A revolução republicana

09/03/2003
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Cento e quinze anos depois da proclamação da República, os parlamentares brasileiros ainda se tratam por nobres colegas. É como se o Império ainda existisse, com o nome de República. Não é uma questão de cultura parlamentar nem apenas dos parlamentares. No Brasil do século 21, a elite se sente tão distante do povo quanto no século 19. A elite brasileira não é cidadã. A desigualdade entre os ricos e os pobres, seja na renda, na educação, na habitação, no transporte, no lazer, na comida ou nos costumes, é tão grande que eles não sentam à mesma mesa, não conversam os mesmos assuntos, não sentem a cumplicidade cidadã de pertencerem a um mesmo povo. Os parlamentares não se chamam de cidadão deputado, cidadã senadora, porque o Brasil não completou nem sua República nem a abolição da escravatura. Depois da Independência, o Brasil continuou por 70 anos um império escravocrata; em apenas 18 meses, aboliu a escravatura e proclamou a República, e tudo continuou muito parecido. Quase 200 anos após a Independência, os parlamentares continuam nobres, o desemprego substituiu o trabalho forçado, os escravos foram transformados em pobres famintos e a educação continuou para poucos. O regime ficou republicano, mas o Brasil continuou dividido entre uma elite nobre e uma massa plebéia. Da mesma forma que foi abolindo a escravidão, pouco a pouco, a República foi ampliando o direito de voto, permitindo a liberdade de expressão e de organização partidária, mas concentrou a terra em poucas mãos e a educação em poucas cabeças. O legado do governo Lula será completar a República e a abolição. Para isso, é preciso não repetir 1888 e 1889: adiar aquilo que todos esperam - uma República completa, sem exclusão, na qual todos sejam igualmente cidadãos. Nós não fomos eleitos apenas para administrar bem, mas para, administrando bem, fazer a revolução republicana que o Brasil espera há mais de um século. A República não foi completada porque os republicanos não se ligaram ao povo. Como "neonobres", perderam a capacidade de se indignarem diante da realidade da pobreza ao redor, gostaram dos privilégios dos aristocratas, acostumaram-se com as manhas do poder e as exigências da burocracia. Esse é um risco que nós do governo Lula não podemos correr: desligar-se do povo, perder a capacidade de indignação, viciar-se nas lantejoulas do poder e cair nas malhas da burocracia; acostumarmo-nos com a mesma incompleta República e esquecermos que nossa tarefa é completá-la. No Brasil do século 21, a elite se sente tão distante do povo quanto no século 19. A elite brasileira não é cidadã A principal forma de evitar o risco do acomodamento é caminhar sobre as dificuldades do presente sem esquecer o legado que nosso governo deve deixar às futuras gerações. Administrar as dificuldades do presente sem perder os compromissos com os sonhos do futuro. Ter um pé na aritmética e outro na utopia. Lula não foi eleito para implantar ou mudar a estrutura central da economia, nem para construir a igualdade na renda ou no consumo, mas para fazer com que todos sejam iguais na cidadania, completando a República e a abolição. Este será o legado de Lula para o futuro do Brasil. Para completar a abolição será preciso fazer a reforma agrária, intensa, total, radical que o Brasil espera, dentro das características tecnológicas do século 21 e sem desorganizar a produção. Será preciso também criar empregos como forma de encerrar a escravidão e interromper a secular tragédia brasileira de transformar escravos acorrentados e alimentados em desempregados livres e famintos. Para completar a República é preciso garantir uma educação igualitária a todos os cidadãos, o que só é possível por meio de uma escola pública, gratuita e com qualidade para todos. Não é republicana a sociedade que investe praticamente 80 vezes mais na educação privada dos filhos das classes médias -R$ 240 mil- do que na educação pública dos filhos dos pobres -R$ 3.200. Os primeiros gastam R$ 1.000 por mês e ficam até vinte anos recebendo investimentos educacionais. Os outros recebem R$ 800 por ano e ficam em média quatro anos na escola. Isso não é apenas desigualdade, é diferença; e com essa diferença o país não é uma República. O legado de Lula é completar a República e a abolição. O seu papel é liderar o Brasil para tomarmos as medidas necessárias à mudança da realidade nos quatro anos até 2006, criando uma dinâmica em que a revolução republicana continuará nos anos seguintes. Até que, antes do final do governo, o Brasil esteja alfabetizado, todas as crianças estejam frequentando escolas com qualidade crescente e, antes do segundo centenário da Independência, todos os brasileiros tenham uma educação equivalente até pelo menos o final do ensino médio. Isso é possível. Países mais pobres e com mais dificuldades já o fizeram. Nós temos os recursos e sabemos como fazer. É possível se houver empenho e determinação do governo e apoio da sociedade, especialmente dos parlamentares, na hora de votarem os próximos orçamentos. Este é o maior empecilho: convencer os nobres sobreviventes de 1889 de que chegou a hora de investir decentemente os recursos nacionais, para fazer a revolução republicana, que só a educação pública, gratuita e de qualidade para todos é capaz de realizar. Mas não bastam o governo e os parlamentares. Você, o que está fazendo para completarmos a República e a abolição? * Cristovam Buarque, Doutor em economia, é ministro da Educação. Foi reitor da UnB (1985-89) e governador do Distrito Federal (1995-98)
https://www.alainet.org/pt/articulo/107083
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