Quebrar a flauta

17/03/2006
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Faz muito anos, um chargista da “Última Hora” de São Paulo trocou o rosto de Nossa Senhora Aparecida pelo de Pelé, mantendo o corpo da imagem. Foi um Deus-nos-acuda. Por pouco os fiéis não empastelaram o jornal. Recentemente, um pastor evangélico chutou na TV a imagem da padroeira do Brasil. Deu no que deu. Estamos todos horrorizados perante os violentos protestos dos muçulmanos à publicação de charges de Maomé. Será que nós ocidentais, mergulhados numa cultura tão secularizada, temos noção do que significa ridicularizar ícones sagrados? Contou-me um missionário que atua entre indígenas que, no início do século XX, um padre destinado a catequizar uma aldeia do Xingu ficou indignado ao constatar que o ritual religioso centrava-se numa flauta tocada pelo xamã, cuja música estabelecia a conexão com o transcendente. Trancadas nas malocas, mulheres e crianças eram proibidas de assistir à cerimônia. Escoltado por soldados, o missionário trouxe a flauta para o centro da aldeia, fez vir mulheres e crianças, quebrou o instrumento musical rechaçado como idolátrico e pregou a presença de Jesus na hóstia consagrada. O que impedia aquela comunidade indígena de vingar-se entrando numa catedral, abrindo o sacrário e rasgando as hóstias? A força militar. Só isso. É o que permite ao Ocidente, do alto de sua arrogância, acreditar que somos mais cultos que a gente do Oriente. Eles, os fundamentalistas; nós, filhos do Iluminismo, os esclarecidos. Quanta ignorância de nossa parte! Ou preconceito, o que dá no mesmo. O que seria da álgebra sem al-Kuarizmi, e a filosofia sem os comentários de Avicena e, em especial, de Averróis ³desplatonizando² Aristóteles? O que seria do Ocidente sem a lógica e a ética, a matemática e a epistemologia derivadas de sábios chineses e indianos, sumérios e egípcios? Se o Oriente fosse tão pouco lógico, como tenta impingir-nos a pretensão eurocêntrica, os chineses não teriam inventado a bússola e o timão, o cultivo em fileiras e o alto-forno, a pólvora e o estribo, o mastro múltiplo e o carrinho de mão, o papel e a imprensa (centenas de anos antes de Gutenberg). Nós, ocidentais, dessacralizamos o mundo ou, como prefere Max Weber, o desencantamos. A ponto de se decretar ³a morte de Deus². Se abraçamos paradigmas tão cartesianos, felizmente em crise, isso não é motivo para ³quebrar a flauta² dos povos que levam a sério suas raízes religiosas. Aliás, o fundamentalismo religioso é encontrado também entre a direita cristã dos EUA, incluindo Bush, e os ultranacionalistas que defendem a expansão do Estado de Israel às custas da anexação de territórios palestinos. Erra o Oriente por ignorar a conquista moderna de laicidade da política e da autonomia recíproca entre religião e Estado. Erra o Ocidente por ³sacralizar² a economia capitalista e desdenhar as tradições religiosas, ao pretender confiná-las nos templos e na vida privada. Os orientais se equivocam por confessionalizar a política, como se as pessoas se dividissem entre crentes e não-crentes (ou adeptos da minha fé e os demais). Ora, o marco divisor da população mundial é a injustiça que segrega 4 dos 6 bilhões de habitantes. Por sua vez, os ocidentais cometem grave erro ao pretender impor a todos os povos, pela força e pelo dinheiro, seu paradigma civilizatório fundado no consumismo e no direito de apropriação privada da riqueza em detrimento das condições de vida dos não-proprietários. Não mais existem ateus. Existem, sim, aqueles que não crêem no Deus da minha fé. Mas são piedosos devotos do mercado ³livre², do sagrado direito à propriedade privada, da supremacia do modelo ocidental de democracia (desde que Chávez e o Hamas não resultem das urnas, e que não se queira impô-lo aos países árabes fornecedores de petróleo aos EUAŠ). Há qualquer coisa de podre no Reino da Dinamarca quando a mídia satiriza valores religiosos de outros povos e culturas. É fácil falar em ³liberdade de opinião² quando quebro a flauta protegido pela força frente ao objeto de minha sátira. Que liberdade possui a panela de barro frente à de ferro?, indaga o autor bíblico. A reação violenta dos injuriados se explica, mas não se justifica. Se partilhar a mesma fé fosse fator de unidade entre povos, não haveria tantas divisões no interior das tradições judaica, cristã e islâmica. A hegemonia católica na Idade Média já provou que a fé não move montanhas. Só o amor, centrado na prática da justiça - essa capacidade de aceitar o outro em sua dignidade e diferença -, fará de todos nós uma única família humana. - Frei Betto é escritor, autor de ³Típicos Tipos ­ perfis literários² (A Girafa), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/114658
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