Fórum de Soberania Alimentar trouxe avanços em diversos aspectos

06/03/2007
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Para o dirigente do MST e da Via Campesina, João Pedro Stedile, o Fórum de Soberania Alimentar que aconteceu no final de fevereiro em Mali, na África, foi um importante momento na articulação entre redes internacionais e movimentos sociais que tem um objetivo comum: conquistar a soberania alimentar.

“O Fórum está dando resultados concretos, articulando atores sociais e deixando um conceito coletivo muito mais amplo do que tínhamos até agora sobre soberania alimentar”, destaca Stedile. Em entrevista, o dirigente da via campesina fala sobre alguns dos temas de discussão no Fórum, como os combustíveis feitos com base agrícola e o diálogo entre movimentos sociais e governos.

1. Qual é a avaliação inicial do Fórum de Soberania Alimentar?

O Fórum de Soberania Alimentar de Mali teve uma importância política muito grande por vários aspectos. Primeiro porque representou um passo a mais na articulação de redes internacionais e de setores sociais importantes que fazem seu trabalho nesta grande luta contra o neoliberalismo, mas que não tinham um espaço próprio. O Fórum Social Mundial tem outro caráter. É um espaço que se parece mais com uma "feira de idéias"; já o Fórum de Mali se propôs a reunir essas redes para buscar ações concretas.

Desta maneira nós conseguimos juntar durante estes dias os movimentos que integram a Via Campesina, pescadores, pastores, a Marcha Mundial de Mulheres, povos indígenas, ambientalistas e alguns outros setores urbanos. O mais importante é que conseguimos reunir estas redes e setores sociais. O tema da soberania alimentar, mesmo estando presente no pensamento filosófico de quase todas as correntes políticas e ideológicas (como na obra de José Martí e Mariátegui), não conseguiu emplacar  na esquerda em geral, que não o assimilou como uma bandeira política importante ate hoje..

Os problemas da fome e da pobreza no campo, a falta de mercado para produtos agrícolas dos camponeses,  ficaram mais evidentes e se multiplicaram nos últimos 30 anos, como consequência da revolução verde e do capitalismo na sua fase neoliberal.  Neste Fórum acredito que demos um grande passo adiante, sob o ponto de vista teórico e político. Este processo de unidade levou também à construir um conceito mais amplo e preciso sobre o que é, de fato, a soberania alimentar.

2. Quais os avanços do ponto de vista conceitual e teórico neste processo?

Existia uma concepção genérica de soberania alimentar como direito dos povos a produzir seus próprios alimentos. Acrescentamos que é também um dever. Porque toda a população que deseja ser livre e autônoma tem a obrigação de produzir seus próprios alimentos. Portanto, é mais do que um direito, é uma determinação, uma condição política. Por isso, nós passamos a aplicar este conceito em todos os espaços territoriais: países, regiões, cidades e comunidades rurais. Outro avanço foi o entendimento de que a soberania alimentar somente será possível se acontecer em paralelo com a soberania política dos povos que precisam ter condições políticas para exercer a autonomia dos seus territórios e sobre o Estado, para que este possa aplicar políticas que gerem autonomia na produção de alimentos.

Por último acredito que avançamos no conceito de destacar a necessidade de se utilizar técnicas agrícolas que respeitem o meio ambiente, agro-ecológicas, ou seja, que aumentem a produtividade e autonomia da produção de alimentos mas de uma forma sustentável, preservando a natureza para as futuras gerações e produzindo alimentos saudáveis..

Por fim, o Fórum está dando resultados concretos, articulando atores sociais e deixando um conceito coletivo muito mais amplo do que tínhamos até agora sobre soberania alimentar.

Do ponto de vista político, mesmo quando não há consensos em certos temas, também evoluimos no debate sobre os inimigos que impedem a soberania alimentar dos povos e dos países.   Identificamos que, dentro do neoliberalismo, as empresas transnacionais, que são em torno de 20, controlam toda a cadeia de produção alimentar: sementes, agrotóxicos, comércio agrícola , agroindústrias e comércio internacional. No Fórum houve um acordo de que estas empresas são nossas principais inimigas. Isso não estava presente nos debates de nossas reuniões anteriores. Outro ponto é que os governos neoliberais também são um obstáculo, porque quando os governos nacionais se aliam ao imperialismo passam a promover políticas que interessam apenas ao capital internacional.  E por tanto, abandonam políticas publicas de proteção a agricultura, e deixam tudo para o mercado, ou seja deixam sob controle das empresas transnacionais.

3.  E todo mundo concordou com essa avaliação de que há que enfrentar-se as empresas transnacionais?

Para ser honesto com a discussão, no conceito temos um consenso, e avançamos muito.  Mas nas táticas políticas ainda não há concordâncias. Há uma opinião maioritária entre os movimentos camponeses, pastores, pescadores, mas algumas redes ambientalistas e ONGs  identificam como solução para o problema da soberania alimentar, apenas iniciativas localizadas, de assistencialismos, desenvolver um tal comércio justo, nas pequenas experiências locais. Isso pode resolver o problema de comunidades ou de pequenos produtores, mas não combate o sistema em si, que gera tanta injustiça e desigualdade.  Felizmente a ampla maioria das redes de ambientalistas e cientistas que estão em Mali, também pensam como os movimentos camponeses.

4.E na conjuntura atual, qual é o peso destas redes e ONG na composição atual da Via Campesina?

Na Via Campesina não têm influência, mas em um ambiente como este, e até mesmo no próprio Fórum Social Mundial tem. Acredito que há ONG de todo tipo: temos Ongs amigas, aliadas e comprometidas. Mas infelizmente, há um numero significativo, sobretudo que atuam a partir do primeiro mundo, com visões colonizadoras dos pobres, que acabam sendo entidades oportunistas. Nos últimos anos, algumas delas foram cooptadas por governos ou organismos como o Banco Mundial, que investiram muito dinheiro nelas. Por isso, acabam exercendo uma grande influência ideológica naquelas sociedades e países onde o povo está ainda desorganizado.

A rigor, na luta geral por mudanças na sociedade, na balança da luta de classes, para usar uma antiga terminologia, pesa a correlação de forças, ou seja, quantas pessoas conseguem se organizar para um objetivo político. As ONGs nunca vão se propor (e não é seu trabalho) a organizar o povo para alcançar objetivos políticos. Do ponto de vista político elas não têm força e é por isso que a classe dominante não se preocupa com elas

Agora, do prisma da luta ideológica, aí sim acredito que têm influência razoável, não na Via Campesina, mas sim nos países que vivem esta crise da organização popular. Em época de crise ideológica, de falta de projeto de libertação como estamos vivendo agora,  a confusão se instala, e ai se gera um campo fértil para frutificar idéias oportunistas e individualistas, que representam apenas falsas saídas.


5. Como ficou o movimento latino-americano e como estiveram representadas o chamado para ação, nos documentos finais?

Nós na América Latina temos uma unidade muito grande entre os movimentos sociais, e entre eles e demais setores e redes. Existe uma grande articulação entre os camponeses e também com outros setores como os ambientalistas, as mulheres. Isso ajuda muito. Creio que os asiáticos também têm uma unidade muito boa.

A África é um desafio grande porque é um continente muito espoliado, roubado, criminalizado e explorado, que sofre todas as maldições do capitalismo e do imperialismo. No continente quase não existe organização popular e as que existem são de caráter localizado, um pouco pela tradição tribal  e também pela influência de ONGs européias que surgem com idéias colonizadoras que pouco contribuem para a auto-organização dos movimentos africanos.

Porém, no conjunto do Fórum, os latinos (por ter esta unidade que mencionei) tiveram uma grande influência e, em geral, todos nós aprendemos com este intercâmbio. Nós saímos daqui com alguns conhecimentos que não tínhamos e que podem enriquecer nossa prática quando retornarmos aos nossos países.

6. Os movimentos na América Latina adquiriram a experiência de trocar pontos de vista com os governos. Como deve proceder agora as organizações sociais: vão manter o diálogo com os governos ou irão recorrer às Nações Unidas para apresentar uma iniciativa de declaração especial sobre soberania alimentar?

São dois aspectos diferentes. Uma coisa é a política dos movimentos sociais frente à qualquer governo, sejam progressistas, de centro ou de direita. Eu acredito que se deve manter a política que se mostrou correta que é uma espécie de auto-crítica em relação à experiência da 3ª Internacional dos partidos comunistas clássicos e que mantiveram aos movimentos como correias de transmissão entre governo e base.

A esquerda social, contemporânea desenvolveu a idéia de que os movimentos sociais devem se manter autônomos dos partidos e dos governos. Acredito que essa autonomia deve ser preservada e que é uma condição de sobrevivência das organizações sociais. A autonomia permite então que os movimentos tenham um relacionamento independente com governos, seja de pressão ou de diálogo, dependendo da situação em cada país. Mas há necessidade da união de todas as forças populares e os setores representados nos governos progressistas e de esquerda para construir um projeto político comum, de libertação do povo. Que seja anti-imperialista e anti-neoliberal.

Isto não pode ser alterado mesmo com os governos progressistas, já que eles próprios precisam da mobilização das massas para realizar as transformações que querem implementar. O caso de Chávez na Venezuela é típico: seu governo está mais avançado que os movimentos sociais. Ele lança as propostas de mudança, mas falta ainda acumulo organiztivo das forças populares, de massa  para impulsioná-las.   Os movimentos sociais e forças populares  deveríamos estar sempre mais adiantados do que os governos, para poder fazer pressão. Mas, mesmo na América Latina, onde tivemos mudanças e governos progressistas, não temos ainda um quadro histórico de ofensiva e reascenso generalizado do movimento de massas.

Outro aspecto importante que gostaria de comentar  é a nossa política com relação ao governo da Venezuela. O presidente Chávez se deu conta de duas coisas no processo de transformações em curso no seu país. Primeiro: que o processo de mudanças em curso não foi suficiente para alterar em 8 anos, a essência do Estado burgues. Por isso, muitas medidas políticas que o governo Chavez adota o Estado Venezuelano  boicota.

Segundo: a Venezuela é o país latino-americano que talvez esteja ainda mais longe de aplicar a soberania alimentar, porque mesmo que eles incorporem o conceito, na prática o país ainda depende da importação de quase 80% dos alimentos que consome. Isso é culpa do modelo econômico petroleiro dependente, imposto ao povo venezuelano ao longo do sécuto 20. Portanto, é provável que seja o país mais frágil neste aspecto. O governo sabe disso, por isso que pediu apoio da Via Campesina da América Latina. Em Mali, todos os movimentos presentes se comprometeram a ajudar o povo da Venezuela a impulsionar as transformações estruturais na agricultura com o objetivo de acelerar o processo de autonomia de produção de alimentos.

7. Há três temas que estiveram presentes nas discussões do Fórum, mas que não foram para o debate central e, pelo que se sabe, irão marcar a agenda dos próximos anos que são os bio-combustíveis, as ações dos movimentos diante à questão ambiental e os transgênicos, principalmente relacionado às sementes Terminator.


Estes temas foram debatidos mas não de forma aprofundada, mas, na América Latina existem diversas redes, incluindo a Via Campesina, que se dedicam permamentemente a esses temas. É claro que a questão dos desastres ambientais está ocorrendo em todos os países latino-americanos. Como morador da cidade de São Paulo, assisti este verão à catástrofes semanais. Gente morrendo em decorrência da chuva na maior cidade do hemisfério sul. Isso é inadmissível. Praticamente em todas as semanas acontecia um temporal. É evidente que isso não é normal, mas sim consequência do aquecimento global e das modificações no clima. Porém, não existe ainda na sociedade brasileira (e em geral) um debate político sobre as causas disso,  sobretudo porque os meios de comunicação são controlados pelas classes dominantes e seus interesses.

Em relação aos temas dos biocombustíveis, foi muito interessante o fato de se ter relacionado esta questão com reflexões que agora devemos levar para nossos países, sobretudo aqueles que estarão à mercê das ações das transnacionais, como é o caso do México, Argentina, e Brasil. Nestes países, as transnacionais têm a capacidade operativa de transformar grandes áreas produtivas para a produção de bio-combustíveis. No Fórum avançamos na construção de um novo conceito: não chamar mais de “biocombustíveis”, mas sim de “agrocombustíveis”  ou agroenergia.. A primeira expressão é incorreta porque seria um combustível feito com vida. Mas vida representa um conceito muito mais amplo. Agora nós temos que buscar a adotar uma forma mais correta de chamar os combustíveis energéticos feito a partir de vegetais e de produtos agrícolas.

O segundo ponto que avançamos foi a necessidade de promover o debate de uma nova matriz energética para os transportes, que é o maior causador de contaminação e o maior consumidor de petróleo. Esta discussão é fundamental. Não adianta nada discutir como produzir alcóol mais barato, se a indústria automobilística continua fabricando esta grande quantidade de carros, mesmo que sejam movidos à alcoól. Por tanto, precisamos debater a necessidade de mudar o sistema de transporte individual.
 É importante que estejamos a favor da produção de energia a partir de produtos agrícolas, mas com a condição de que isso não substitua a produção de alimentos e que não utilize produtos alimentícios como por exemplo, a soja ou o milho.

Por fim, entendemos que, se é importante ter energia renovável como o agrocombustível - que podem ser cultivados todos os anos - é fundamental que esta produção seja sustentável. O agronegócio pode produzir soja, cana, amendoim, algodão para energia, mas o fará de forma insustentável, baseado no agrotóxico e na monocultura. Aspectos que trazem consequências perversas para o meio ambiente, para a migração, para o mundo camponês e até para o aquecimento global. Todos estes debates ainda são embrionários, mas saímos daqui com algumas reflexões que irão nos vervir para ter uma melhor compreensão de como tratar o tema dos agrocombustíveis.

- Sebastian Valdomir, (REDES - Amigos da Terra- Uruguai)
Desde Mali,  noroeste de África, 28 de fevereiro de 2007.

https://www.alainet.org/pt/articulo/119858
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