Soberania sim, ALCA não

Que outra integração é possível?

29/06/2002
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Os extraordinários desafios de reduzir as disparidades sociais, eliminar as vulnerabilidades externas e realizar o potencial da sociedade brasileira exigirão políticas ativas do Estado nessas áreas (...) A sociedade brasileira deve, portanto, se mobilizar desde já em defesa de preservar direito soberano de ter o Brasil uma política de desenvolvimento, que tem de ser constituída por instrumentos de política comercial, industrial e tecnológica que uma futura ALCA viria a impedir definitiva e legalmente. Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, 2002

O Tratado da ALCA não tem uma finalidade pública, eqüitativa ou puramente técnica, nem visa a sustentabilidade alimentar, comercial, produtiva e ambiental das nações que viriam a compô-la. Este tratado corresponde à estratégia dos EUA para superar seu problema de sobreprodução, subordinar os espaços geoeconômicos do continente às megaempresas norte-americanas e criar um bloco regional dominado pelos EUA, capaz de suplantar a competição da União Européia e do bloco asiático na disputa pela hegemonia econômica, geopolítica e cultural do planeta (Jubileu Sul-Américas, 2000). A base que foi adotada para as negociações é o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN), no qual os interesses que prevalecem são claramente os dos EUA.

Entendida assim, a ALCA se contrapõe a qualquer pretensão dos países da América Latina e Caribe (ALC) a adotarem projetos próprios de desenvolvimento visando implantar efetivos direitos socioeconômicos, políticos e ambientais que superem suas desigualdades sociais, eliminem sua vulnerabilidade externa e capacite-os para uma integração justa e eqüitativa com as outras nações do Continente. O projeto da globalização neoliberal para o Continente, consubstanciado no Tratado da ALCA, é a perpetuação da condição de periferia do sistema hemisférico e de subordinação total dos países e dos povos aos interesses da potência estadunidense. Os instrumentos para isto incluem a anexação comercial e produtiva (via liberalização do comércio e dos investimentos), a dependência de capitais externos (via o círculo vicioso sem-fim do endividamento) e a submissão militar (via a instalação de bases militares e de serviços de inteligência estadunidenses em todo o continente). Um programa de luta em defesa da soberania e da solidariedade entre os povos do continente tem, portanto, que romper com estes três vínculos estranguladores.

O que propomos abaixo não é uma ALCA reformada, mas um outro tratado, centrado na idéia de uma integração entre povos irmãos, que o Tratado estimule a respeitar-se mutuamente e a buscar, na superação das desigualdades e das injustiças, na partilha proporcional dos seus recursos e talentos, e na proporcionalidade da distribuição dos benefícios dos frutos coletivos do seu trabalho, um caminho de prosperidade, abastança, co-responsabilidade com o destino comum e felicidade sustentável para seus povos.

Este breve texto, dirigido sobretudo aos candidatos de oposição do Brasil nas eleições presidenciais de 2002, esboça os elementos básicos para um outro projeto de integração continental a partir do exame crítico dos temas centrais do tratado da ALCA, ora em negociação. É fundamental que os candidatos compreendam que a ALCA “vem tomando forma nas negociações que se realizam em nove grupos negociadores (...) onde, devido à fragilidade e dependência dos países do Caribe e da América Central e à desarticulação e fraqueza econômica de muitos Estados da América do Sul, pode-se imaginar que as propostas norte-americanas apresentadas nesses grupos terão grande possibilidade de êxito” (Guimarães, 2002: 3).

Esta é a razão pela qual a 9a. Plenária Social da Campanha para o Plebiscito sobre Soberania e ALCA decidiu em favor de duas questões separadas: uma, sobre a continuação das negociações, a outra, sobre a conveniência de o Brasil vir a assinar o tratado. O Embaixador é categórico: quem está envolvido nas negociações já está se comprometendo com os termos do Tratado e dificilmente escapará de assiná-lo. Seu conselho é que o Brasil recuse o molde inteiro da ALCA e se retire imediatamente das negociações. É o que queremos ouvir da população no Plebiscito de setembro de 2002.

Vale lembrar o papel relevante que o Brasil tem o potencial de desempenhar nas diversas esferas geopolíticas - da América do Sul ao Sul Global1. Uma vitória das oposições no Brasil resultaria numa nova configuração de forças, capaz de iniciar um movimento emancipatório multinacional que aponte, afinal, para um modelo de organização da sociedade e da economia voltado para a erradicação dos fatores que geram fome e da pobreza, desigualdade e opressão, e para a construção de um mundo de respeito aos direitos, justiça, irmandade e paz. Na raiz desta construção estão as iniciativas qualificadas sob o termo de socioeconomia solidária, que envolve diferentes formas de trazer a economia para a mão das gentes, transformá-la em genuína “gestão da casa”, ou melhor, das várias casas que nos abrigam. Os outros povos empobrecidos da América Latina e Caribe assistem à possibilidade da vitória das oposições no Brasil com o coração batendo de esperança. Este é o tamanho da responsabilidade que hoje pesa sobre o PT e os outros partidos de oposição.

Agradecemos os autores do documento da Aliança Social Continental, Alternativas para as Américas (ASC, 2002b), que serviu de inspiração e referência para este texto.

DIREITOS HUMANOS

Segundo o direito internacional, a primeira obrigação dos governos é respeitar e

garantir os direitos humanos das pessoas e do conjunto da sociedade, como definidos nas convenções internacionais. Contudo, os governos continuam ignorando estes compromissos ou tratando-os como algo à parte dos assuntos econômicos. Daí resulta que a tendência atual a liberalizar o comércio e o investimento tem enfraquecido as economias e exacerbado a exclusão de amplos setores da população do continente. O processo da ALCA dá continuidade a esta tendência ao não incluir um grupo negociador oficial sobre direitos humanos. Uma outra integração terá como principal referência os direitos humanos e sociais, assim como o direito dos povos ao desenvolvimento, consagrado nas convenções internacional, e rejeitará os dogmas do livre mercado ou do mercado auto-regulado.

ALCA

  • O rascunho do Tratado nada diz sobre direitos humanos. A declaração da Terceira Cúpula das Américas em Quebec, abril de 2001, aponta que só os países que tenham uma democracia poderão participar no processo da ALCA. Contudo, a democracia não está claramente definida nem fica claro se uma “antidemocracia” ficaria excluída dos benefícios da ALCA ou só das reuniões de cúpula.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • incluiria uma cláusula democrática que garanta que cada país da ALCA deve ter instituições democráticas e sistemas jurídicos capazes de garantir direitos humanos amplamente definidos, que incluam tanto os direitos econômicos, sociais, ambientais, culturais, civis e políticos como aqueles relacionados com as condições adequadas para o desenvolvimento dos potenciais individuais e coletivos, a equidade de gênero, de raça e de comunidades e culturas;

  • obrigaria as nações signatárias do Tratado a assinar e ratificar os principais convênios e instrumentos internacionais e regionais de direitos humanos e a garantir que estes acordos tenham prioridade sobre as regras comerciais e de investimentos;

  • garantiria o direito das vítimas de violação dos direitos humanos a terem atendimento legal rápido e efetivo que leve à restituição, compensação, reabilitação e à garantia de que o ato ofensivo não se repetirá;

  • fortaleceria e reformaria o Sistema Interamericano de Direitos Humanos assegurando: que as vítimas ou seus representantes possam participar de todos os passos do processo na Corte Interamericana, tornando mais efetiva a participação das organizações da sociedade civil; que os juízes e os membros de comissões sejam independentes, idôneos e competentes.

TRABALHO

Os negociadores se negaram a criar um grupo negociador sobre trabalho. A liberalização do comércio e do investimento permite às companhias mover seus centros produtivos, seu capital e seus produtos livremente e sem fronteiras. Com a ALCA os trabalhadores não terão direito equivalente aos atribuídos aos capitais. Para eles permanecerão as fronteiras. Os patrões terão cada vez mais poder para baixar os custos de produção, lançando os trabalhadores uns contra os outros. Assim também os governos que competem pelo investimento estrangeiro enfrentarão a pressão de fingir que não viram nada quando as empresas violarem direitos trabalhistas. Para garantir os direitos trabalhistas não basta uma cláusula trabalhista: se não se modifica integralmente a orientação destes acordos, os direitos reconhecidos nesta cláusula ficarão no papel.

ALCA

  • a única disposição relevante no rascunho do Tratado aparece no capítulo sobre Investimentos, e exorta os países a “esforçar-se por garantir que os níveis trabalhistas internos não sejam relaxados a fim de atrair o investimento”. Esta disposição não é obrigatória e, por isso, não tem nenhuma força.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • exigiria que os países se comprometam a respeitar os direitos trabalhistas básicos reconhecidos a nível internacional;

  • preveria a faculdade da OIT de verificar o seu cumprimento;

  • facultaria os sindicatos e outras organizações da sociedade civil a apresentarem queixas sobre violações; caberia à OIT investigar e assistir o país para que esses direitos se cumpram;

  • caso isto não desse resultado, seria aplicado o mecanismo de instrumentação de sanções comerciais;

  • se o perpetrador for uma empresa, as sanções serão dirigidas à empresa;

  • só em caso de se descobrir que um governo é cúmplice ativo e recorrente da violação de direitos seriam aplicadas sanções mais generalizadas a todas as exportações de um país em particular;

  • seriam criados mecanismos que atendam às necessidades de ajuste, inclusive o financiamento compensatório, a capacitação, o desenvolvimento de infraestruturas e os incentivos para a criação de empregos.

MEIO AMBIENTE

As políticas de liberalização do comércio e do investimento não levam em consideração os custos ambientais das atividades econômicas, o que estimula uma maior utilização de energia, a sobre-exploração dos recursos naturais e os prejuízos à biodiversidade. Os esforços para promover um desenvolvimento sustentável ficam expostos à qualificação de obstáculos para o comércio. Não existe um grupo negociador oficial sobre o meio ambiente, ainda que haja muitas áreas do rascunho do Tratado que teriam sérias implicações ambientais.

ALCA

  • não esclarece se os acordos ambientais internacionais terão prioridade sobre as regras comerciais;

  • assim como no TLCAN e na OMC, exige que os países reúnam certa quantidade de provas científicas para estabelecer padrões e para demonstrar que as leis e as regulações são necessárias; isto livra, por exemplo,os produtores de transgênicos do ônus da prova e inverte o princípio da precaução! (Segundo este princípio, em caso de dúvida, que se ponha em prática a ação mais cautelosa);

  • no capítulo sobre investimentos há um dispositivo que exorta os países a “esforçar-se por garantir”que os níveis ambientais internos não sejam relaxados com o objetivo de atrair investimento. Mas este dispositivo não é obrigatório e, portanto, não tem sentido concreto;

  • ignora os custos ambientais que muito provavelmente ocorreriam devido ao aumento da exploração florestal, da mineração, dos transportes, da extração de combustíveis fósseis, pesca e outras atividades que danificam o meio ambiente;

  • entre os riscos do Tratado no que se refere a florestas estão: acelerar o desmatamento para abrir espaços industriais; enfraquecer a proteção contra espécies introduzidas e contra organismos geneticamente modificados (OGMs); impedir que os países usem ferramentas políticas para a conservação dos seus recursos naturais .

  • faculta aos governos recusar-se a outorgar patentes por motivos ambientais, mas só quando o uso comercial das invenções cause “sérios danos” à natureza ou ao ambiente;

  • proíbe os impostos sobre a exportação e os preços-base de exportação, que podem ser usados para conservar recursos não renováveis.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • daria prioridade aos acordos ambientais sobre as regras do comércio e do investimento;

  • exortaria os países a fundar suas regulações ambientais no princípio da precaução;

  • obrigaria as empresas estrangeiras a cumprir os níveis ambientais mais elevados, e a compartilhar tecnologias que preservem o ambiente;

  • subordinaria os acordos de comércio e investimento a leis e políticas sobre conservação da biodiversidade e das florestas; eliminaria subsídios para combustíveis fósseis e para desmatamento; criaria incentivos para conservação dos solos e recursos naturais e declararia uma moratória da exploração de minas em áreas ecológica e culturalmente significativas;

  • proibiria as patentes de formas de vida e do conhecimento a elas associado; protegeria os direitos coletivos das comunidades locais em relação à conservação, semeadura e cultivo da biodiversidade;

  • facultaria aos países o direito de regular empresas e investidores para garantir o cumprimento dos objetivos do desenvolvimento sustentável.

INVESTIMENTOS

O objetivo deste grupo negociador é criar um ambiente estável e previsível de proteção aos investidores internacionais. O ponto de vista é o dos investidores, sobretudo das grandes corporações transnacionais, e não o das Nações nem o das necessidades dos povos mais empobrecidos. Também não é o da redução ou erradicação da fome e da pobreza no continente. E mais. A base adotada pelos negociadores é o capítulo controvertido sobre investimentos do TLCAN. Com base nele, investidores privados fizeram dezenas de processos por danos resultantes de ações governamentais que supostamente prejudicaram o valor do seu investimento. Uma empresa estadunidense obteve que o governo mexicano permitisse a construção de uma instalação de lixos altamente perigosos, depois que um município se recusou a aceitar essa construção. Neste momento, usando a mesma lógica e antecipando o que será a ALCA, a empresa Bechtel, dos EUA, que perdeu o controle das águas de Cochabamba por pressão popular, está exigindo do governo boliviano uma “indenização” de US$ 25 milhões por lucros que pretendia obter nos próximos anos com o investimento de US$ 1 milhão. Tais exemplos comprovam que a ALCA visa outorgar às empresas privadas uma soberania superior à das nações e dos povos, e dar fundamento legal a esta aberração.

ALCA – O rascunho da ALCA, modelado quase palavra por palavra no do TLCAN:

  • outorga direitos especiais aos investidores estrangeiros para que possam fazer processar os governos através de painéis de arbitragem reunidos secretamente;

  • define expropriação de forma ampliada, incluindo as diretas e as indiretas; isto permitiria que os investidores estrangeiros exigissem compensação por qualquer ato governamental, incluídas as leis de interesse público que afetam os seus lucros privados;

  • proibiria o controle sobre os fluxos de capital;

  • proibiria ‘requisitos de desempenho’ aos investimentos estrangeiros, inclusive a obrigação de comportar-se de maneira social e ambientalmente responsável;

  • exigiria tratamento igual para investidores estrangeiros e nacionais;

  • não contempla redução do endividamento.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • reconheceria o direito soberano das Nações a regular os investimentos a fim de que contribuam para a promoção de um desenvolvimento nacional justo e sustentável; sem que isto aconteça, será impossível realizar um desenvolvimento continental justo e sustentável das Américas;

  • reconheceria o direito soberano das nações a proteger sua economia interna e as empresas nacionais;

  • as disputas com investidores estrangeiros seriam resolvidas por tribunais do país hospedeiro, para que os cidadãos afetados pelas decisões possam participar. Só depois de esgotados os procedimentos nacionais poderia o investidor estrangeiro apresentar queixa a um tribunal internacional;

  • não permitiria aos investidores estrangeiros fazer processos contra leis de interesse público. Se um governo expropriar diretamente os bens de um investidor estrangeiro, a compensação seria determinada por leis nacionais, considerando a quantidade de riqueza extraída do país enquanto durou o investimento;

  • outorgaria a grupos cidadãos e a todos os níveis de governo o direito a processar investidores por violação do Tratado e criaria obrigação legal de comportamento social e ambientalmente responsável;

  • estabeleceria um imposto internacional sobre intercâmbio de divisas visando reduzir a especulação e gerar um fundo de desenvolvimento socioeconômico, que seria administrado por uma agência da ONU apoiada pela sociedade civil do país hospedeiro. Suas autoridades poderiam regular os fluxos de dinheiro para dentro e para fora do país, e de canalizar o investimento para as atividades prioritárias segundo o projeto nacional de desenvolvimento;

  • os governos teriam a faculdade de impor requisitos de desempenho aos investidores para que colaborem na criação de um contexto macroeconômico adequado, transfiram tecnologia apropriada e apóiem metas sociais, como emprego, proteção de direitos trabalhistas e respeito aos padrões ambientais;

  • reconheceria que há desigualdades entre países, estimularia as concessões dos sócios mais poderosos e permitiria aos governos promover setores estratégicos;

  • cancelaria imediatamente as dívidas bi e multilaterais impagáveis de países de alta incidência de pobreza – Argentina, Bolívia, Equador, Guiana, Honduras, Nicarágua, Haiti, Jamaica e Peru;

  • estimularia a realização de auditorias públicas das dívidas dos outros países do continente, cujas recomendações serviriam de base para processos justos e eqüitativos de renegociação, que reconheçam a co-responsabilidade das elites locais e dos credores internacionais. Seriam consideradas ilegítimas as dívidas cujo pagamento implique o empobrecimento ainda maior dos povos, as contraídas com fins fraudulentos ou para projetos sem benefícios socioeconômicos comprovados, e aquelas que cresceram quando os países do Norte elevaram unilateralmente as taxas de juros;

  • formaria um painel neutro de arbitragem internacional cujos árbitros se alternariam, ou uma corte de insolvência no seio das Nações Unidas. Ambos teriam por finalidade garantir processos de arbitragem justos e transparentes, a fim chegar a acordos sobre cancelamento de dívidas. Qualquer tribunal criado sob os auspícios do FMI seria inaceitável, posto que o Fundo também é credor.

AGRICULTURA

O objetivo oficial deste grupo negociador é eliminar progressivamente as tarifas agrícolas, as barreiras não tarifárias e os subsídios à exportação, assim como garantir que os níveis de segurança alimentar que se estabeleçam não sejam restrições disfarçadas ao comércio. Esta abordagem tem um viés mercantil e não leva em conta a necessidade de que o setor agrícola apóie funções sociais essenciais, como superar a fome, garantir a segurança alimentar e proteger trabalhadores e comunidades rurais da volatilidade dos mercados internacionais. Medida recente do governo dos EUA concedendo amplos subsídios de proteção à produção e à exportação agrícola, e sua indisposição em incluir bens agrícolas na negociação revelam sua política de “dois pesos, duas medidas”: liberdade para os mercados em que os EUA podem facilmente prevalecer, e restrições e proteções para aqueles em que países menos industrializados levariam vantagem. Limitar uma área de livre comércio a bens industriais num contexto de grande assimetria na composição da pauta de exportação dos diversos participantes, como ocorre nas Américas, seria profundamente desfavorável aos países que dependem principalmente ou bastante das suas exportações de bens agrícolas (Guimarães, 2002: 2).

ALCA – os termos do Tratado estão modelados nos da OMC – Organização Mundial do Comércio, ainda que algumas propostas busquem levam a liberalização ainda mais longe:

  • os termos que estão sendo negociados arriscam que os programas legítimos que promovem a segurança alimentar nacional sejam considerados barreiras comerciais e, portanto, condenados;

  • não leva em conta a necessidade da reforma agrária;

  • adota critérios estreitos de competitividade para a inclusão de produtos a liberalizar, sem incluir o prejuízo social ou a insegurança alimentar que implica. O rascunho do Tratado não prevê regras sobre programas de ajuda alimentar, deixando uma lacuna perigosa, como demonstra o caso recente da doação de milho geneticamente modificado à Bolívia, em violação às leis locais que proíbem o cultivo e a venda de produtos agrícolas geneticamente modificados;

  • faz referência às disposições comerciais agrícolas da OMC. O novo turno de negociações da OMC busca reduzir substancialmente os subsídios agrícolas, enquanto os EUA agem em sentido inverso a este;

  • exigiria que os países usassem padrões sanitários e fito-sanitários internacionais ou sub-regionais visando torná-los compatíveis com os dos outros países da ALCA. Só permitiria adotar padrões mais estritos quando houver uma justificação científica.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • reconheceria do direito dos governos à soberania alimentar, entendida como o direito a proteger a maioria dos seus produtores, sobretudo os médios e pequenos e a agricultura familiar, especialmente quando não protegê-los implique em transtornos sociais;

  • proporia uma reforma agrária que legitime os direitos de propriedade individual, associativa e cooperativa dos pequenos produtores e dos trabalhadores rurais sem terra, e respeite os direitos tradicionais dos povos indígenas a viver coletivamente em suas terras;

  • reconheceria o direito soberano dos países a excluir de todo acordo de liberalização produtos sensíveis do ponto de vista social;

  • reconheceria o direito soberano dos países produtores agrícolas a coordenar-se para evitar que o mercado de exportações se sature de bens idênticos;

  • reconheceria o direito soberano dos países de estabelecer os subsídios que lhes pareçam necessários, sobretudo se dirigidos a apoiar os pequenos e médios agricultores e pescadores e a promover a produção agrícola e a pesca individual, associativa e cooperativa que seja social e ambientalmente sustentável. Os subsídios não deveriam ser baseados apenas na quantidade de terra que possuem, critério que só estimula a concentração da propriedade;

  • desenvolveria os padrões sanitários e fito-sanitários por meio de consultas públicas, visando garantir uma alta qualidade e segurança sem deixar os pequenos produtores e os produtores de alimentos orgânicos fora do negócio ao impor-lhes padrões que favorecem injustamente a megaindústria ou a agricultura química intensiva. Apoiaria a produção orgânica, o estudo de impacto sobre a saúde e a biodiversidade de produtos transgênicos e sua etiquetação.

COMPRAS GOVERNAMENTAIS

O propósito oficial deste grupo negociador é incrementar oportunidades a que os investidores estrangeiros tenham acesso e lucrem com os mercados de compras governamentais em todo o Continente. Esta abordagem reduziria a faculdade dos governos de usar as contratações para aquisições e obras públicas como instrumentos para promover metas sociais e ambientais. Em seu lugar, os contratos apoiados por dinheiro dos contribuintes seriam sujeitos a critérios estreitos de livre mercado – a vitória será dos mais fortes. A pretensão norte-americana é que as regras da ALCA se apliquem não só em nível federal mas também aos governos estaduais e municipais. Isto significa mais uma imposição de governância de cima para baixo. As regras que são boas para os protagonistas da globalização do capital seriam impostas até ao nível mais local de governo, roubando uma vez mais a soberania da população de definir seus próprios caminhos de desenvolvimento. Em contexto democrático, comprar de quem, estimulando postos de trabalho para quem, valorizando os produtos de quem, adotando que política de preços - tudo isto são decisões que deveriam caber à população de cada município e estado, em acordo com seus respectivos governos. A lógica da ALCA é inversa: as decisões vêm de cima, em benefício dos agentes econômicos mais fortes e capazes de oferecer os preços mais baixos.

ALCA

  • impediria que os governos dessem preferência a firmas locais na outorga de contratos;

  • proibiria os governos de avaliar os fornecedores com critérios distintos aos de preço e qualidade, pois considera que qualquer outro critério representa “barreiras desnecessárias ao comércio”. Assim, mesmo que as avaliações não sejam discriminatórias, podem ser rebatidas como barreira desleal ao comércio;

  • proibiria as políticas que discriminem qualquer país da ALCA no comércio de bens ou serviços (exemplo, as sanções antiapartheid contra a África do Sul nos anos 80 estariam proibidas);

  • como noutros acordos comerciais, o rascunho do Tratado da ALCA contém propostas de exceção da regra mercantilista para serviços públicos particularmente sensíveis, como aplicação da lei, segurança nacional, seguro social e de desemprego e pensões. Mas, no contexto real das negociações, a probabilidade que tais propostas passem é pequena.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • reconheceria o direito soberano dos governos nacionais, estaduais e municipais de decidir de quem comprar e com que critérios. Na perspectiva da socioeconomia solidária, reconheceria o direito deles à opção de comprar preferencialmente de empreendimentos de mulheres ou de redes de produção associativa, autogestionária e ambientalmente sustentável, e de comércio justo;

  • reconheceria o direito soberano dos países de dar prioridade a firmas nacionais sobre fornecedores estrangeiros, se estes a julgarem de interesse para as metas socioeconômicas nacionais. Contudo, proporia medidas para evitar uma carga excessiva sobre os recursos públicos, como fixar, para os fornecedores nacionais de setores que se escolheu priorizar, uma percentagem máxima sobre o preço oferecido pela menor cotização internacional de igual qualidade;

  • permitiria aos governos, em suas políticas de compras, atender às questões de direitos humanos e proteção ambiental;

  • adotaria critérios de licitação não limitados a preço e qualidade; também incluiria os tipos de tecnologia a utilizar, o número de empregos a gerar, os salários a pagar e o apoio a ser concedido a pequenos e médios empreendimentos, sobretudo os que são autogestionários;

  • facultaria a cada país o direito de elaborar a lista de serviços públicos que deveriam estar reservados ao Estado.

ACESSO AO MERCADO

O propósito oficial deste grupo é estabelecer regras para eliminar progressivamente tarifas, barreiras não tarifárias e outras medidas que restringem o comércio. A intenção de fundo, porém, é restringir o direito soberano dos governos de colocar em práticas políticas nacionais de desenvolvimento. A aberração maior está em dar direito irrestrito aos investidores estrangeiros de entrarem no mercado que desejarem, seguindo apenas a sua estreita lógica corporativa, sem obedecerem às prioridades do projeto nacional de desenvolvimento. O princípio reitor é o do “tratamento nacional”, que implica que os governos devem tratar os investidores estrangeiros, os investimentos e os produtos pelo menos tão favoravelmente quanto tratam os investidores nacionais. Seus promotores argumentam que o tratamento nacional é garantia de não discriminação e de justiça. Contudo, o tratamento igual entre partes desiguais só pode exacerbar as desigualdades, tanto no interior dos países como entre as nações do continente. Esta proposta pode ser comparada com a de dar-se a um visitante em casa alheia os mesmos direitos e o mesmo tratamento que os habitantes da casa, inclusive em relação à esposa do pai da família... Que espécie de justiça é esta?

ALCA

  • eliminaria todas as tarifas em 10 anos no máximo, independentemente da situação concreta e das necessidades dos diferentes países signatários;

  • restringiria o direito soberano dos governos de limitar as exportações de acordo com as necessidades internas, inclusive em tempos de austeridade ou de catástrofes, exigindo que continuem exportando a mesma proporção do que foi exportado durante os três anos anteriores;

  • restringiria o direito soberano dos governos de administrar recursos estratégicos, ou de estabelecer preços mínimos para exportações que poderiam incentivar a conservação de recursos não renováveis;

  • proibiria os impostos de exportação, que poderiam servir para evitar a venda de recursos naturais a preços mais baixos que seu custo de substituição;

  • não ofereceria assistência para ajudar no ajuste;

  • exigiria tratamento nacional e tratamento de nação mais favorecida ao outorgar acesso ao mercado, ignorando o fato de que o continente não é um campo de jogo igualitário;

  • o tratamento nacional também exigiria que os bens importados recebessem o mesmo tratamento que os bens produzidos no país, o que forçaria os países signatários a reformar sua política tributária e outras regulações que marcam a diferença entre produtores nacionais e estrangeiros;

  • proibiria regulações técnicas que sejam “mais restritivas para o comércio que o necessário”; isto abriria a porta para desafiar as regulações ambientais e outras de caráter público;

  • favoreceria a eliminação de barreiras não tarifárias, como quotas, licenças de importação e restrições de exportação voluntárias. Contudo, as negociações até agora focalizam a busca da redução das tarifas.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • promoveria um processo transparente e participativo entre produtores e sociedade em geral para o estabelecimento de uma agenda e a escolha de produtos que ficariam sujeitos a tarifas mais baixas;

  • faria que as regras de comércio e investimento sejam acompanhadas de políticas industriais de assistência técnica que garantam que as indústrias nacionais se tornem competitivas durante a transição;

  • incluiria para a entrada nos mercados condições como a qualidade dos produtos, as proteções da saúde e do meio ambiente (efetivando o princípio da precaução), o respeito aos direitos pessoais e sociais, trabalhistas e de gênero, assim como o respeito ao direito soberano das Nações a um projeto próprio de desenvolvimento;

  • confrontaria as desigualdades estimulando um tratamento especial, diferenciado e proporcional em benefício dos países empobrecidos, e também dos pequenos e médios agricultores e empresas, sobretudo as autogestionárias;

  • buscaria eliminar as barreiras não tarifárias e só permitiria tais medidas quando o propósito fosse apoiar metas sociais e ambientais legítimas.

RESOLUÇÃO DE DISPUTAS

O propósito deste grupo é estabelecer um mecanismo supranacional para resolver disputas em torno de supostas violações das regras da ALCA. A proposta de rascunho da ALCA é idêntica aos mecanismos de resolução de disputas do TLCAN e da OMC, excluindo a sociedade civil do processo e focalizando somente assuntos comerciais, financeiros e de investimento sem contemplação de disputas sobre assuntos sociais e ambientais, nem penalização de empresários criminosos. Nossa proposta privilegia os mecanismos nacionais e garante a participação da sociedade.

ALCA

  • prevê mecanismos diretamente supranacionais de resolução de controvérsias;

  • faculta apenas aos governos, e no caso de investimentos só aos investidores estrangeiros, o direito de abrir um processo de resolução de controvérsias. As organizações da sociedade civil não teriam nenhum direito a participar;

  • limita o âmbito das queixas a disputas comerciais – isto é um retrocesso mesmo em relação ao TLCAN, pois neste se incluiu um mecanismo, ainda que muito limitado, de atendimento das violações a leis trabalhistas e ambientais;

  • como no quadro da OMC, prevê que as disputas sejam resolvidas em reuniões secretas por comissões compostas por “peritos técnicos”.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • preveria que os mecanismos de resolução de conflitos seriam primeiro nacionais e só esgotadas todas essas instâncias, seria possível recorrer a mecanismos supranacionais;

  • permitiria a participação da sociedade civil em todos os níveis;

  • estabeleceria um sistema efetivo para fortalecer o cumprimento dos padrões sociais. O processo enfatizaria os incentivos por cumprimento, inclusive a assistência técnica e financeira ao país hospedeiro, visando que as ações para forçar seu cumprimento se tornem desnecessárias;

  • preveria um processo público e transparente em que todos os acionistas teriam direito de participar. Ao menos parte do tribunal seria integrado por peritos na área dos direitos em disputa.

SERVIÇOS

O propósito oficial é liberalizar progressivamente o comércio em serviços (desde os financeiros, de telecomunicações e turismo até saúde e educação). Isto significa abrir os mercados locais de serviços às empresas estrangeiras e restringir ou proibir políticas públicas que interfiram com o mercado. A ênfase em serviços dentro da OMC, o TLCAN e agora a ALCA desperta a suspeita de que as regras comerciais chegarão rapidamente a coincidir com as políticas de privatização promovidas pelo Banco Mundial e o FMI, que visam dar lucros aos donos do capital mas reduzem o acesso e a qualidade dos serviços sociais para cidadãos, especialmente para os que têm pouco ou nenhum poder aquisitivo; e, no caso de privatização com desnacionalização, reduzem também a presença, o poder regulatório e, portanto, a soberania do Estado sobre o patrimônio e os serviços que deveria prestar à Nação, além de aumentar a vulnerabilidade externa do País.

ALCA

  • aumentaria o acesso ao mercado para fornecedores estrangeiros de serviços em todos os setores, ao exigir que os governos lhes outorguem tratamento de nação mais favorecida. O rascunho do Tratado contém duas propostas contrastantes, para permitir às menores economias o direito de reclamarem isenções, mas é muito provável que as negociações em torno destas recomendações continuem sendo polêmicas;

  • em serviços sociais, como educação e saúde, apóia a isenção do GATT, que só aplica quando um serviço não é oferecido “nem sobre uma base comercial nem em competição com um ou mais fornecedores de serviços”. Estas condições são sumamente difíceis de cumprir, posto que nenhum serviço público é oferecido como monopólio exclusivo;

  • proibiria estabelecer limites em torno ao número de empresas privadas de educação, saúde, administração de águas, prisões e outras empresas que podem operar num estado ou numa determinada comunidade;

  • inclui propostas sobre auto-regulação que se concentram em garantir que as regulações não constituam barreiras desnecessárias ao comércio e estejam dirigidas a usar o mercado como principal regulador.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • reconheceria o direito soberano dos países de liberalizar ou não seus serviços segundo suas prioridades de desenvolvimento nacional e de manter como públicos os serviços indispensáveis para a população;

  • exigiria que os países garantissem a toda a cidadania o direito de acesso aos serviços socioeconômicos básicos e proibiria a liberalização que restrinja este acesso;

  • reconheceria o direito soberano dos países de proteger setores e empresas locais que são vitais e estratégicos para a economia e para a garantia e a reprodução da vida da sociedade;

  • exigiria que os governos desenvolvam, antes de qualquer privatização, uma forte capacidade reguladora dirigida a garantir a proteção ao consumidor e o acesso universal a esses serviços.

DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL

O propósito oficial é assegurar a proteção dos direitos de propriedade intelectual (direitos de posse e proteção legal das idéias, da criação artística, das inovações tecnológicas e das ferramentas de mercado). O acordo da OMC sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relativa ao Comércio (cuja sigla em inglês é TRIPs) que se converteu no padrão, recebeu críticas por ser discriminatório em favor da proteção e compensação às empresas privadas contra os interesses da maioria da sociedade. São preocupantes sobretudo as regras dos TRIPs que outorgam às empresas o direito de patentear matérias orgânicas e monopolizar medicamentos vitais.

ALCA

  • contém proposta para adotar as regras da OMC sobre direitos de propriedade intelectual;

  • contém propostas polêmicas sobre o direito dos governos de forçar empresas farmacêuticas a outorgarem licenças obrigatórias a empresas locais para que produzam versões genéricas de medicamentos patenteados. Há uma proposta que forçaria as empresas genéricas a duplicar provas custosas e processos legais para demonstrar a segurança do produto, dificultando ao máximo a sua oferta. Há outra que permitiria a obrigatoriedade de licenças, mas só quando o dono da patente não produza o medicamento segundo método local;

  • uma proposta permitiria aos países proibir patentes sobre plantas e animais, mas não conta com maioria;

  • há várias propostas que restringiriam o direito dos agricultores de usar sementes tomadas das plantas;

  • há propostas que apóiam a proteção dos saberes indígenas e das comunidades locais, mas não chegam a garantir o direito dos povos indígenas a resistir a alterações dos seus saberes coletivos ou a opor-se a que estes sejam convertidos em artigo de consumo.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • reivindicaria a supremacia dos acordos internacionais em torno aos direitos humanos, à saúde, segurança alimentar e biodiversidade sobre os TRIPs e outros acordos comerciais;

  • reconheceria o direito soberano dos governos a recorrer a licenças obrigatórias e a outras medidas que garantam o acesso a medicamentos essenciais, como no caso da produção e comercialização pelo Brasil e pelo Índia de medicamentos anti-retrovirais para o tratamento de pacientes com HIV/AIDS;

  • proibiria as patentes sobre todas as formas de vida, inclusive animais e plantas, microorganismos e processamento de material biológico e genético, inclusive o que derive do corpo humano;

  • apoiaria o direito de agricultores a guardar, usar e vender sementes produzidas por eles, assim como o livro intercâmbio de patentes de germoplasma de domínio público;

  • reconheceria o direito coletivo à propriedade comunal e sua prioridade sobre as regras de propriedade intelectual e o direito das comunidades negras e indígenas à plena autonomia nas decisões sobre seus hábitats tradicionais, de acordo com seus sistemas culturais e direitos tradicionais.

POLÍTICAS DE DEFESA DA COMPETIÇÃO

O propósito oficial deste grupo é impedir práticas empresariais anticompetitivas que prejudiquem os consumidores e que sejam obstáculo à alocação eficiente de recursos (como é o caso do controle oligopólico ou monopólico sobre os mercados e os preços, e a concentração econômica). Ainda que estas negociações possam servir a fins positivos para romper o excessivo poder econômico dos gigantes corporativos transnacionais, tudo indica que os verdadeiros alvos desta negociação sejam as empresas estatais e paraestatais, que são vistas como obstáculos ao livre mercado. Há mais de 20 anos estas práticas anticompetitivas e concentradoras têm sido objeto de debates nas agências da ONU visando a imposição de regulações. Mas o poder de pressão dos grupos transnacionais e dos governos dos países ricos tem impedido qualquer progresso. Por outro lado, não existe qualquer debate sobre o reconhecimento do direito soberano de cada Nação de definir e implementar seu próprio projeto e estratégia de desenvolvimento, e o dever de respeitar o mesmo direito das outras.

ALCA

  • permitirá a existência de empresas estatais, sejam elas ou não monopólios, sempre que não contradigam os níveis nacionais ou sub-regionais para a promoção da competição e que operem de acordo com um critério comercial;

  • criará uma autoridade autônoma com jurisdição supranacional para investigar e sancionar práticas anticompetitivas. Isto vai além do TLCAN, que obriga os membros a adotarem regras de competição mas não os sujeita a mecanismos supranacionais para assegurar seu cumprimento;

  • há uma proposta que permitiria aos investidores estrangeiros processar os governos por administrarem monopólios ou empresas estatais;

  • inclui propostas para proibir a estocagem de matérias primas e de produtos intermediários e manufaturados, medida que impediria a manutenção de estoques reguladores e facilitaria a perda de capacidade produtiva local em favor de fornecedores internacionais.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • reconheceria as empresas do setor público como veículos para o desenvolvimento socioeconômico saudável, salvaguardas da soberania e instrumentos de justiça social e ambiental. Ainda que os Estados devessem garantir que sejam fortes e eficientes, estas empresas não estariam sujeitas a leis antimonopólio nem seriam avaliadas com critérios só de preço e qualidade;

  • reconheceria a primazia de mecanismos nacionais de jurisdição sobre práticas anticompetitivas; estimularia a produção cooperativa e associativa, o comércio justo o consumo ético e solidário, assim como o planejamento local, nacional, regional e continental do desenvolvimento socioeconômico visando primeiramente o bem-viver de cada cidadão e da população inteira, com vistas a aproveitar as complementaridades e as vantagens cooperativas entre os atores e as Nações e maximizar não apenas a eficiência de cada agente econômico mas também de todo o sistema;

  • as disputas entre investidores estrangeiros e governos hospedeiros seriam dirimidas em instâncias nacionais, só depois sendo possível recurso a instâncias supranacionais cujos critérios fossem compatíveis com o pleno exercício dos direitos da pessoa e da sociedade;

  • reconheceria o direito soberano dos governos de gerar políticas públicas desenhadas para fortalecer a segurança alimentar e energética e a plena realização dos direitos da Nação.

GÊNERO

O processo oficial da ALCA ignora o impacto diferenciado que teria a liberalização do comércio e do investimento sobre as mulheres, ainda que tais políticas já tenham afetado as mulheres do continente de muitas e complexas formas. Exemplos são o número crescente de montadoras que contratam amplamente a força de trabalho feminina para empregos sub-remunerados, muitas vezes precários, onde os direitos trabalhistas costumam ser violados. A expansão da agricultura para exportação tem desestabilizado sítios familiares, levando os maridos a emigrar para regiões urbanas enquanto suas mulheres ficam para trás cuidando das suas famílias e exíguas propriedades.

ALCA

  • não há referência no rascunho oficial da ALCA ao impacto de gênero que este Tratado originaria. A declaração da Terceira Cúpula das Américas proclama que os governos estão comprometidos com a promoção da equidade de gênero, mas não há detalhes específicos sobre como pensa realizar esta pretensão;

  • a linguagem sobre serviços representa uma expansão do que se define como serviços, e inclui todos os níveis de governo, entre os quais o cuidado da saúde, educação, água potável, com implicações particulares para as mulheres trabalhadoras e consumidoras;

  • as disposições sobre direitos de propriedade intelectual afetariam as mulheres camponesas e artesãs;

  • a proposta de garantir às empresas privadas o direito de patentear sementes, mesmo as utilizadas pelos povos indígenas durante séculos, se aprovada liquidará com a soberania popular sobre seu próprio saber e modo de viver;

  • as disposições sobre marcas registradas poderiam outorgar a uma pessoa ou empresa o direito a patentear padrões de desenho ou indicadores geográficos (exemplo, “Cerâmica do Vale do Jequitinhonha”), afetando assim a faculdade de artesãos locais de melhor comercializar seus produtos;

  • as propostas sobre compras governamentais poderiam eliminar o direito soberano dos governos municipais, estaduais e federais de dar preferência a empresas de mulheres. Neste mesmo capítulo, existe proposta para que os governos considerem a “experiência em atividades e negócios globais do fornecedor” na hora de designar contratos, discriminando assim os fornecedores nacionais e locais e, especificamente, as empresas de mulheres, pois são poucas as que têm acesso a crédito, a tecnologia e a informação necessárias para operar a nível internacional.

A OUTRA INTEGRAÇÃO

  • exigiria uma avaliação do impacto das políticas comerciais sobre as mulheres e estabeleceria mecanismos para discutir a incorporação de equidade dos gêneros nos acordos comerciais e de investimento;

  • exigiria que os investidores estrangeiros ficassem sujeitos às leis internas sobre intimidação sexual, discriminação por sexo e por gestação, e discriminação trabalhista ou salarial;

  • instrumentaria políticas e leis que garantam às mulheres a plena proteção dos seus direitos civis, trabalhistas, reprodutivos, sexuais e humanos;

  • ofereceria assistência técnica e de desenvolvimento para promover a educação, a capacitação técnica e o desenvolvimento de habilidades para mulheres, particularmente mulheres deslocadas ou que tenham perdido seu salário como resultado da liberalização comercial. Criaria fundos para educação, saúde e programas trabalhistas que tenham um enfoque de gênero;

  • ofereceria ajuda técnica e assistência ao desenvolvimento para garantir que as mulheres tenham um acesso eqüitativo a recursos como o crédito, a capacitação tecnológica, a terra, a água, os mercados, etc.;

  • exortaria os países a implementarem a Iniciativa 20/20 da ONU, que convoca os países em desenvolvimento a dedicarem para programas sociais 20 por cento do orçamento nacional, e os países donantes a dedicarem 20 por cento da ajuda externa para o mesmo fim.

SUBSÍDIOS, ANTIDUMPING, E OBRIGAÇÕES COMPENSATÓRIAS

Este grupo negociador propôs três ações governamentais. Elas são criticadas pelos livremercadistas, que as qualificam de distorções do mercado. São: (1) leis antidumping, que reconhecem o direito soberano dos países de defender os produtores contra importações vendidas abaixo do custo de produção; (2) obrigações compensatórias, que são remédios contra prejuízos de importação; e (3) subsídios, utilizados para apoiar setores ou grupos econômicos estratégicos.

Em muitos países, os grupos estratégicos apoiam com firmeza esta classe de ações (exemplo, o grupo de pressão do aço nos Estados Unidos e o setor de bens na Argentina). A susceptibilidade que despertam estes assuntos é evidente na redação ambígua do propósito oficial do grupo negociador: explorar caminhos para aprofundar as regras existentes sobre subsídios e medidas compensatórias, e para melhorar regras e procedimentos em torno a leis de comércio para não criar barreiras injustificadas ao comércio. A Aliança Social Continental está neste momento elaborando suas opiniões sobre estes assuntos.

CONCLUSÃO

Existem sinais fortes das dificuldades que tem o próprio governo dos próprios Estados Unidos em negociar e aprovar qualquer esquema que se afaste muito das diretrizes gerais do TLCAN, como as dificuldades que enfrentou para aprovar o TLCAN no Congresso em 1994, as críticas de vários setores da sociedade estadunidense à sua implementação e aos acordos de livre comércio em geral, a aprovação por apenas um voto na Câmara dos Deputados da TPA (sigla em inglês para a Autoridade para Promoção do Comércio), que corresponde à antiga autorização fast track, a firma negativa estadunidense de negociar as leis de defesa comercial (antidumping, anti-subsídios, salvaguardas), a recente legislação estadunidense que concede amplos subsídios de proteção à produção e à exportação de produtos agrícolas, e a lista estadunidense de 300 produtos ‘sensíveis’.

O assunto é complexo, mas a tendência geral é nítida e permite uma firme tomada de posição dos países e dos povos soberanos do Continente. No caso das eleições brasileiras, a defesa da soberania nacional frente ao Tratado da ALCA seria um dos temas a debater com os diversos candidatos à Presidência, e certamente constitui um critério essencial para a escolha do melhor candidato. O que está em jogo, afinal, são dois projetos de sociedade. O dominante hoje se funda nos dogmas do livre mercado e na capacidade dele de auto-regular-se. Atribui aos capitais externos a primazia como fonte de financiamento e renuncia ao direito soberano de a Nação definir um projeto próprio de desenvolvimento. O outro projeto rompe com aqueles dogmas ao afirmar como paradigma o direito dos povos a definir um projeto de desenvolvimento pessoal, social e nacional e a tornar-se o sujeito desse projeto, reduzindo dramaticamente a dependência dos capitais externos e centrando energias e recursos na resposta às necessidades internas da população e da economia nacional. Tal paradigma inclui a afirmação dos valores do altruísmo, da cooperação, do respeito à diversidade, da complementaridade e da busca da eficiência sistêmica para maximizar o bem-viver dos povos do Continente como princípios que tornarão possível uma outra integração continental.

* Sarah Anderson, Instituto de Estudos Políticos de Washington D.C. e da Aliança pelo Comércio Responsável. O texto original é da ASC – Aliança Social Continental e resulta da contribuição de pessoas e redes de vários países das Américas (ASC, 2002a). Foi resumido por Sarah Anderson, e a este resumo acrescentei anotações que podem melhorar ou aprofundar a compreensão das propostas. Toda modificação do texto original e do resumo da Sarah é de responsabilidade minha.

* Marcos Arruda, PACS e da Rede Brasileira pela Integração dos Povos. Economista e educador do PACS (Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul), e sócio do Instituto Transnacional (Amsterdam). O PACS participa da REBRIP, Rede Brasileira pela Integração dos Povos, da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária. É membro da equipe global de animação do Polo de Socioeconomia Solidária da Aliança por um Mundo Responsável, Plural e Solidário.

BIBLIOGRAFIA

Aliança Social Continental, 2002a, Visiones Opuestas para el Continente:El Borrador Oficial del ALCA vs. Alternativas para las Américas, editado por Sarah Anderson a partir de contribuições de membros da ASC de vários países das Américas, enero.

Aliança Social Continental, 2002b, Alternativas para las Américas, www.asc-hsa.org

Aliança Social Continental, 2002c, ALCA, ?Acordo Comercial?, resumo preparado por Karen Hansen-Kuhn, em América Latina en Movimiento, n. 346, 24 enero, ALAI, Quito, http//alainet.org.

Guimarães, Samuel Pinheiro, 2002, Como será a Alca, www.agenciacartamaior.com.br, 6 de março.

Jubileu Sul-Américas, 2002, Declaração sobre Alca – Dívida – Militarização: Os Desafios para a Emancipação Hemisférica, 25 de maio, Quito.

Notas:

1 Sul Global significa o conjunto das classes sociais oprimidas, exploradas e empobrecidas de ambos os hemisférios. Opõe-se ao termo Norte Global, que se refere ao conjunto das classes dominantes dos dois hemisférios.

https://www.alainet.org/pt/articulo/106291
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