O nacional-popular na América Latina

12/06/2006
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A elite brasileira está desconcertada diante da erupção do nacional-popular na América Latina. Formada desde sempre no credo da globalização – onde tempo e espaço são conceitos desconhecidos – intelectuais, políticos, empresários e jornalistas não possuem mais do que o velho bordão do ataque ao “populismo” na tentativa de exorcizar as forças que modelam o novo cenário latino-americano. Contudo, a realidade é insistente e a conjuntura atual certamente não será chuva de verão. A recente nacionalização do gás boliviano pelo Presidente Evo Morales expressou como nunca os temores e a natureza do poder no Brasil. Batizada pela grande imprensa como a “crise boliviana”, todo o noticiário esteve dominado pelo súbito e inesperado surgimento de um nacionalismo destinado a “colocar no seu lugar” um presidente indígena de um pequeno país que ainda não aprendeu a portar-se bem no exercício da presidência. Evo Morales foi, neste contexto, tratado como juridicamente incapaz porque a nacionalização – considerada anacrônica em um mundo onde o respeito aos contratos é considerada como lei de bronze – teria sido, de fato, uma inspiração de Hugo Chávez Frías, o presidente “populista” venezuelano. Ou seja, um indígena na presidência seria incapaz de observar que os preços mundiais da energia pagavam a nacionalização e, de quebra, permitirá ao estado boliviano enfrentar as imensas carências sociais e diminuir seu déficit fiscal, hoje próximo aos 4%. Enfim, um indígena não seria capaz de tirar uma conclusão óbvia a respeito do funcionamento do mercado mundial que implicou em medida de racionalidade impecável... Foi sem dúvida, um exercício de racismo como há muito não assistíamos, similar aquele destinado aos afro-brasileiros que nenhum sistema de quota é capaz de derrotar... O episódio assinalou também uma conduta que sem dúvida será dominante no enfrentamento da onda nacionalista que impera na América Latina: o aperfeiçoamento do anti-nacionalismo brasileiro. No episódio da Bolívia, a arquitetura deste anti-nacionalismo foi exibida sem rodeios. Em primeiro lugar, o nacionalismo brasileiro será destinado apenas a enfrentar adversários mais débeis – como a Bolívia, por exemplo – e nunca a adversários mais importantes – como os Estados Unidos – em que ele seria sem dúvida, mais útil. Será um nacionalismo defensivo, retórico... Na mesma semana em que o presidente Evo Morales era espinafrado na grande imprensa por supostamente atacar a Petrobrás, o Banco Central divulgava que no primeiro trimestre do ano as remessas de lucros das empresas transnacionais batiam recorde histórico: quase 4 bilhões de dólares, quantia que exerce poderosa influencia nas contas nacionais e implicam ajudam na espiral de endividamento interno e externo. Nenhum comentarista assinalou o contraste entre as duas realidades entre outras razoes porque o estrutural há muito deixou de ser importante no jornalismo brasileiro e também porque as remessas representam resultado necessário – e sabido – das privatizações que gozaram de amplo apoio na mídia. Ainda que a alternativa de “usar o porrete” – exigência editorial de um jornal paulista de circulação nacional – não prosperou, o ardil foi suficiente para combater a suposta “linha terceiro-mundista” incrustada no Itamarati (leia-se Samuel Pinheiro Guimarães). O patrono, Barão do Rio Branco, personagem que ainda não recebeu uma merecida biografia crítica, foi logo invocado para exigir do governo energia contra os “abusos e a arrogância” de La Paz. Na verdade, a tentativa de “resgatar a dignidade nacional” ofendida pelo ato soberano do novo governo boliviano, escondia o sub-imperialismo brasileiro, de longa tradição. Seria importante que a diplomacia brasileira abrisse os arquivos históricos de forma que todos nós ficaríamos sabendo que a compra do território do Acre implicou em mais do que a entrega de dois “cavalos velhos”, expressão supostamente atribuída ao presidente Evo Morales sobre a aquisição de 1903. Seria uma oportunidade fantástica para conhecer mais uma conquista do Barão, o patrono de nossa diplomacia. Da mesma forma, é indispensável que a Petrobrás esclarece cada uma das sérias acusações feitas pelo governo boliviano – evasão de impostos, ilegalidade nos contratos, etc – sejam esclarecidas pela importância da empresa brasileira para o país. O esgotamento da estratégia sub-imperialista longamente praticada pelo Brasil tornou-se evidente. Durante muito tempo, a linha da esquerda brasileira foi subsidiária do elitismo que marca a diplomacia brasileira, pois ela sempre foi incapaz de articular-se na América Latina, mesmo considerando que o PT e Lula em pessoa, percorreram quase todos os países da região quando ainda eram oposição e tinham no Fórum de São Paulo uma tribuna para fazer política interna, flertando com a “unidade latino-americana”. Contudo, um genuíno processo de integração latino-americano nunca passou pela cabeça dos principais dirigentes do Partido e menos ainda dos principais condutores da política do governo. É o colapso desta política que leva as “trapalhadas” do Planalto e questiona a capacidade do Itamarati em atuar no novo cenário latino-americano. Um exemplo notável deste fracasso pode ser observado precisamente no terreno da energia. Enquanto a PDVSA venezuelana e até mesmo Gazpron da Rússia apresentam propostas de exploração conjunta do gás boliviano, a Petrobrás segue atuando como uma transnacional estadunidense, colhendo inimizades e perdendo dinheiro. Contudo, para atuar na direção da integração, o governo precisaria resgatar a Petrobrás para uma política nacional e exonerar grande parte de diretores internacionalistas que ainda conservam poder e influência surpreendente nos dias atuais. Na verdade, duas facções, uma tucana e outra petista, disputam o poder da estatal com a mesma política: nada de integração latino-americana, nem pensar associação estratégica com a PDVSA, nada de “populismo”. Perde-se dinheiro a cântaros na crítica do populismo e na “defesa” do mercado e da racionalidade nas decisões do setor energético. É que aos poucos vamos descobrindo que uma política ultra-conservadora e elitista interna é incompatível com uma política externa progressista. Neste dias, a benevolente CNBB afirma que o governo Lula é incapaz de enfrentar a elite. Sem os compromissos da entidade e em um país onde é inútil “reclamar ao bispo”, não é ocioso perguntar: estaria disposto, pelo menos, a enfrentar a elite? As decisões de Evo Morales são consideradas “eleitoreiras”, dizem os analistas, porque se avizinha a disputa pela Assembléia Nacional Constituinte. A elite boliviana não cometerá agora o erro que sua similar cometeu na Venezuela quando se recusou a disputar pensando que depois se “acertaria as contas” com o “coronel Hugo Chávez” e seguiria mandando no país e usufruindo do rentismo petroleiro. Sabe que precisa fazer uma disputa séria com Evo Morales e as forças que o apóiam, razão pela qual defenderam em uníssono com o governo a nacionalização. A elite local sabe muito bem que a maioria da população apoiará decididamente ao presidente, pois basta recordar que segundo os dados do último censo (2001) que nas áreas rurais 75% das casas o principal energético é a lenha, enquanto o gás atende somente 13.58% das casas. Contudo, a elite boliviana, principalmente de Santa Cruz de la Sierra, se somou aos reclamos da Itamarati afirmando que a formas e formas de nacionalizar e que o discurso de Evo arruinará as relações entre Brasil e Bolívia. Não bastasse a dose, ocorreu um reclamo mais ou menos generalizado sobre o fracasso da integração latino-americana, uma espécie de choro tardio por um filho morto, do qual nunca verdadeiramente nos orgulhamos. Nesta hipótese, a responsabilidade pela fragmentação da América Latina tem, também neste caso, um responsável: Hugo Chávez e seu aprendiz, Evo Morales. Ocorre precisamente o oposto, pois desde que em Buenos Aires em fevereiro deste ano, oportunidade em que o presidente da Republica Bolivariana da Venezuela anunciou a morte da ALCA e insistiu na necessidade de outra integração que, a falta de nome mais apropriado, chamou de ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas), assistimos por primeira vez uma real alternativa aos projetos hegemônicos estadunidenses. Não obstante, para o pensamento dominante estaria ocorrendo uma “desilusão latina”, produto da crônica incapacidade de unificar o continente. É verdade que no Brasil qualquer alusão à integração latino-americana é sempre muito mal vista, quase sempre sinônimo de retórica “populista”, projeto desnecessário em “tempos de globalização”. Contudo, é certamente incompreensível que os mesmos (as mesmas pessoas) que rapidamente fazem restrições à integração latino-americana se desmancham em elogios quando regressam da Europa e experimentam o mundo criado a partir da integração européia e o futuro luminoso reservado ao velho continente. Elogiam, da mesma forma, a visão estratégica dos Estados Unidos com o NAFTA e a ALCA. Contudo, a classe dominante latino-americana e seus intelectuais é pródiga em elogiar as conquistas européias e estadunidenses na mesma medida em que revelam idêntica incapacidade para reproduzir nos trópicos aquilo que admiram alhures. É, portanto, a soma perversa de anti-nacionalismo, com sutil dose de racismo e a defesa subliminar de sub-imperialismo a base que ofereceu o triste espetáculo que assistimos no Brasil nos dias atuais. Ficou ainda mais ilustrativo que tudo ocorra em um governo presidido pelo acúmulo histórico da esquerda brasileira, conduzido por Lula. Caso estivéssemos sob um governo da clássica direita brasileira ou mesmo sob o discreto charme colonial de Fernando Henrique Cardoso, ainda haveria espaço para considerações defensivas, mas tudo passa sob um governo do PT, presidido por Lula, o ex-líder sindical operário. Ocorre, contudo, que o ressurgimento do nacional-popular na América Latina revelou o eurocentrismo da esquerda brasileira e a necessidade urgente de outra esquerda, capaz de entender que atua no mundo, mas não pode livrar-se de seu tempo e seu espaço. Que não existe incompatibilidade em entender o mundo “globalizado” e superar o eurocentrismo que, por sua vez, não poderá nunca deixar de ser vício para tornar-se virtude. Recordo, a respeito da aguda reflexão de Darcy Ribeiro quando escrevia, desde o Chile de Allende, que sua geração era a primeira a latino-americanizar-se. Ironia da história, o processo ocorria quando ainda lhe restaria mais de 10 anos de exílio, de tal maneira que aquela primeira geração de intelectuais que se latino-americanizaram estavam impedidos de comunicar sua experiência para os que surgiam desavisados na cena histórica e em momento em que ocorria uma colonização dos intelectuais, travestida, como sempre, de “experiência internacional”. A história, se percebe agora, não concluiu. Saberemos aproveitar esta oportunidade? - Nildo Ouriques – Coordenador do OLA/UFSC, professor de Economia da UFSC. O OLA é um projeto de observação e análise das lutas populares na América Latina. www.ola.cse.ufsc.br
https://www.alainet.org/pt/articulo/115535
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