País dos canecos

26/02/2006
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O Carnaval foi, em tempos idos, uma festa religiosa. Como revela sua etimologia, era (e ainda é, em outro sentido) o "festival da carne". No tríduo que antecede a Quaresma, os cristãos fartavam-se de carnes. Após a Quarta-Feira de Cinzas, passavam 40 dias em abstinência, não só de bifes e chouriços, mas também de relações sexuais. Com o tempo, o Carnaval transmutou-se em folguedo profano. Festa em que se brinca invertendo papéis pessoais e sociais. O rosto coberto com a máscara do diabo ou do político, o homem vestido de mulher e a mulher em trajes masculinos, o rico à rua em farrapos, o pobre em trajes imperiais. Outrora, uma festa sadia, na qual todos participavam. Em cada cidade do Brasil, havia blocos, cordões, bailes, desfiles e carros alegóricos. Em avenidas e praças, adultos e crianças mesclavam-se na alegria. Ninguém saía à rua atento à bolsa ou à carteira. Pulava-se Carnaval sem drogas e violências, embora houvesse quem exagerasse na bebida e cheirasse lança-perfume. Mudou o Brasil, mudamos nós. O Carnaval adquiriu, então, o caráter de folia - do francês folie, loucura. A sobrevivência difícil reduziu o nosso espaço de lazer e o império da TV, o nosso tempo. A festa de Momo restou como momento de catarse. Busca-se o prazer imediato no sexo e na droga; a transgressão de valores na nudez e na irreverência agressivas; a competição exacerbada na disputa de prêmios a fantasias, blocos e, sobretudo, escolas de samba. Hoje, o Carnaval agoniza nas cidades brasileiras. É um feriadão. Escravizados pelo ícone eletrônico, deixamos de ser participantes para quedar-nos como meros (tele)espectadores. Despimos a fantasia do corpo para confiná-la na mente. Eis a globalização do voyeurismo. Refestelados na poltrona, vemos a mulata esfregar-se em nosso vídeo e volatilizar-se no carrossel de imagens. Ficamos reduzidos à condição de fregueses de um açougue mágico, cujas postas são pedaços de gente salpicados de purpurina e confete. Restam, agora, poucos palcos: os sambódromos do Rio e de São Paulo, os trios elétricos de Salvador, os blocos de Olinda. Também ali o dinheiro supera o ronco da cuíca, os bem-nascidos tomam o lugar da gente do morro, enredos e passistas são obscurecidos pelo nu explícito. Os destaques das escolas, criadas em favelas e vilas, ficam para as estrelas globais e o narcisismo daqueles que, convencidos de sua esbeltez física ou fissurados pela fama, exibem-se em passarelas de samba. Sobra-nos a tristeza de saber que a nossa única alegria é dar ibope para quem desfila para exaltar a vitória de todas as cervejas. Assim, somos condicionados a acreditar que a felicidade está ao alcance da mão, brilha como ouro e refresca como neve nesse calor tropical: no copo, o líquido dourado coroado pela espuma branca. Também pudera, cerveja nas mãos, bola nos pés rumo à taça do hexacampeonato e o governo livrando de impostos os investidores estrangeiros para que nos tragam mais dólares, não merecemos o título de país dos canecos? - Frei Betto é escritor, autor de “A Mosca Azul” (Rocco), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/114449
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