A guerra e nós

03/02/2003
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Carlos Lessa costuma dizer que o Brasil tirou três bilhetes premiados no século passado: a primeira guerra mundial, a segunda e a crise de 29. O grande salto que o Brasil deu ao longo do século teve que ver com a forma ativa como reagiu às crises externas. Essa atitude foi um diferenciador, que permitiu que alguns países alavancassem seu desenvolvimento a partir dessas crises, enquanto outros foram vitimados pelas crises, por reagirem de forma passiva diante delas. Pode-se dizer que as maiores transformações que o continente havia vivido dividiram os países entre os que se valeram das crises para formular seus próprios projetos e crescer, valendo-se do seu mercado interno, do seu potencial para substituir importações, para fortalecer seus Estados, seus sistemas de seguridade social, para avançar na constituição das classes ligadas ao setor produtivo, para qualificar melhor sua mão-de-obra, para estender seus sistemas de educação e de saúde públicas, para elevar sua auto-estima e sua visão de si mesmos como países e do mundo. A principal diferença em relação ao período mais recente, de posta em prática de maneira generalizada de políticas de reinserção no mercado internacional conforme as políticas neoliberais, é que praticamente todos os países agiram passivamente, abrindo suas economias, desregulando-as, debilitando a capacidade de ação de seus Estados, enfraquecendo seus sistemas públicos de educação e de saúde, restringindo os direitos dos trabalhadores, rebaixando sua auto-estima pela desqualificação do que cada país havia feito em favor dos modelos do centro do capitalismo. Como resultado, tivemos o período em que de forma mais concentrada houve retrocessos generalizados em todos os planos de cada sociedade. A incapacidade para reagir ativamente, com formas de reinserção que permitissem reafirmar a soberania, sob forma de projetos de integração regional, protegendo suas conquistas e encontrando novos modelos de desenvolvimento, levou a esses retrocessos, que produzem atualmente a pior crise do continente desde os anos 30 do século passado. A diferença está na forma de enfrentar as crises externas – formas ativas ou passivas, de adequação dócil às transformações externas ou de reformulação dos projetos internos para permitir o aproveitamento positivo das crises. É nesse sentido que a origem grega da palavra crise contêm ao mesmo tempo a idéia de desestruturação e de possibilidade. Somos vítimas passivas da crise, se nos deixamos levar pelos seus efeitos desestabilizadores ou nos adequamos passivamente, de forma conservadora e recessiva. Crises dessa dimensão não permitem formas tradicionais e superficiais de defesa, que não passam de formas de adequação e de indução dos mecanismos externos de desestruturação, que invadem então o conjunto do corpo social e o corroem. Diante daquela que já aparece como inevitável nova guerra – na verdade, ataque e massacre, pela desigualdade das forças -, não podemos reagir como autoridades econômicas costumam fazer: pensar apenas quanto a duração da guerra poderá afetar os preços dos combustíveis e os seus efeitos econômicos imediatos para o Brasil. Nessa ótica torceríamos para que os milhões de toneladas de bombas destruíssem imediatamente Bagdá, não houvesse nenhum assomo de resistência – e, quem sabe, de vida humana. Essa atitude egoista envergonha a qualquer país que tenha dirigentes que pensem com esses olhos – ou melhor, com esse bolso -, sem atentar para os imensos sofrimentos que serão impostos ao povo vítima dos bombardeios que se anunciam com dez vezes maiores do que aqueles dos ataques de há dez anos. No entanto, a guerra coloca, além desse aspecto humanitário fundamental, a questão da continuação e fortalecimento da hegemonia unilateral dos EUA com sua linha de militarização dos conflitos por todo o mundo. Os EUA querem consolidar a idéia desenvolvida nas suas guerras anteriores – Golfo de 1991, Iugoslávia, Afeganistão, que contra a força não há argumento, que a força cria seus próprios argumentos, que fazem ceder aos fracos, no Conselho de Segurança ou nas outras esferas em que as ameaças do império se fazem sentir, finalmente nas imagens das destruições que são capazes de produzir. Se os EUA saírem fortalecidos de mais esta guerra – desta vez sem o argumento da invasão do Kuait, de "limpeza étnica" ou das represálias aos ataques de setembro de 2001 -, a humanidade estará em muito piores condições do que até aqui neste novo século e se pode esperar que piore ainda muito. Os EUA podem até mesmo sair vitoriosos militarmente, mas países como o Brasil, ainda mais com seu novo governo, estão comprometidos com denunciar e lutar sem quartel para resistir a esse império da força e para construir uma ordem mundial multipolar. Aceitar a guerra se o Conselho de Segurança aprova-la é uma posição aparentemente cômoda hoje, porque nos coloca do lado da legalidade internacional vigente, mas pode nos levar à incômoda posição de aceita-la pela fragilidade da resistência de potências que têm estreitos interesses com o império, inclusive porque dependem dele para manter-se abastecidas de petróleo. O Brasil já denunciou a falta de democracia das estruturas atuais da ONU e a necessidade de democratiza-las. Se a aprovação viesse da Assembléia Geral, se poderia dizer que houve uma aprovação da maioria dos governos do mundo, mas uma aprovação do Conselho de Segurança, em que as cinco maiores potências do mundo, que são ao mesmo tempo os maiores fabricantes e exportadores de armas e protagonistas das maiores guerras que a humanidade conhecei, é submeter-se a uma estrutura antidemocrática e ficar reféns de interesses não comprometidos com a paz e a resolução pacífica e justa dos conflitos mundiais – como prega o Fórum Social Mundial. Diante da guerra, voltaremos a enfrentar o dilema entre a esperança e o medo, na frente externa, mas também na frente interna. Afirmarmos nossas posições soberanas, sem medo de represálias confirmará a nova postura internacional do Brasil, como líder na luta pela construção de uma outra ordem mundial, justa e pacífica. Mas também temos que nos valer da guerra para fazer dela não um elemento que suscite a consolidação da nossa situação de globalizados, de país que sofre a crise, sem definir sua própria linha de ação que não aquela tradicional, defensiva. Esta consistiria, por exemplo, em elevar ainda mais a que já a taxa de juros real mais alta do mundo, que representar ficar escondido atrás da moita, esperando a guerra e seus efeitos mais negativos passar. Quando soubemos fazer das crises bilhetes premiados, foi quando reagimos com políticas de proteção da nossa economia e de criação de espaços novos de desenvolvimento. Quando protegemos nossas divisas politicamente e não simplesmente com juros mais altos, quando reorientamos nosso crescimento para o mercado interno, que tem que ser o pilar decisivo da nossa expansão, transformando as necessidades reprimidas da massa da população em fator de vantagem e não de fraqueza. Para isso temos que reagir como podemos estar certos que as grandes potências e aquelas que, situadas como nós, no campo da semiperiferia, como a China e a Índia farão, protegendo-nos e não fragilizando-nos mais, controlando e não afrouxando ainda mais a circulação de capitais, centralizando o câmbio como medida normal em tempos de guerra, definindo-nos não apenas como membros firmes do campo da paz, mas também do desenvolvimento e de um mundo multipolar, de que o fortalecimento do Mercosul e nossa política de diversificação de relações internacionais são elementos fundamentais. Até mesmo porque uma vitória norte-americana será o prenúncio de outras guerras, como a nova doutrina de segurança dos EUA anuncia abertamente e não descansaríamos de ficar escondidos atrás de moitas esperando um mundo em que as condições econômicas seriam "normais" para que somente ai colocássemos em prática o programa de Lula, com a baixa da taxa de juros. Seria uma busca de Sísifo de condições que nunca se dariam, repetindo dramaticamente a busca do crescimento da torta para depois reparti-la ou da estabilidade segura para então retomar o desenvolvimento. Estamos em um período internacional de turbulências, porque produto da confluência entre recessão prolongada do capitalismo e política belicista da superpotência mundial. Temos que afirmar nossos projetos de mudança nesse cenário, construindo nossos próprios espaços de crescimento interno e externo. Lutar intransigentemente para que a guerra não aconteça. Mas se ela vier, com as destruições, mortes e sofrimentos que se anunciam, fazer pagar o preço mais caro, moral e politicamente, a seus responsáveis e avançar na construção de um Brasil da esperança contra o medo, com um projeto que não reaja simplesmente aos acenos do mercado e da guerra, mas faça das crises alavancas para um país soberano, justo e pacífico.
https://www.alainet.org/pt/articulo/106887
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