admitida por nosso ordenamento jurídico, amparada nos fundamentos e princípios edificantes do nosso “Estado Democrático de Direito”.

 

A palavra Democrático, que foi inserida pelo constituinte no texto da Norma Régia tem por objetivo levar o nosso país a um estágio mais avançado da proteção dos direitos e das garantias fundamentais do que o Estado de Direito burguês. Somos um “Estado Democrático de Direito”, e não um “Estado de Direito”, não por simples jogo de palavras, mas pela compreensão que o papel fundamental do Estado é o de proteger a pessoa humana, sua dignidade, direitos e garantias, além de permitir que todos tenham acesso a estes direitos.

 

É por isso que a nossa Constituição propõe a criminalização da tortura, do racismo, e de outras formas de violência que ofendem à dignidade da pessoa humana, além de vedar a pena de morte, o terrorismo e ouras formas injustificadas de agressão à pessoa. Assim como não permite o enjaulamento de pessoas dentro de prisões e penitenciárias sem o mínimo de condições sanitárias. Quem é condenado à pena de reclusão perde o seu direito à liberdade, mas nunca à dignidade.

 

Também não podemos falar em Estado Democrático de Direito elegendo alvos para a repressão e violência estatal, como pretendem alguns enviuvados da ditadura militar. As páginas mais vergonhosas da história humana foram pintadas com a eleição discriminatórias pelas falhas estruturais da sociedade e do estado. Assim foi com a inquisição contra os não católicos, cientistas e povos indígenas, assim como com o nazismo contra judeus, deficientes, homossexuais, ciganos e outras minorais. A condenação de grupos ou minorias é o primeiro passo para regimes totalitários e genocídios.

 

Genocídios que, por sinal, são realizados todos os dias nas grandes cidades por grupos de extermínio, forças repressoras do estado abusivas, ou pelo tráfico de drogas que alimenta a corrupção nas mesmas forças repressoras. As vítimas desse genocídio possuem sempre o mesmo perfil: jovens entre 16 e 25 anos, pobres, negros ou pardos. É uma violência sem sentido que passa em branco nas páginas de jornal ou é justificada nos famosos autos de resistência, e que representa 25% das vítimas de homicídio em todo o país. O percentual de jovens e adolescentes na prática de crimes violentos não chega a 1%, ou seja, não tem o menor impacto sobre os indicadores da violência urbana e, normalmente, são assistidos por adultos na conduta delituosa.

 

Querem jogar jovens em penitenciárias que não são dignas nem para adultos não é nenhuma demonstração de preocupação com a segurança da sociedade, mas sim um medo absurdo de uma rebelião social contra as classes dominantes. Qualquer estudo mais apurado vai verificar que estupro, lesão corporal grave e homicídio são crimes praticados essencialmente por adultos. Mais do que isto, os crimes sexuais são predominantemente praticados por brancos, entre 30 e 50 anos, normalmente estabelecidos economicamente. É criminologia básica, que nunca é lida por nossos parlamentares nem divulgada pelos meios de comunicação. Ao contrário, os grupos conservadores preferem impor o perfilhamento social sem nenhuma base científica, utilizando como argumento apenas o preconceito.

 

Outro aspecto importante é a definição do que é estupro, pois somente neste século tal violência deixou de ser considera no nosso Código Penal como crime contra os costumes e ingressou no campo dos crimes contra a dignidade sexual. Só que muitos dos crimes de estupro são praticados diariamente por adultos, casados, dentro de casa contra as esposas, filhos ou parentes, numa sociedade que é ainda predominantemente machista. Estas pessoas nunca são punidas pelo Estado, pois a Lei Maria da Penha é ainda tratada como tabu, é muitos religiosos fundamentalistas, como o próprio Presidente da Câmara, defendem a santidade do casamento antes da dignidade individual das mulheres que são vítimas de violência.

 

Nunca podemos esquecer que não faz muito tempo um Bispo da Bahia excomungou uma jovem e a sua mãe pelo aborto de um feto derivado de estrupo, enquanto o pai, estuprador e criminoso, ficou apenas sob a tutela das Leis terrenas. Aliás, tramita no Congresso o projeto da “bolsa-estupro”, onde um nobre parlamentar pretende pagar uma bolsa para cada mulher vítima de estupro que abdicar do seu direito de aborto.

 

Ou seja, o Projeto de Emenda Constitucional aprovado pela Câmara, em primeiro turno, e em nova violência contra o regimento interno é uma obra inquestionável de demagogia, alimentada por um rançoso revanchismo e por oportunismos de todos os tipos.

 

Nada justifica que toda a bancada do PSDB, partido que surgiu defendendo os direitos humanos na década de oitenta, tenha votado em peso na proposta de redução da idade de imputabilidade penal, senão puro revanchismo eleitoral e ânsia golpista. O retrocesso programático do PSDB, é evidente, e ficou escancarado com a campanha de baixíssimo nível protagonizada por Aécio Neves (PSDB-MG) em 2014.

 

Os números, para os apaixonados por estatísticas derrubam qualquer tese defensora da redução da idade penal. O Brasil é um dos países que responsabiliza criminalmente os seus jovens mais cedo. O que muda é a obrigatória segregação de jovens e adolescentes dos criminosos adultos. Segundo relatório de 2007 da UNICEF sobre o tema:

 

Diferentemente do que alguns jornais, revistas ou veículos de comunicação em geral tem divulgado, a idade de responsabilidade penal no Brasil não se encontra em desequilíbrio se comparada à maioria dos países do mundo. De uma lista de 54 países analisados, a maioria deles como discutido a seguir, adota a idade de responsabilidade penal absoluta aos 18 anos de idade, como é o caso brasileiro. No entanto, tem sido fonte de grande confusão conceitual o fato de que muitos países possuam uma legislação especifica de responsabilidade penal juvenil e que, portanto, acolham a expressão penal para designar a responsabilidade especial que incide sobre os adolescentes abaixo dos 18 anos. Neste caso, países como Alemanha, Espanha e França possuem idades de início da responsabilidade penal juvenil aos 14, 12 e 13 anos. No caso brasileiro tem início a mesma responsabilidade aos 12 anos de idade”. [SIC]

 

Ademais, a nossa Constituição veda o retrocesso em relação a direitos e garantias fundamentais, tornando ainda mais gritante a inconstitucionalidade do Projeto aprovado por Eduardo Cunha e seus asseclas. Segundo o brilhante Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, um dos mais respeitados constitucionalistas do país,

 

“(…) o princípio da proibição de retrocesso decorre justamente do princípio do Estado Democrático e Social de Direito; do princípio da dignidade da pessoa humana; do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais; do princípio da proteção da confiança e da própria noção do mínimo essencial. ”

 

A dignidade da pessoa humana, art. 1.º, III da Constituição Federal é a regra, e deveria ser observada em todas as decisões do Congresso Nacional, e não apenas em situações onde impera a conveniência política dos grupos e classes dominantes.

 

Ora, se a proposta de redução da idade de imputabilidade penal não possui nenhuma base científica ou estatística que lhe ofereça sustentação, e se todo o nosso ordenamento jurídico caminha em sentido contrário às aspirações dos parlamentares conservadores, por que somos obrigados a conviver com ações como essas que incluem, entra outras medidas, o atropelo do Regimento Interno da Câmara e do Congresso.

 

Será que o extrato mais reacionário do Parlamento está realmente preocupado com a segurança das pessoas? Será que a bancada da bala, financiada pela indústria armas, quer reduzir o número de homicídios? Será que alguns dos votantes a favor da redução da idade de imputabilidade penal tem alguma preocupação com educação e juventude? Será que o lobby da privatização dos presídios está ausente de qualquer discussão sobre o tema? Será que é possível acreditar que uma pessoa com consciência religiosa consiga defender a criminalização do aborto para proteger nascituros e a pena de morte ao mesmo tempo? É evidente que não!

 

As ações de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e seus seguidores não visam apenas a utilização de golpes regimentais para aprovação de projetos populistas e ofensivos à dignidade dos cidadãos. Por trás destas condutas existe a formação de uma frente perigosa, que coloca em risco até mesmo o Estado de Direito puro. Quem derruba uma cláusula pétrea não terá medo de retroceder e desconstituir o sistema de partilha no “pré-sal”. Quem atropela a Constituição impunemente não terá medo de dar um golpe de estado.

 

É por este motivo que chegou a hora dos defensores da democracia assumirem a sua indignação e se mobilizarem de vez contra essa onda golpista! Caso contrário, assim como na poesia da Bertold Brecht, poderemos descobrir que é tarde demais…

 

Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.

https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/2015/07/03/a-politica-do-odio-o-novo-golpe-de-eduardo-cunha-contra-a-democracia/

https://www.alainet.org/pt/articulo/170862
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