Carnaval & plenitude

22/02/2006
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Guardo a nostalgia dos carnavais de rua, dos cordões de mascarados, dos carros alegóricos, dos blocos alegres, dos salões de confetes e serpentinas, adultos e crianças misturados nas avenidas ou nos desfiles de fantasias. Nem o carnaval resistiu à privatização. De foliões, viramos meros espectadores, ou melhor, telespectadores do reinado de Momo no Sambódromo, onde o ágape dos piratas da perna de pau cedeu lugar ao erotismo dos destaques das escolas de samba e, enfim, à pornografia dos salões, onde já não se aponta a cabeleira do Zezé nem se pergunta se será que ele é. Ágape, eros e porno - os gregos entendiam de gente. Ágape, a comunhão de espíritos mediatizada pelos símbolos. O silêncio como matéria-prima do amor. Eros, o corpo como expressão estética dos sentimentos mais puros e profundos. O gesto como sacramento de e/fusão. Porno, a degradação, o sexo como negação de si e reificação do outro. A morte como salário do pecado. Carnaval significa festa da carne. Outrora, a partir da Quarta-Feira de Cinzas, os cristãos passavam 40 dias em abstinência de carne, preparando-se para celebrar a Páscoa, a ressurreição do Senhor. Festivais de carnes eram promovidos nos três dias que antecediam o início da abstinência e muitos se fartavam do alimento que iriam evitar nas semanas seguintes. Um exercício de penitência que ajudava a aplacar a gula e a fermentar o espírito. Hoje, soa anacrônico falar em penitência. Enquanto a confissão auricular perdurou entre os católicos, ainda era costume recomendar-se alguma "penitência" para reparar as faltas. Em geral, umas poucas orações que não obrigavam o fiel a reparar, de fato, a ofensa ao próximo nem privar-se de preferências e situações que favoreciam a reincidência. Esse cristianismo prêt-à-porter fez com que perdêssemos o caráter pedagógico da formação da vontade e do aprimoramento da inteligência, premissas à dilatação espiritual. Filhos bastardos de Protágoras, queremos desfrutar todas as possibilidades, como se pudéssemos voar simultaneamente em todas as direções do desejo. Ora, a liberdade como infinitude só existe na demência ou no êxtase místico. Este, contudo, exige que se saiba dizer não aos apetites desordenados, à mente que mente, ao olhar alheio que nos engaiola na sedução narcísica, às ambições que blefam com o ego, prometendo-lhe uma saciedade que só aumenta a sede. Sábios eram os antigos monges que, ao impor limites aos sentidos e à razão, alcançavam a graça da fruição no Espírito, como ensina Aristóteles. É verdade que o dualismo platônico e a devoção que, de olhos no Céu, dava às costas à Terra, este "vale de lágrimas", prejudicaram, e muito, uma espiritualidade que escapasse do solipsismo e tivesse, como centro de todas as renúncias, o amor de Deus como fonte exclusiva de amor aos semelhantes. Agora, livres dos demônios que contrapõem alma e corpo, temos melhores condições para percorrer o árduo e fascinante caminho que conduz da via purgativa (livrar-se das tendências nefastas) à via iluminativa (fazer das virtudes, hábitos) e, desta, à via unitiva (viver em comunhão de Amor). A noite escura que atira o náufrago do Espírito na praia luminescente da paixão inefável. Nessa sociedade consumista, adquirir liberdade espiritual diante de tantos apelos hedonistas supõe um pouco mais de silêncio interior, menos sofreguidão na disputa de espaço pessoal, modéstia no estilo de vida, frugalidade na alimentação e saber dizer não para abraçar com firmeza opções fundamentais. Uma questão de qualidade de vida, de plenitude interior, da qual se infere aquela espiritualidade que nos faz descobrir que trazemos no coração um poço de água viva. Quem o descobre aprende a aplacar a sede. Todos os carnavais do mundo não se comparam à felicidade que irrompe no espírito de quem faz de Deus seu caso de amor. Tamanha alegria merece ser celebrada com muito samba, cuíca e tamborim, já que a dança é a única forma que o ser humano conhece de multiplicar-se e voar sem outra ajuda senão a do impulso vital que faz do corpo arte e liturgia. - Frei Betto é escritor, autor de “A Mosca Azul” (Rocco), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/114415
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