Série: Bancos contra povos: os bastidores de um jogo manipulado»(5ª parte)

Bancos, gigantes de pés de barro

13/02/2013
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«Para facilitar o financiamento, as garantias e a instantaneidade de todo o comércio, o volume das transações financeiras devia crescer ainda mais depressa do que o próprio comércio. É preciso inventar formas financeiras completamente novas, desenvolver derivados de crédito, títulos de garantia, compras de petróleo a prazo e outros produtos que garantam que o sistema de comércio mundial funcione com muito mais eficácia. Em muitos aspectos, a aparente estabilidade do nosso comércio e do nosso sistema financeiro mundiais confirma o princípio simples e que se verifica na história, enunciado por Adam Smith, em 1776: o comércio livre levado a cabo por indivíduos, trabalhando de acordo com o seu próprio interesse, proporciona uma economia próspera e estável». Alan Greenspan[1]
 
A inovação financeira apresentada por Alan Greenspan como uma panaceia tem-se revelado um grande flop, causando danos económicos e sociais muito graves, para não falar dos ataques aos direitos democráticos dos cidadãos e das cidadãs, que a ditadura dos mercados e os éditos da Troika na Europa provocam. Os tratados europeus e a política concreta de governos sucessivos estão a destruir gradualmente os direitos democráticos conquistados pelos povos: o poder legislativo está sujeito ao executivo, o Parlamento Europeu é a tanga da Comissão Europeia, as escolhas dos eleitores são cada vez menos respeitadas... Os governantes escudam-se atrás de tratados para recuperarem o refrão de Margaret Thatcher: não há alternativa (TINA, There Is No Alternative) à austeridade e ao pagamento da dívida. Enquanto isso, tentam ao máximo, por um lado, minar os direitos económicos e sociais conquistados no século XX (ver Parte 3 desta série) e, por outro lado, evitar que uma crise bancária ainda maior aconteça. No entanto, não tomam medidas vinculativas e sérias que imponham aos bancos e às instituições financeiras uma nova disciplina. Os bancos, de facto, ainda não sanearam as suas contas desde 2007-2008. Pior ainda, continuam muito ativos a desenvolver novas bolhas e a fabricar novos produtos estruturados. Nesta parte[2], são passadas em revista as acrobacias feitas pelos bancos para se financiarem, a sua dependência quase total face às ajudas públicas, o aumento das bolhas especulativas, as inovações financeiras especulativas, os efeitos desastrosos produzidos pelo sistema bancário atual em termos de crise alimentar e os novos riscos que os povos correm devido ao modo como os bancos funcionam[3].
 
Os problemas do financiamento a médio e longo prazo.
 
Observemos primeiro do lado do financiamento (ou seja, do lado do passivo dos bancos). Os bancos enfrentam grandes problemas. Os investidores institucionais (fundos de pensões, seguradoras, bancos, fundos soberanos, ...) não confiam neles, têm relutância em comprar títulos (covered bonds), que os bancos emitem para se financiarem de forma estável a longo prazo. Mesmo que alguns bancos, como o BNP Paribas e a Société Générale (os dois maiores bancos franceses) ou ainda o BBVA (o segundo banco espanhol), consigam vender obrigações, os montantes totais emitidos, em 2012, parecem inferiores aos dos anos anteriores. De acordo com o Financial Times, 2012 teria sido mesmo o pior ano desde 2002[4].
 
Então, como não obtêm financiamento suficiente, a longo prazo, nos mercados, dependem de forma vital do crédito a três anos concedido pelo BCE, no valor de 1 bilião [br: trilhão] de euros, a uma taxa de 1%[5], e, mais genericamente, da liquidez posta à sua disposição pelos poderes públicos dos países mais industrializados, por intermédio dos bancos centrais (a começar pela Fed, BCE, Banco de Inglaterra, Banco Nacional da Suíça e Banco Central do Japão).
 
Os problemas de financiamento a curto prazo
 
Grande parte do seu financiamento (para além dos depósitos de clientes, que têm aumentado pouco devido à crise) é feito a curto prazo. Segundo o relatório Liikanen, os grandes bancos europeus precisam de 7 biliões [br: trilhões] de financiamento overnight[6].[7] O montante das dívidas bancárias a muito curto prazo aumentou significativamente, entre 1998 e 2007, passando de 1,5 para 6 biliões [br: trilhões]. Entre 2010 e 2012, manteve-se nos 7 biliões [br: trilhões]! Onde encontram os bancos esse financiamento a curto prazo? Já não o encontram, ou encontram-no pouco, no mercado interbancário, porque os bancos desconfiam muito uns dos outros para emprestarem dinheiro entre si. Dependem, portanto, dos money market funds (que obtêm 2,7 biliões [br: trilhões] de dólares no financiamento overnight), cuja disponibilidade varia de acordo com a evolução da crise na Europa[8]. Os money market funds (MMF) fecharam a torneira desde Junho de 2011 e reabriram-na quando o BCE emprestou 1 bilião [br: trilhão][9]. A todo o momento podem voltar a fechar a torneira ou diminuir muito o fluxo. Também aqui, os bancos centrais são a fonte de financiamento mais segura. O BCE empresta agora dinheiro em grandes quantidades a uma taxa de 0,75% (a taxa em vigor desde Maio de 2012).
 
A conclusão é clara: sem o empréstimo de um bilião [br: trilhão], a três anos, ao qual acrescem os empréstimos diários do BCE e dos bancos centrais dos Estados-membros do Eurossistema (incluindo o Banco de Inglaterra e o Banco Nacional da Suíça), muitos dos grandes bancos europeus estariam ameaçados de asfixia e falência. É a prova suplementar de que os bancos não sanearam os seus balanços. Devem financiar-se massivamente a curto prazo, porque, em termos de ativos, possuem produtos com maturidades longas cujo valor é completamente aleatório. Em muitos casos, o valor dos ativos inscrito no balanço não irá concretizar-se na altura do vencimento dos contratos e os bancos correm o risco de obterem perdas que fazem desaparecer os fundos próprios.
 
Sem financiamento na Bolsa
 
Em termos de realização de capital na Bolsa, a situação está também bloqueada. Os preços das ações dos bancos caíram, em média, 20% desde 2007[10] (ver tabelas em anexo). Os investidores institucionais (seguradoras, fundos de pensão, fundos de investimento, bancos, ...) hesitam muito em comprar ações de empresas que estão em dificuldades. É também uma prova adicional da distância abissal que existe entre o funcionamento teórico do capitalismo, de acordo com os seus promotores, e a realidade. Em teoria, a Bolsa deve permitir, a longo prazo, a realização (as ações são consideradas investimentos a longo prazo, que devem ser conservados, pelo menos, durante oito anos) de capital pelas empresas aí cotadas: isso deixou de funcionar porque a bolsa já não é, há muito tempo, o lugar onde as empresas se financiam, tornando-se num espaço de pura especulação. É por isso que os bancos precisam de recapitalizações, financiadas pelos poderes públicos.
 
No entanto, em teoria, outra função da Bolsa é mostrar, através da evolução do preço das ações, o valor real das empresas. Desse ponto de vista, a queda média de 80% do valor bolsista dos bancos constitui um diagnóstico muito incómodo para patrões e propagandistas do sistema capitalista.
 
De acrescentar que os bancos utilizam parte da liquidez disponibilizada pelos bancos centrais para recomprarem as suas próprias ações. Essa medida tem dois objetivos: tentar impedir a continuação da queda do preço, por um lado, e remunerar os acionistas, por outro lado[11].
 
Bancos financiados pelo dinheiro da droga
 
Outra fonte de financiamento dos bancos é o dinheiro proveniente da droga. Em 26 de janeiro de 2009, António Maria Costa, diretor do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC), disse à revista on-line austríaca Profil.at[12] que alguns créditos interbancários tinham sido recentemente financiados «por dinheiro proveniente de tráfico de droga e de outras atividades ilegais». Ultimamente, em dezembro de 2012, o HSBC (Reino Unido, o segundo maior banco do mundo em termos de ativos) aceitou pagar uma multa recorde de 1,92 mil milhões de dólares[13] às autoridades americanas, para pôr fim a processos em que era acusado, nomeadamente, de lavagem de dinheiro que lhe era confiado pelos cartéis de droga mexicanos[14].
 
Bombas ao retardador nos ativos dos bancos europeus e norte-americanos
 
Como mencionámos acima, os bancos possuem, em termos de ativos, grandes quantidades de produtos financeiros, que são autênticas bombas ao retardador com o mecanismo já ativado.
 
Na Europa, 70% dos produtos estruturados, suportados por créditos hipotecários comerciais (CMBS), que atingiram a maturidade em 2012, não são pagos[15]! São produtos fabricados entre 2004 e 2006, pouco antes do rebentamento da crise do subprime, que vencem em 2012-2014. Segundo a agência de notação Fitch, apenas 24 dos 122 CMBS que atingiram a maturidade durante os primeiros onze meses de 2012 foram pagos. Em 2013-2014, os contratos com vencimento atingem os 31,9 mil milhões de euros. Em 2012, o JP Morgan, o primeiro banco dos Estados Unidos, perdeu 5,8 mil milhões de dólares no mercado europeu através do seu escritório em Londres e de iniciativas infelizes de um dos seus chefes com a alcunha de a Baleia[16]. Isso não impediu que o Deutsche Bank e o Royal Bank of Scotland emitissem novos CMBS no mercado europeu! Por que razão os bancos apostam nessas operações? Porque o elevado risco que correm permite obter um rendimento nitidamente superior ao de outros títulos ou de outros produtos. Convém acompanhar os próximos capítulos!
 
Há ainda nos balanços dos bancos, na Europa e nos Estados Unidos, vários biliões [br: trilhões] de dólares em produtos estruturados ligados ao mercado imobiliário (MBS, mortgage backed securities), incluindo MBS subprime ou outras categorias de ABS (asset backed securities). Os bancos que tentaram desfazer-se desses produtos conseguiam-no apenas, na generalidade dos casos, aceitando uma perda significativa. Em finais de dezembro de 2011, os MBS eram vendidos a 43% do seu valor, mas havia muito poucos compradores[17]. Os bancos são sempre muito discretos quanto ao volume exato de MBS inscrito nos seus balanços e ainda são mais discretos em relação a produtos registados fora de balanço.
 
Os CLO (produto estruturado inventado na fase preparatória da crise do subprime) são preocupantes porque atraem bancos europeus muito agressivos, como o Royal Bank of Scotland, na busca de rendimentos elevados associados à tomada de risco. CLO significa collateral loans obligations. Os CLO foram vendidos para arrecadar dinheiro de investidores que pretendiam comprar empresas endividando-se e apostando ao máximo na alavancagem (o que se designa LBO). Os CLO atingem a maturidade e aqueles que os possuem perguntam como será possível pagá-los. O mercado dos CLO na Europa está totalmente anémico mas renasceu nos Estados Unidos, onde foram feitas vendas, em 2012, no valor de 39 mil milhões de dólares. Os bancos europeus continuam a comprar, porque tendo em conta o risco, os rendimentos obtidos são elevados[18]. Cuidado!
 
Novas bombas em preparação
 
O JP Morgan e outros grandes bancos pretendem fabricar, no âmbito do crédito ligado ao comércio internacional, produtos estruturados comparáveis às CDO do crédito hipotecário subprime. Recorde-se que as Collateral Debt Obligations (CDO) foram fabricadas a partir de uma mistura de créditos hipotecários de qualidade diferente. Os bancos que fabricavam CDO tinham por objetivo desfazerem-se de créditos hipotecários, titularizando-os (ou seja, transformando um crédito num título fácil de revender)[19]. O JP Morgan pretende fazer a mesma coisa, substituindo os créditos hipotecários por créditos à exportação. Foi o JP Morgan que criou, em 1994, o antepassado da CDO[20]. O mercado de créditos à exportação representa 10 biliões [br: 10 trilhões] de dólares por ano. O JP Morgan quer convencer os bancos que concedem crédito ligado ao comércio internacional a transformarem esse crédito em produtos estruturados com o objetivo de os revenderem sob a forma de CDO. O objetivo oficial é reduzir o peso dos ativos, diminuindo o efeito de alavanca e indo ao encontro das novas exigências das autoridades em termos de aumento de fundos próprios (ver a parte 6 e os acordo de Basileia III). Na realidade, para o JP Morgan e para os outros grandes bancos que querem inovar, trata-se de gerar apetite por um produto inovador num mercado importante e de obter lucro graças a ele[21]. Mais uma vez, se a estratégia do JP Morgan funcionar bem, a probabilidade de causar danos é elevada, porque existe o risco de se produzir uma nova bolha.
 
A corrida desenfreada atrás de resultados provoca perdas
 
Alguns exemplos mostram a dimensão dos riscos que os bancos continuam a correr. Há, claro, a perda registada pela Société Générale, em França, (4,9 mil milhões de euros), que                                                                            seguiu os avatares de um dos seus traders, Jerome Kerviel. O caso remonta a janeiro de 2008 e poder-se-ia crer que os bancos aprenderam a lição. Nem pouco mais ou menos! Em setembro de 2011, o banco suíço UBS anunciou que registava um prejuízo de 2,3 mil milhões de dólares, devido a transações não autorizadas, realizadas por Kweku Adoboli, um administrador da equipa Global Synthetic Equities Trading, em Londres. Ainda em Londres, como referido mais acima, a Baleia do JP Morgan fez perder 5,8 mil milhões de dólares ao «seu» banco. E esses negócios são apenas a ponta do iceberg.
 
Bolha especulativa forma-se no setor das obrigações de empresas
 
Muitos observadores dos mercados financeiros e um grande número de gestores de fundos consideram que uma bolha especulativa está a desenvolver-se no setor dos corporate bonds, as obrigações que as grandes empresas emitem para se financiarem. Trata-se de uma bolha no setor da dívida das grandes empresas privadas. É um mercado de 9,2 biliões [br: trilhões] de dólares. Porquê uma bolha? Os rendimentos que os bancos e outros investidores institucionais obtêm através de títulos do Tesouro dos Estados Unidos e de títulos soberanos das principais economias da UE são historicamente muito baixos. De repente, os investidores institucionais procuram um setor onde os rendimentos sejam mais elevados e aparentemente sem risco: as obrigações emitidas por empresas não financeiras ofereciam, em 2011, um rendimento de cerca de 4,5%, o que as tornava muito atraentes. Razão adicional, os bancos preferem comprar obrigações do que concederem uma linha de crédito, porque podem revender os títulos no mercado secundário[22]. Essa corrida aos títulos, em 2012, provocou uma forte queda nos rendimentos, que passaram de 4,5% ,no início de 2012, para 2,7%, em setembro do mesmo ano.
 
Uma grande empresa como a Nestlé pode emitir obrigações a quatro anos num montante de  500 milhões de euros, prometendo apenas 0,75% de juro anual. Esse é um caso excecional, mas indica que há uma corrida às obrigações de empresas. A procura de títulos é tal que, de acordo com o JP Morgan, o rendimento de títulos de alto risco (junk bonds) entrou em queda livre no verão de 2012, passando de 6,9% para 5,4%. Se a tendência continuar, os investidores institucionais correm o risco de terem de sair do mercado para encontrarem um setor onde obtenham melhores rendimentos[23].
 
A sede de rendimento é tal que as empresas são capazes de emitir títulos PIK (Pay in Kind), que tiveram o seu auge antes de 2006-2007 e que deixarem de ter compradores até 2012. Trata-se de um título em que o pagamento de juros acontece apenas no momento de reembolsar o capital. Obviamente, o rendimento prometido é elevado, mas é grande o risco de a empresa que recebe o capital não ser capaz de o reembolsar, nem de pagar juros no vencimento do contrato! Na verdade, há que refletir, enquanto credor, se é prudente entregar  somas de dinheiro a uma empresa que não é capaz de pagar juros antes do final do contrato[24]. De novo a sede de rendimento e a disponibilidade de liquidez (proporcionada pelos empréstimos concedidos pelos bancos centrais) geram euforia em torno desse tipo de produtos de alto risco.
 
Penúria de colateral[25]
 
Até 2007-2008, os mercados financeiros desenvolveram-se num clima de exuberância. Os banqueiros e outros investidores institucionais faziam empréstimos entre si e compravam produtos financeiros estruturados sem verificarem se o vendedor ou o comprador dispunha de ativos suficientes para assumir o seu ato e cumprir a sua parte no contrato, quando este atingia o termo. Por exemplo, os banqueiros pagaram prémios de seguros ao Lehman Brothers e à AIG para se protegerem do risco de não pagamento, sem verificarem previamente se o Lehman ou a AIG teriam possibilidade de os indemnizar no caso de o risco coberto ocorrer.
 
Na maioria das transações, o tomador do empréstimo dá como garantia um ativo, que se designa colateral. O que acontecia sistematicamente, e ainda acontece, era que o mesmo colateral servia de garantia em várias transações. A pede emprestado a B e usa como garantia um colateral. B pede emprestado a C e usa como garantia o mesmo colateral e assim sucessivamente. Se a cadeia se quebrar nalgum sítio, arriscamo-nos a arranjar um problema para  encontrar o colateral. Como se vivia uma fase de plena euforia e não era preciso provar que o colateral estava, de facto, disponível, os negócios prosseguiam, as usual. A partir de 2008, as coisas mudaram de figura e passou a acontecer, cada vez mais, que a parte que exigia o colateral queria ter a certeza de que esse colateral estaria mesmo disponível em caso de necessidade, que o seu valor seria autêntico e que seria de boa qualidade. Os colaterais circulam cada vez menos e os menos confiáveis são recusados[26].
 
De facto, é razoável não aceitar como colateral um activo tóxico do tipo CDO subprime. A situação fez com que se começasse a verificar uma escassez de colaterais. A sociedade financeira Dexia, em 2011 e em 2012, registou uma insuficiência de colaterais de qualidade, o que a impediu de encontrar o financiamento que precisava. Em 2012, pediu emprestado ao BCE quase 35 mil milhões de euros, a 1%, no âmbito do LTRO. Os enormes empréstimos do BCE não foram suficientes para o Dexia, que voltou a apelar aos Estados belga e francês, em outubro-novembro de 2012, com o objetivo de obter 5 mil milhões de euros de recapitalização.
 
De acordo com o Financial Times, os bancos espanhóis tornaram-se especialistas na criação de colateral. Fabricam produtos estruturados ABS a partir de créditos hipotecários duvidosos ou outros créditos sem qualidade, depois impingem-nos como colateral ao BCE, com o objetivo de obter liquidez[27]. O BCE aceita, assim, colaterais de baixa qualidade, que foram feitos especificamente para si. É mais uma prova da subserviência do BCE perante os banqueiros.
 
A propósito de colateral, convém também denunciar as mentiras sobre os títulos soberanos, que seriam, por princípio, uma fonte de problemas para os bancos. Os títulos soberanos oferecem garantias muito mais seguras do que a maior parte dos títulos privados. Além disso, os bancos não hesitam em utilizá-los como colateral de primeira qualidade para pedirem emprestado ao BCE.
 
As dívidas soberanas
 
Voltemos, então, às dívidas soberanas. Até ao momento, ainda não provocaram um desastre bancário. No entanto, constata-se que em países como Espanha e Itália os bancos compram cada vez mais títulos de dívida emitidos pelos governos. Existem duas boas razões para os bancos procederem dessa maneira: por um lado, possuem muita liquidez que lhes é garantida pelo banco central a taxas de juros baixas (entre 0,75 e 1%); por outro lado, os títulos dos seus países são remuneradores (entre 4 e 7%). Mas a política de austeridade é tão brutal que não é certo que os governos espanhol e italiano mantenham a capacidade de reembolsar. O problema não é imediato, mas não se podem excluir dificuldades no futuro[28].
 
As dívidas soberanas não são o calcanhar de Aquiles dos bancos privados
 
Os principais media alimentam permanentemente o discurso de banqueiros e governantes sobre o perigo que representam as dívidas soberanas. Para esclarecer o assunto e devolver o argumento da dívida soberana aos detentores do poder, que impõem políticas antissociais, é essencial avançar com contra-argumentos. É por esse motivo que, nesta série, são fornecidos dados sobre o assunto. Num relatório recente publicado pelo FMI[29], é divulgado um gráfico sobre a parcela que representa a dívida soberana nos ativos dos bancos privados em seis países chave. De acordo com esse gráfico, as dívidas do governo representam apenas 2% dos ativos dos bancos britânicos[30], 5% dos ativos dos bancos franceses, 6% dos ativos dos bancos dos Estados Unidos e da Alemanha, 12% dos ativos dos bancos italianos. O japão é o único país, entre os seis mencionados, em que as dívidas do governo representam uma parcela importante dos ativos bancários, ou seja, 25%. Não é todos os dias que o FMI leva a água ao nosso moinho. A conclusão que tiramos, e que o FMI também tira, é que se torna muito fácil anular dívidas públicas ilegítimas.
 
O banco sombra ou o shadow banking
 
Uma das principais fontes da fragilidade bancária consiste nas atividades fora de balanço que, nalguns casos, podem ultrapassar largamente o volume oficial do balanço declarado. Os grandes bancos continuam a criar e a utilizar empresas ad hoc (special purpose vehicles, MMF), que não são consideradas bancos e não estão sujeitas à regulamentação bancária[31] (já de si muito permissiva). Até agora, essas empresas específicas podem operar sem qualquer controlo ou, no caso dos MMF, com muito pouco controlo, concedendo empréstimos a bancos ou fazendo todo o tipo de especulação com uma infinidade de derivados ou ativos físicos (matérias-primas, produtos agrícolas) nos mercados a prazo ou no mercado de balcão (OTC) também não regulamentado. A opacidade é total ou quase. Os bancos não são obrigados a declararem nas suas contas as atividades de empresas não-bancárias que criaram. As mais perigosas são as atividades conduzidas pelos Special Purpose Vehicles, porque são as mais dissimuladas. Se as perdas de uma dessas empresas provocarem a falência, o banco que a criou é forçado pelos credores a inscrever finalmente essa perda nas suas contas, o que pode causar o desaparecimento do seu capital e a sua própria falência (ou ainda a sua aquisição por outro banco ou pelos poderes públicos, ou ainda o resgate pelos poderes públicos). Foi o que aconteceu com o Lehman Brothers, Merrill Lynch, Bear Stearns, Royal Bank of Scotland, Dexia, Fortis e vários outros bancos desde 2008.
 
A bolha especulativa e as commodities[32]
 
Através das atividades de trading, os bancos são os principais especuladores no mercado de balcão e a prazo de matérias-primas e de produtos agrícolas, porque possuem muito mais meios financeiros do que os outros protagonistas. Visitem o site Commodity Business Awards (http://www.commoditybusinessawards.com/nominate.html) e encontrarão uma lista de bancos e de corretoras que assumem um papel de primeiro plano no mercado das commodities (quer seja no mercado onde se compram e vendem fisicamente ou no mercado de derivados, que tem por subjacente as commodities). Entre os bancos, encontramos o BNP Paribas, Morgan Stanley, Credit Suisse, Deutsche Bank, Société Générale.
 
Além disso, os bancos tentam dotar-se de instrumentos para controlarem diretamente os  stocks de matérias-primas. É o caso do Credit Suisse, que está associado à Glencore[33], a maior corretora do mundo em matéria de commodities. Por seu lado, o JP Morgan pretende adquirir um stock de 61.800 toneladas de cobre para poder influenciar os preços[34].
 
Estes são os atores de primeiro plano no desenvolvimento da bolha especulativa que se formou no mercado de commodities[35]. Quando a bolha estourar, o efeito boomerang sobre a saúde dos bancos causará mais danos. Para não mencionar, e isso é ainda mais grave, as consequências que terá sobre as populações do sul exportadoras de matérias-primas.
 
De regresso à influência da especulação no disparar dos preços dos alimentos e do petróleo em 2007-2008
 
A especulação nos principais mercados dos Estados Unidos, onde se negoceiam os preços mundiais de bens primários (produtos agrícolas e matérias-primas), influenciou, de modo crucial, o aumento brutal dos preços dos alimentos em 2007-2008[36]. Essa subida de preços levou a um forte aumento do número de pessoas que passam fome, que ultrapassou os 140 milhões num ano, tendo o total ultrapassado os mil milhões (um indivíduo em cada sete). Os principais atores dessa especulação não são franco-atiradores, são investidores institucionais: bancos[37], fundos de pensões, fundos de investimento, seguradoras. Os hedge funds e os fundos soberanos[38] desempenharam também o seu papel, mesmo sendo o seu peso muito inferior ao peso dos investidores institucionais[39].
 
Michael W. Masters, que dirigiu durante 12 anos um hedge fund em Wall Street, confirmou isso mesmo em declarações prestadas perante uma comissão do Congresso, em Washington, a 20 de maio de 2008[40]. Perante essa comissão, encarregue de investigar a alegada influência da especulação sobre o aumento de preços dos produtos de base, declarou: «colocaram a questão: será que os investidores institucionais contribuem para inflacionar os preços dos alimentos e da energia? A minha resposta inequívoca é: SIM»[41]. Durante esse depoimento oficial, Michael W. Masters explicou que o aumento dos preços dos alimentos e da energia não se deve à falta de oferta, mas a um brutal aumento da procura por parte de novos atores no mercado a prazo de bens primários (commodities), onde se compram «futuros». No mercado de «futuros» (ou contratos a prazo), os intervenientes compram a produção que há-de vir: a colheita de trigo prevista para daqui a um ano ou dois, o petróleo que será produzido daqui a três ou seis meses. Em tempos «normais», os principais intervenientes desses mercados são, por exemplo, as companhias aéreas que compram petróleo de acordo com as suas necessidades ou as empresas alimentares que compram cereais. Michael W. Masters mostra que, nos Estados Unidos, o capital atribuído pelos investidores institucionais ao segmento index trading de bens primários nos mercados a prazo passou de 13 mil milhões, em finais de 2003, para 260 mil milhões, em março de 2008[42]. O preço dos 25 bens primários cotados nesses mercados subiu 183% no mesmo período. Masters explica que se trata de um mercado pequeno[43]. Basta que investidores institucionais, como os fundos de pensões e os bancos, afetem 2% dos seus ativos para virarem a situação. O preço dos bens primários, no mercado a prazo, repercute-se de imediato sobre o preço atual desses bens. Isso mostra que os investidores institucionais compraram quantidades enormes de milho e de trigo, em 2007-2008, o que provocou um aumento de preços.
 
De referir que, em 2008, o órgão regulador de mercados a prazo, a Commodity Futures Trading Commission (CFTC), fez saber que os investidores institucionais não podiam ser considerados especuladores. A CFTC entende que os investidores institucionais são participantes comerciais em mercados (commercial market participants). Isso permitiu-lhe afirmar que a especulação não influencia, de modo decisivo, o aumento de preços. Severas críticas são feitas à CFTC por Michael W. Masters, mas, sobretudo, por Michael Greenberger, professor de direito na Universidade de Maryland, que depôs perante a Comissão do Senado, a 3 de junho de 2008. Michael Greenberger, que foi diretor de um departamento da CFTC entre 1997 e 1999, criticou o laxismo dos dirigentes da CFTC, que preferem enterrar a cabeça na areia perante a manipulação dos preços da energia levada a cabo pelos investidores institucionais. Ele cita uma série de declarações de dirigentes da CFTC dignas de figurarem numa antologia da hipocrisia e do cretinismo. Michael Greenberger estima que 80 a 90% das transações nas bolsas de valores dos Estados Unidos, no setor de energia, são especulativas[44].
 
A 22 de setembro de 2008, em plena turbulência financeira nos Estados Unidos, quando o presidente Bush anunciava um plano para resgatar bancos de 700 mil milhões de dólares, o preço da soja deu um salto especulativo de 61,5%!
 
Jacques Berthelot mostra também a influência crucial exercida pela especulação dos bancos sobre a subida dos preços[45]. Ele dá o exemplo do banco belga KBC, que desencadeou uma campanha publicitária para vender um novo produto comercial: um investimento de aforradores em seis matérias-primas agrícolas. Para convencer os clientes a investirem nos fundos de investimento «KBC-Life MI Security Food Prices 3» a publicidade do KBC afirmava: «Aproveite o aumento de preços dos produtos alimentares!». Essa publicidade apresentava como «oportunidade» a «escassez de água e de terras agrícolas exploráveis» tendo como consequência «a falta de produtos alimentares e a subida de preços dos alimentos»[46].
 
Enquanto isso, do lado da justiça americana, é dada razão aos especuladores. É o que denuncia Paul Jorion num artigo de opinião publicado no Le Monde. Ele põe em causa a decisão de um tribunal de Washington que considerou inválidas, em 29 de setembro de 2012, as medidas tomadas pela CFTC, «que tinham como objetivo o plafonamento do número de posições que um interveniente pode assumir no mercado a prazo de matérias-primas, para que não possa por si só desequilibrar esse mercado»[47].
 
A especulação em torno da moeda
 
Os bancos são também os principais atores no mercado de divisas, provocando a instabilidade permanente das taxas de câmbio. Cerca de 98% do mercado de divisas é de tipo especulativo. Apenas 2% das transações diárias em divisas implica investimento, comércio de bens e serviços relacionado com a economia real, remessas de migrantes, créditos ou reembolsos de dívida... O volume diário de transações no mercado de divisas oscila entre 3 e 4 biliões [br: trilhões] de dólares! Os bancos também apostam forte em derivados cambiais que podem gerar perdas consideráveis, para além dos danos que causam à sociedade ao provocarem a  instabilidade da moeda.
 
Há mais de 30 anos, James Tobin, antigo conselheiro de John F. Kennedy, propunha colocar um grão de areia na engrenagem da especulação internacional. Apesar dos belos discursos de alguns chefes de Estado, o flagelo da especulação em torno da moeda agravava-se. O lobby dos banqueiros e de outros investidores institucionais impediu que o grão de areia viesse perturbar a atividade destinada a gerar lucro. A decisão tomada em janeiro de 2013 por uma dúzia de governos da zona euro no sentido de impor uma taxa de uma milésima sobre as transações financeiras é totalmente insuficiente.
 
A negociação (trading) de alta frequência
 
A negociação de alta frequência emite ordens de mercado em 0,1 milissegundos (ou seja, um décimo de milésimo de segundo!). O projecto de «Lei de regulação e de separação das atividades bancárias», apresentado em 19 dezembro de 2012, na Assembleia Nacional francesa, por Pierre Moscovici, ministro da Economia e Finanças, define de uma maneira interessante a negociação de alta frequência: «a negociação de alta frequência é uma atividade de mercado que é delegada em computadores, controlados por algoritmos informáticos, que combinam a extração de informação do mercado, a sua análise e a transmissão de ordens a uma frequência sempre maior. Podem-se enviar milhares de pedidos por segundo às plataformas de câmbio, contribuindo ocasionalmente para a sua saturação. Os riscos são altos em caso de erro de codificação, causando uma movimentação financeira de dimensão meteórica (a origem da quase falência da Knight Capital Group, em agosto de 2012, por exemplo). Em 2011, a negociação de alta frequência representava mais de 60% das ordens dadas no mercado de ações da Bolsa de Paris e cerca de 33% das ordens dava, de facto, origem a transações»[48].
 
A negociação de alta frequência está claramente relacionada com abordagens especulativas: manipular os mercados financeiros para influenciar os preços e obter lucro. As principais técnicas de manipulação são elencadas pelos especialistas. O quote stuffing consiste em inundar a cotação de ações com ordens de negociação completamente inúteis, forçando a concorrência a analisar esses milhares de pedidos. O objetivo é atrasar os concorrentes, ludibriando-os. Essas ordens são ignoradas pelo sistema que as emite e não serão nunca executadas, mesmo estando em causa as melhores oportunidades de compra e venda. Isso pode trazer vantagens porque cada milissegundo conta[49]. Se se pretende vender pacotes de ações ao preço mais elevado possível, os traders de alta frequência podem usar a técnica do layering. Trata-se de dar uma série de ordens no mercado de ações, até um determinado patamar, e, dessa forma, criar camadas (layers) de ordens. Uma vez esse patamar atingido, a estratégia é vender em massa e ao mesmo tempo cancelar todas as restantes ordens de compra que tinham sido dadas. O layering baseia-se na esperança de que outros intervenientes venham encher a caderneta com ordens de compra, preenchendo o espaço vazio, e depois surpreendê-los, invertendo a tendência[50].
 
A 6 maio de 2010, a Bolsa de Wall Street sofreu um flash crash[51] tipicamente provocado pela negociação de alta frequência, incluindo nomeadamente uma operação de quote stuffing. Nesse dia, o Dow Jones perdeu cerca de 998,52 pontos (antes de recuperar 600 pontos) entre as 14h42 e as 14h52. Deu-se uma queda, sem precedentes na história, de 9,2%, no espaço de 10 minutos. Esse incidente trouxe à luz do dia as consequências da negociação de alta frequência, que representa grosso modo cerca dois terços das transações bolsistas de Wall Street.
 
Mais acidentes desse tipo irão ocorrer certamente no futuro. Os grandes bancos, que recorrem ativamente à negociação de alta frequência, opõem-se à sua proibição ou ao seu controlo estrito, sob o pretexto de manterem o maior fluxo possível nos mercados financeiros.
 
O trading por conta própria
 
A atividade de trading por conta própria dos bancos, denominada proprietary trading no jargão financeiro anglo-saxónico, é fundamental para estes. Proporciona-lhes grande parte dos rendimentos e benefícios, mas comporta enormes riscos. Essa atividade de trading consiste em utilizar os recursos do banco (fundos próprios, depósitos de clientes, empréstimos) para tomar posição (compra ou venda) nos diversos mercados financeiros: acções, taxas de juros, divisas, mercado de derivados, futuros ou opções sobre esses instrumentos, mercados a prazo de matérias-primas e produtos agrícolas (incluindo alimentos), mercado imobiliário. O trading é claramente uma atividade especulativa, que consiste em aproveitar os movimentos de preços a curto prazo, que são gerados, em grande parte, pelo desempenho dos bancos. Exemplo dessas atividades especulativas é a perda de 4,9 mil milhões de euros registada pela Société Générale, em 2008, provocada pelo desempenho de um dos seus traders, Jerome Kerviel, que tinha tomado posições de aproximadamente 50 mil milhões de euros. No caso conturbado do JP Morgan, a Baleia de Londres, responsável pelo departamento de proprietary trading, tinha comprometido fundos do banco no valor de 100 mil milhões de dólares. Os montantes dos bancos em jogo no proprietary trading são de tal ordem, que as perdas que podem gerar são mesmo suscetíveis de ameaçar a sua sobrevivência.
 
O short-selling, mais uma prática especulativa
 
O short-selling (ou venda a descoberto) consiste em vender um título sem o possuir no momento de venda, mas com a intenção de o recomprar mais tarde, antes de o entregar ao comprador. Para o Banco de França: «Essa prática pode dividir-se em duas categorias:
 
• O covered short-selling: trata-se do caso em que o vendedor pediu emprestado o título que se comprometeu vender antes de realizar a operação de short-selling (ou estabeleceu um acordo que lhe permite pedir emprestado). Mais em concreto, o título que pede emprestado será vendido e ele compromete-se a entregar um título do mesmo tipo ao credor;
 
• o naked short-selling ou uncovered short-selling: é o caso em que o vendedor nem pediu previamente um empréstimo, nem estabeleceu um acordo que lhe permitisse pedir emprestado um título antes de vender esse título. O vendedor deverá, portanto, comprar um título idêntico para o entregar ao comprador»[52].
 
Segundo a Federação Bancária Francesa «o mecanismo de venda a descoberto é útil ao bom funcionamento do mercado. [...] Aumenta a liquidez do mercado»[53]. Será tudo um sonho!?
 
 Quem pratica o short-selling e porquê?
 
O short-selling é praticado por um grande número de intervenientes no mercado, tais como bancos, hedge funds, gestores de fundos tradicionais (fundos de pensões, seguradoras)... É uma atividade puramente especulativa: o banqueiro ou outro investidor institucional, que recorra ao mercado, antecipa a queda do preço do título vendido. No momento da entrega do título, se a sua previsão for correta, comprá-lo-á a um preço inferior ao preço de venda e realizará um ganho financeiro. Esse tipo de prática gera instabilidade no mercado. Durante o verão de 2011, a queda brutal de preços das ações bancárias foi potenciada pelo short selling. Compreende-se porque razão essas atividades deviam ser simplesmente proibidas[54].
 
O efeito de alavanca
 
Como os bancos utilizam a alavancagem[55] sistematicamente, os fundos próprios[56] são muito reduzidos, tendo em conta os compromissos que estabelecem. É também esse, na sua perspetiva, o objetivo que se pretende: ter o menos possível de fundos próprios proporcionalmente ao balanço. Na verdade, mesmo que o benefício global seja fraco, quando calculado em percentagem de ativos, pode proporcionar um rendimento elevado sobre os fundos próprios, mesmo sendo esses muito diminutos. Imagine-se um benefício de 1,2 mil milhões de euros em relação a um volume de ativos de 100 mil milhões – o lucro será de 1,2%. Mas se os fundos próprios totalizarem 8 mil milhões de euros, o benefício representa, de facto, 15% de rendimento sobre fundos próprios. Se, de seguida, o banco recorre à alavancagem e pede emprestado aos mercados financeiros 200 mil milhões, o volume de ativos passa a 300 mil milhões; os fundos próprios não aumentaram, continuando a ser de 8 mil milhões, mas o passivo aumentou devido aos 200 mil milhões de dívida nova. Imagine-se que o banco consegue a mesma taxa de benefício, anterior ao aumento da dívida e dos ativos, ou seja, 1,2%, isso dá 3,6 mil milhões de euros. Tendo em conta os fundos próprios de 8 mil milhões, o rendimento sobre fundos próprios é de 45%. Eis a razão fundamental para aumentar a alavancagem através do recurso ao endividamento.
 
Vimos, nas Partes 2 e 4 desta série, que perdas aparentemente mínimas podem, com rapidez, provocar falência e necessidade de resgate. No exemplo teórico apresentado em cima, uma perda de 8 mil milhões, em relação a ativos no valor de 300 mil milhões (o que significa uma perda de 2,66%), poderia fazer desaparecer completamente o capital e provocar a falência. Foi o que aconteceu com o Lehman Brothers, Merrill Lynch, Royal Bank of Scotland, etc. O FMI, no Relatório sobre Estabilidade Financeira Global, publicado em outubro de 2012, estima que a alavancagem dos bancos europeus é de 23, mas essa estimativa, adianta o FMI, não inclui derivados. Trata-se da relação entre ativos tangíveis (excluindo derivados) e fundos próprios. 23 para 1 é um rácio extremamente elevado![57] O efeito real produzido pela alavancagem é mais significativo, porque os bancos têm dívidas e ativos fora de balanço (incluindo derivados de montante muito elevado).
 
Conclusão: Os grandes bancos continuam a brincar com o fogo, porque estão convencidos que serão resgatados pelos poderes públicos, sempre que for necessário. Não encontram no caminho obstáculos sérios levantados pelas autoridades (esse aspecto será desenvolvido na parte 6). Ao mesmo tempo, o seu comportamento coloca-os constantemente à beira do precipício. Apesar da campanha para reconquistarem a confiança do público, não têm qualquer vontade de adotar outra lógica que não seja a busca do máximo lucro imediato e do máximo poder para influenciarem as decisões dos governantes. A sua força é reflexo da vontade dos governantes de os deixarem agir. É apenas por uma questão de imagem que os governantes adotam um tom moralizante face aos bancos e lhes pedem que sejam responsáveis e menos ambiciosos em termos de bônus e de outras formas de remuneração.
 
O que Karl Marx escreveu em O Capital, em 1867, ainda se aplica aos bancos de hoje: «Desde o nascimento, os grandes bancos, enfeitados de títulos nacionais, foram sempre associações de especuladores privados, funcionando ao lado dos governos (devido aos privilégios que daí obtêm) que lhes emprestam dinheiro do público»[58].
 
A capacidade de destruição dos bancos é colossal. Para aqueles que ainda acreditam sinceramente ser possível existir um outro tipo de banco capitalista, chegou a hora de abrirem os olhos e de perceberem que essa possibilidade é uma quimera. É necessário retirar todo o setor bancário das mãos dos capitalistas (sem lhes pagar indemnizações) e criar um serviço público controlado pelos utilizadores, pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras do setor, pelos movimentos de cidadãos[59]. Essa é a única maneira de garantir o respeito integral pelas obrigações de um serviço público de poupança e de crédito, que vise o bem comum.
 
Na parte 6, será passada em revista a nova regulamentação bancária. (Tradução Maria da Liberdade.)
 
- Eric Toussaint, professor na Universidade de Liège, é presidente do CADTM Bélgica (Comité para a anulação da dívida do terceiro mundo, www.cadtm.org) e membro do conselho científico da ATTAC França. Escreveu com Damien Millet, A Crise da Dívida,  Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013. http://www.fnac.pt/A-Crise-da-Divida-Damien-Millet/a668770


[1]    Alan Greenspan, Le Temps des turbulences, 2007, Jean-Claude Lattès, Paris, 2007, p. 472.
[2]    A primeira parte da série, intitulada «2007-2012: 6 anos que abalaram os bancos», ver http://cadtm.org/2007-2012-6-anos-que-abalaram-os, foi publicada em 1 de Dezembro de 2012; a segunda parte intitulada «O BCE e o Fed ao serviço dos grandes bancos privados» foi publicada a 23 de Dezembro de 2012, ver: http://cadtm.org/O-BCE-e-o-Fed-ao-servico-dos; a terceira parte intitulada «A maior ofensiva contra os direitos sociais levada a cabo desde a Segunda Guerra Mundial à escala europeia» foi publicada em 30 de dezembro de 2012, ver:  http://cadtm.org/A-maior-ofensiva-contra-os; a quarta parte intitulada «Descida ao mundo viciado dos bancos» foi publicada a 4 de fevereiro de 2013, ver: http://cadtm.org/Descida-ao-mundo-viciado-dos.
[3]    O autor agradece a Olivier Chantry, Brigitte Ponet, Patrick Saurin e Damien Millet pelos seus conselhos.
[4]    Financial Times, edições de 27 e 28 de outubro de 2012.
[5]    Esse empréstimo do BCE concedido a 800 bancos europeus, num montante de 1 bilião [br: trilhão] de euros, a uma taxa de juro de 1%, por um período de 3 anos, foi analisado na segunda parte desta série, sob o título: «O BCE e o Fed ao serviço dos grandes bancos privados» (publicada a 23 de dezembro de 2012, ver: http://cadtm.org/O-BCE-e-o-Fed-ao-servico-dos)
[6]    Overnight designa o prazo de empréstimo mais curto no mercado monetário. Geralmente refere-se a empréstimos entre bancos, feitos à hora de fecho do expediente, e que devem ser pagos no início da jornada seguinte. Este mecanismo permite aos bancos cumprir uma das suas regras de ouro: fechar o dia de negócios sem deixar dinheiro «parado». A taxa de empréstimo respectiva (overnight rate) é geralmente a mais baixa do mercado. (N. do E.)
[7]    Ver Erkki Liikanen (chairperson), High-level Expert Group on reforming the structure of the EU banking sector, outubro de 2012, Bruxelas. Erkki Liikanen é o governador do Banco Central da Finlândia. Onze especialistas compõem um grupo de trabalho criado pelo comissário europeu Michel Barnier com o objetivo de diagnosticar a situação dos bancos europeus e de propor reformas para o sector bancário europeu. Um dos interesses do relatório Liikanen é confirmar oficialmente as ações torpes dos bancos, os riscos desmedidos que assumiram para obterem o máximo lucro. O grupo, criado em fevereiro de 2012, apresentou o relatório em outubro de 2012.
      Os dados referentes às necessidades de financiamento overnight são retiradas do gráfico 2.5.1, p. 27. Daqui para a frente, o documento será designado Relatório Liikanen.
[8]    Os MMF foram apresentados na parte 4 da série.
[9]    Ver «O BCE e o Fed ao serviço dos grandes bancos privados», publicada a 23 de dezembro de 2012, http://cadtm.org/O-BCE-e-o-Fed-ao-servico-dos
[10]  Relatório Liikanen, gráfico 2.4.1.
[11]  Os acionistas que vendem ações ao seu banco transformam um título de papel em dinheiro. Do ponto de vista fiscal, é mais interessante obter rendimento vendendo parte das acções que se possuem do que receber um dividendo.
[13]  O valor da multa é elevado comparando com as multas pagas habitualmente pelos bancos, mas, tendo em conta os seus ativos, o HSBC deu uma esmola. A soma paga pelo HSBC às autoridades americanas representa menos de um milésimo dos seus ativos: 1.920.000.000$ (ou seja, 1.443.000.000 €), totalizando os seus ativos 1.967.796.000.000€.
[14]  Voltaremos a este assunto na parte 7 da série.
[15]  Financial Times, «Europe’s property loans unpaid», edição de 4 dezembro de 2012, p. 23, http://www.ft.com/cms/s/0/2183f122-3d5d-11e2-b8b2-00144feabdc0.html#axzz2EMTFrLBI
[16]  Financial Times, “Mortgage-backed securities make a comeback”, 15 de outubro de 2012 mhttp://www.ft.com/intl/cms/s/0/ee87a148-16b9-11e2-b1df-00144feabdc0.html
[17]  Financial Times, edição de 21 de dezembro de 2011, p. 24
[18]  Financial Times, «Traders warn of sting in tail for crisis-era securities», edição de 15 de novembro de 2012, p. 24.
[19]  Trata-se também de reduzir o peso de certos produtos em termos de volume total de ativos, substituindo esses produtos por outros com melhor rendimento.
[20]  Ver Gillian Tett, L’Or des fous, Paris, Le jardin des Livres, 2011.
[21]  Financial Times, «Banks test CDO-style finance for trade», edição de 9 de abril de 2012.
[22]  Além disso, o volume de crédito bancário concedido a famílias e a empresas tende a diminuir ou a aumentar muito ligeiramente. Isso deve-se ao facto de os bancos endurecerem as condições de crédito. Os bancos preferem comprar títulos (mesmo de alto risco) do que abrirem ou aumentarem uma linha de crédito para famílias e empresas. As pequenas e médias empresas, não tendo possibilidade de emitir obrigações nos mercados financeiros, enfrentam sérios problemas de financiamento.
[23]  Ver Financial Times, «Fears grow bond rush will turn to price rout», edição de 22 novembro de 2012, e Financial Times, «Funds warn of stretched European debt rally», edição de 17 de outubro de 2012.
[24]  James Mackintosh, «Change would pop the corporate bond buble», Financial Times, edição de 25 de novembro de 2012. Ver também o artigo referido mais acima.
[25]  Colateral: ativo transferível ou garantia  que serve para assegurar o reembolso de um empréstimo no caso de o beneficiário de esse empréstimo não poder cumprir as suas obrigações de pagamento. Fonte: Banco de França.
[26]  Ver Manmohan Singh, «Beware effects of weakening chains of collateral», Financial Times, edição de 28 de junho de 2012.
[27]  Financial Times, «Collateral damage», edição de 25 de outubro de 2012.
[28]  É por essa razão que a tese central deste texto visa afirmar que é preciso repudiar a dívida pública ilegítima e socializar os bancos. Levando a cabo essa dupla operação (e tomando importantes medidas complementares), é perfeitamente possível dar a volta à crise.
[29]  IMF, Global Financial Stability Report, Restoring Confidence and Progressing on Reforms, outubro de 2012 http://www.imf.org/External/Pubs/FT/GFSR/2012/02/index.htm , p. 52
[30]  São dívidas do governo britânico na posse de bancos britânicos. O mesmo se passa com os outros países.
[31]  Relatório Liikanen, p. 77.
[32]  As commodities incluem o mercado de matérias-primas (produtos agrícolas, minerais, metais, metais preciosos, petróleo, gás, ...). As commodities, como os outros ativos, são objecto de negociações que permitem determinar os seus preços e as suas trocas  nos mercados à vista, mas também em mercados de derivados.
[33]  A Glencore é uma empresa de negócio e corretagem de matérias-primas, fundada pelo empresário Marc Rich. Tem sede em Baar, na Suíça, no cantão de Zug, sendo conhecida pelos seus altos voos fraudulentos. Marc Rich foi processado várias vezes por corrupção e evasão fiscal. Em 2011, o grupo dizia empregar mais de 2700 pessoas ligadas ao marketing e 54.800 pessoas (em 30 países) que mantinham relações diretas ou indiretas com as operações industriais da Glencore. De acordo com os dados disponíveis, em 2011, a Glencore controlava cerca de 60% do zinco mundial, 50% do cobre, 30% do alumínio, 25% do carvão, 10% dos cereais e 3% do petróleo. Esta controversa empresa recebeu, em 2008, o prémio da multinacional mais irresponsável, do Public Eye Awards. Fonte: http://fr.wikipedia.org/wiki/Glencore. A Glencore negociou, em 2012, a sua fusão com a Xstrata, outra empresa suíça especializada em corretagem. Ver http://affaires.lapresse.ca/economie/energie-et-ressources/201212/10/01-4602460-la-fusion-glencore-xstrata-repoussee-a-janvier-2013.php.
[34]  Financial Times, «JPMorgan copper ETF plan would “wreak havoc”», 24 de maio de 2012, p. 15
[35]  É claro que aos poderosos protagonistas do mercado de matérias-primas e de produtos alimentares é preciso juntar as grandes empresas especializadas na extração, produção e comercialização de commodities: na área dos minerais: Rio Tinto, BHP Billiton, Vale do Rio Doce; na área do petróleo: ExxonMobil, BP, Shell, Chevron, Total, ...; na área dos alimentos: Cargill, Nestlé, ... e muitos outros.
[36]  O texto deste quadro é, em grande parte, retirado de: Eric Toussaint, «Une fois encore sur les causes de la crise alimentaire», publicado em 9 de outubro de 2008, http://cadtm.org/Une-fois-encore-sur-les-causes-de
[37]  Nomeadamente, BNP Paribas, JP Morgan, Goldman Sachs, Morgan Stanley e, até ao seu desaparecimento ou resgate, Bear Stearns, Lehman Brothers, Merrill Lynch.
[38]  Os fundos soberanos são instituições públicas que pertencem, com poucas exceções, a países emergentes como a China ou os países exportadores de petróleo. Os primeiros fundos soberanos foram criados na segunda metade do século XX, por governos que queriam pôr de lado parte das suas receitas provenientes das exportações de petróleo ou de bens manufaturados.
[39]  A nível mundial, no início de 2008, os investidores institucionais dispunham de 130 biliões [br: trilhões] de dólares, fundos soberanos no valor de 3 biliões [br: trilhões] de dólares e hedge funds no valor de 1 bilião [br: trilhão] de dólares.
[40]  Testimony of Michael W.Masters, Managing Member/Portfolio Manager Masters Capital Management, LLC, before the Committee on Homeland Security and Governmental Affairs United States Senate. http://hsgac.senate.gov/public/_files/052008Masters.pdf
[41]  «You have ask the question “Are Institutional Investors contributing to food and energy price inflation?” And my answer is “YES”.»
[42]  «Assets allocated to commodity index trading strategies have risen from $13 billion at the end of 2003 to $260billion as of March 2008.»
[43]  «Em 2004, o valor total de contratos de futuros, no que diz respeito a 25 bens primários, foi de apenas 180 mil milhões de dólares, comparando com o mercado mundial de ações que representava 44 biliões [br: trilhões], ou seja, mais de 240 vezes». Michael W. Masters indica que, nesse ano, os investidores institucionais investiram 25 mil milhões de dólares no mercado de futuros, o que representava 14% do mercado. Adianta que, durante o primeiro trimestre de 2008, os investidores institucionais aumentaram muito os investimentos nesse mercado: 55 mil milhões em 52 dias úteis. É evidente que os preços exorbitaram!
[44]  Ver:Testimony of Michael Greenberger, Law School Professor, University of Maryland, before the US Senate Committee regarding “Energy Market Manipulation and Federal Enforcement Regimes”, 3 de junho de 2008, p. 22.
[45]  Jacques Berthelot, Démêler le vrai du faux dans la flambée des prix agricoles mondiaux, 15 de julho de 2008, p. 51 a 56. Versão on-line : www.cadtm.org/spip.php?article3762.
[47]  Paul Jorion, «Le suicide de la finance», Le Monde, ediçãode9 de Outubro de 2012.
[51]  O FDIC e a SEC dos Estados Unidos produziram um relatório detalhado sobre o flash crash de 6 de maio de 2010: «Findings Regarding the Market Events of May 6, 2010», http://www.sec.gov/news/studies/2010/marketevents-report.pdf
[53]  Federação Bancária Francesa (FBF), Rapport d’activités 2010, Paris, 2011.
[54]  A questão dos credit default swaps (CDS) será abordada na Parte 6. Também foi discutida detalhadamente em Eric Toussaint, «Os CDS e as agências de notação: factores de risco e desestabilização», publicado a 5 de outubro de 2011, http://cadtm.org/Quinta-parte-os-CDS-e-as-agencias
[55]  A alavancagem mede o efeito do recurso, mais ou menos significativo, ao endividamento sobre a rendibilidade financeira, tendo em conta  uma determinada rendibilidade económica. Ao aceitarem recorrer ao endividamento, os acionistas de uma empresa ou de uma instituição financeira esperam obter ainda maiores lucros, devido ao risco suplementar que correm». Ver p. 112: http://www.banque-france.fr/fileadmin/user_upload/banque_de_france/publications/Documents_Economiques/documents-et-debats-numero-4-integral.pdf
[56]  Fundos próprios: capitais de que uma empresa dispõe, para além dos que pediu emprestados. Os fundos próprios são registados no passivo do balanço de uma empresa. Fonte: http://www.lesclesdelabanque.fr/Web/Cles/Content.nsf/LexiqueByTitleWeb/fonds%20propres
      Os fundos próprios incluem também as reservas, ou seja, os lucros acumulados.
[57]  IMF, Global Financial Stability Report, Restoring Confidence and Progressing on Reforms, outubro de 2012, http://www.imf.org/External/Pubs/FT/GFSR/2012/02/index.htm, p. 31
[58]  Karl Marx, 1867, O Capital, livro I, capítulo 31.
[59]  Como indicado na parte 4, um setor bancário cooperativo de pequena dimensão deveria coexistir com o setor público.
https://www.alainet.org/pt/articulo/164565
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