A Alca e a exploração das mulheres

29/09/2002
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
"Após trabalhar um ano na fábrica, comecei a sentir dores no pulso, pescoço e costas. Tenho ambos os braços afetados. Tínhamos que fazer movimentos rápidos. Sabíamos que estávamos prejudicando a saúde, mas a empresa não se importava; exigia o cumprimento das cotas de produção. Uma vez eu perguntei ao médico: por que não me dão uma licença? Ele explicou que o chefe de pessoal havia dito que era simplesmente para nos ignorar, que não tínhamos nada e que não precisávamos ser afastadas. Eu perdi o emprego adoentada, sem seguridade alguma, sem nada". Beatriz Reyna Vázquez, operária. "As operárias se queixavam de dores musculares. Não podiam levantar sequer coisas pequenas. Diziam-me que era devido aos movimentos repetitivos. Também reclamavam de irritações no nariz, garganta, olhos. Tudo devido aos solventes químicos. Em agosto de 1995, cinco mulheres perderam a gravidez na fábrica. Não se permitiu que fossem ao médico já que estavam no turno. A empresa orientava a dar aspirinas para acalmar a dor e para que elas voltassem ao trabalho". Isabel Morales, enfermeira. "Em 1996 houve cinco perdas de gravidez num mês. Entre 96/97 houve 14 nascimentos com defeitos ou graves problemas; 13 morreram na infância ou logo após o parto". Francisco Mercado, médico. Estes chocantes depoimentos foram prestados em dezembro de 2000 por funcionárias da Custon e da Auto Trim, multinacionais instaladas em Hermoso e Matamoros, no México. Um grupo de 20 operárias, após enfrentar seis meses de perseguições, conseguiu atravessar a fronteira para dar o seu testemunho à Oficina do Trabalho no Texas. O corajoso relato ajudou a desmascarar a propaganda sobre as vantagens do Nafta, o acordo que engloba EUA, México e Canadá desde 1994. Ele também serve de potente alerta aos demais trabalhadores do continente, especialmente as mulheres, sobre os riscos futuros da Alca. O próprio governo norte-americano, que faz de tudo para impor este tratado, não esconde sua intenção de estender o Nafta ao restante do hemisfério. O modelo das maquiladoras – das corporações que exploram mão-de-obra barata e gozam de outros benefícios do chamado "livre comércio" para elevar seus lucros – seria copiado na região. Além da ameaça à soberania das nações, do ataque às normas democráticas e da violenta regressão social, a Alca teria efeitos desastrosos para as mulheres. As intensas lutas travadas pela igualdade de gênero, que marcaram as últimas décadas, sofreriam inevitável retrocesso com sua vigência. PROVA DE GRAVIDEZ A Rede de Solidariedade das Maquiladoras, uma organização não-governamental sediada no Canadá, tem recolhido provas contundentes deste desastre. Alguns relatos, como os citados acima, impressionam pela crueldade. No México, 70% dos trabalhadores das maquilas são mulheres, a maioria entre 16 e 24 anos. "Os gerentes usam uma série de razões para explicar a sua preferência por trabalhadoras jovens: 'destreza manual', 'paciência', 'cooperação', etc. Entretanto, o uso de mão de obra feminina é claramente motivado pelo desejo de diminuir custos. Elas estão concentradas nos trabalhos piores pagos, de maior intensidade e que requerem menor qualificação", afirma o texto "Maquiladoras: antecipação da área de livre comércio". O mesmo documento afirma que "o trabalho nas maquilas é intensivo, repetitivo e perigoso para a saúde dos trabalhadores, em particular das mulheres. Para sobreviver com os baixos salários, trabalham mais de 12 horas sem o pagamento das horas extras. Muitas mulheres 'escolhem' o turno da noite para poder ficar com seus filhos durante o dia. O uso inadequado de produtos químicos, muitos deles proibidos nos EUA e no Canadá, é uma das causas principais de problemas de saúde, em particular da saúde reprodutiva. As mulheres trabalham sem equipamentos de proteção, se queixam de dor de cabeça, vômitos e palpitações cardíacas. As substâncias químicas geralmente não têm identificação; quando têm, são em inglês". Nos últimos anos, as péssimas condições de trabalho no lado mexicano da fronteira resultaram no registro de 386 casos de anencefalia (crianças nascidas sem cérebro). Em Matamoros, mulheres que trabalham na Mallory Capacitators deram a luz a 54 crianças com defeitos múltiplos. Segundo Arturo Solís, do Centro de Estudos da Fronteira e de Promoção dos Direitos Humanos, "cerca de metade das 300 maquiladoras de montagem da região fronteiriça de Tamaulipas descarregam substâncias químicas tóxicas diretamente no Rio Grande, a fonte primária de água potável da população local". Segundo Carmen Valadez, da ONG Factor X, "os direitos da mulher são violados desde o momento em que ela vai procurar o emprego". A maioria das fábricas exige certificado médico de que ela não está grávida. "Para não pagar a licença maternidade, algumas empresas distribuem uma pílula que proporciona menstruações mensais. Muitas fábricas exigem provas a cada três meses de que as trabalhadoras não estão grávidas". Betty Robles, da Rede de Trabalhadoras Mexicanas das Maquilas, confirma esta aberração: "As mulheres são forçadas a mostrar seu absorvente higiênico sujo para provar que não estão grávidas". Na avaliação da ONG canadense, a implantação do Nafta só trouxe prejuízos às mulheres mexicanas. "As trabalhadoras sofrem discriminação e assédio. São comuns exames forçados de gravidez e a demissão de mulheres grávidas. A falta de creches, as jornadas excessivas e o trabalho extra forçado negam à mulher a possibilidade de cuidar dos filhos. O trabalho noturno e a falta de transporte expõem as trabalhadoras à violência", garante o boletim de abril de 2001 da Rede de Solidariedade das Maquiladoras. Já o boletim de dezembro passado revela que mais de 300 operárias, entre 15 e 25 anos, foram violadas e assassinadas em Ciudad Juárez. Com o inchaço da região fronteiriça, tornada pólo de exploração, houve a explosão da miséria e da criminalidade. A falta de segurança tornou-se um grave problema nestas áreas empobrecidas. O boletim de junho relata uma marcha de cinco dias e 370 quilômetros, entre Chihuahua e Ciudad Juárez, contra os estupros e as humilhações. As maquiladoras divulgaram que as vítimas eram "prostitutas", negando que a maioria trabalhava no período noturno e foi violentada na saída das fábricas. Além da denúncia da barbárie reinante nestas empresas, a Rede promove ações de solidariedade. A mais recente tem como slogan "basta de moda venenosa". Alerta que os jeans vestidos nos EUA e Canadá são fabricados em maquiladoras que usam "mão- de-obra barata e estão submersas em produtos químicos". A campanha já afetou as vendas de marcas famosas, como Levi's e Guess. "Se os jovens conhecessem os impactos nas trabalhadoras mexicanas e no meio ambiente, saberiam que o jeans tóxico não é moda", argumenta Dara O'Rourke, especialista em saúde da ONG. RISCO DA MATERNIDADE Outro segmento que está engajado na luta contra a exploração das mulheres é o do movimento sindical, que acusa as maquiladoras de golpearem históricas conquistas trabalhistas. A legislação mexicana garante 12 semanas de licença maternidade; direito à interrupção diária de meia-hora para amamentar os filhos; e de 16 dias de licença não remunerada para cuidar do recém-nascido. Atualmente, as corporações tentam derrubar esta legislação e fazem de tudo para burlá-la. "Para evitar os custos destas disposições legais, exigem que as empregadas apresentem provas de gravidez. Há casos de mulheres que ficaram grávidas e foram obrigados a renunciar", denuncia um documento da Ciosl, a principal central sindical mundial. O próprio Departamento do Trabalho dos EUA formalizou denúncia, no início de 1999, contra empresas norte-americanas que obrigavam mexicanas a apresentar prova de gravidez como condição prévia para a contratação. Também a OIT tem manifestado apreensão com os crescentes casos de grávidas demitidas, de degradação familiar e de violência. "O assédio sexual nos locais de trabalho está muito difundido", afirma recente relatório da Organização Internacional do Trabalho. Segundo a OIT, cerca de 5 milhões de crianças são obrigadas a trabalhar para ajudar as famílias. Somente seis em cada 10 crianças terminam a escola primária e 1,7 milhão de jovens em idade escolar não vão às aulas porque são forçadas a trabalhar. A zona fronteiriça é a única região do México onde as mulheres predominam no mercado de trabalho, mesmo em setores considerados tradicionalmente masculinos, como na fabricação de aparelhos elétricos. Em 1999, a proporção de mulheres neste setor era de 82,4%, contra 36,3% em nível nacional. Segundo a OIT, a verdadeira razão desta presença não é a igualdade de oportunidades. As maquiladoras procuram mulheres 15 e 24 anos, solteiras, sem filhos e que tenham concluído a instrução primaria. "Elas apreciam sua resistência física e sua disposição para suportar longas horas de trabalho monótono em circunstâncias de conforto rudimentares", afirma o documento "A indústria maquiladora no México". As próprias corporações empresariais não escondem as razões da sua preferência pelo trabalho feminino. Recente campanha publicitária de umahÞ¦
https://www.alainet.org/pt/articulo/106438
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS