As armadilhas da reforma sindical
05/11/2004
- Opinión
Após um ano e meio de tensas negociações, o Fórum Nacional do
Trabalho (FNT), instância tripartite que reúne representantes do
empresariado, dos trabalhadores e do governo, concluiu a redação do
anteprojeto de reforma de estrutura sindical. Ele traz uma enxuta
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com dois artigos e um
extenso projeto de lei com 237 itens. Após passar pelo crivo do
Palácio do Planalto, ele será encaminhado para apreciação e votação
no Congresso Nacional. A previsão é de que seja aprovado ainda no
primeiro semestre do próximo ano. Mas tudo indica que não será tão
fácil assim a sua tramitação.
Afinal, a reforma mexerá com uma estrutura que já tem 70 anos de
existência e ela deverá promover uma verdadeira "revolução" no
sindicalismo e nas relações entre capital-trabalho. As polêmicas
sobre essa iniciativa do governo Lula são explosivas. De cara,
parcela do sindicalismo questionou sua oportunidade. É certo que
sempre existiram duras críticas à estrutura sindical. Algumas delas
foram contempladas na Constituinte de 1988, que extinguiu o poder
de intervenção sindical do Estado, garantiu a organização dos
servidores, ampliou o direito de greve, entre outras conquistas
democráticas. Apesar disso, a estrutura existente ainda padece de
vários vícios e distorções – incentiva a fragmentação das
entidades, permite a criação de sindicatos de carimbo, impede a
organização no local de trabalho, não reconhece as centrais.
A controvérsia é se esse era o momento ideal para reformar esse
sistema; se não seria melhor o governo Lula, de origem popular,
primeiro adotar medidas de geração de emprego e de valorização do
trabalho, o que fortaleceria o sindicalismo antes dessa dura
empreitada. Concretamente, porém, esta polêmica está superada. A
reforma já é um fato! E ninguém pode alegar surpresa. Desde seus
tempos de sindicalista e como um dos mentores da criação da CUT,
Lula sempre defendeu radicais mudanças na estrutura sindical nos
moldes da pluralista Convenção 87 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT).
Forjado nos embates diretos contra o Estado ditatorial, ele sempre
considerou a atual estrutura autoritária e anacrônica, chegando a
afirmar que "a CLT é o AI-5 dos trabalhadores" – citando o nefasto
instrumento do regime militar para castrar a oposição. Expressão da
singular realidade do ABC paulista, ele acredita na idílica "livre
negociação" entre patrões e trabalhadores, sem a interferência do
Estado. Nas suas quatro campanhas presidenciais, inclusive na
última, essa disposição apareceu escrita no programa. Empossado, o
presidente Lula partiu para a imediata montagem do FNT com esse
intento declarado.
Contradições da reforma
O primeiro embate no FNT foi sobre a dinâmica da reforma. O
patronato queria iniciá-la pela discussão sobre legislação
trabalhista, não escondendo sua intenção de desmontá-la de vez.
Governo e sindicalistas defenderam que primeiro era preciso
negociar as mudanças na estrutura sindical, definindo o papel dos
interlocutores, como pré-condição para negociar as alterações
trabalhistas. Venceu esta tese, apesar da chiadeira do empresariado
– que ameaçou boicotar o FNT. Na seqüência, foram montadas as
comissões temáticas para avançar em três pontos: estrutura
sindical, negociação coletiva e composição de conflitos.
O relatório final da FNT ganhou agora a sua forma jurídica numa
redação confusa e contraditória. Por um lado, o anteprojeto
apresenta algumas sinalizações positivas:
a) garante, pela primeira vez na história do Brasil, o
reconhecimento legal das centrais sindicais, que poderão negociar
acordos nacionais, interferir em negociações estratégicas para os
trabalhadores – como a recomposição do valor do salário mínimo e a
redução da jornada de trabalho – e terão melhores condições
políticas para horizontalizar as lutas e unificar a classe;
b) aponta, também pela primeira vez na história, para o
reconhecimento legal da organização nos locais de trabalho, o que
permitiria maior enraizamento dos sindicatos nas empresas,
democratizaria a vida sindical e daria maior poder às bases para
controlar as direções das entidades;
c) fixa a construção dos sindicatos por ramos de atividades, o que
possibilita superar a atual fragmentação de entidades por profissão
e categorias diferenciadas e incluir numa mesma organização
sindical os trabalhadores terceirizados e precarizados;
d) abordou, de forma criativa e original, a intrincada polêmica
sobre unicidade ou pluralismo sindical ao criar a figura jurídica
da exclusividade da representação. Nem manteve intocada a velha
unicidade, que apresenta várias distorções (como os sindicatos
fantasmas); nem caiu no extremo do pluralismo, que estimularia a
pulverização nas bases. Para garantir a exclusividade de
representação o sindicato terá que ter, no mínimo, 20% de sócios
num prazo de três anos;
e) também garantiu a sustentação financeira das entidades, sem cair
no falso discurso de que só os sindicalizados devem contribuir, mas
exigindo que as assembléias democraticamente convocadas aprovem o
desconto por ocasião das negociações coletivas.
Estes, entre outros pontos, eram sinalizações positivas no rumo do
fortalecimento do sindicalismo. Mas, como já era previsível num
fórum tripartite – onde patrões e governos têm interesses distintos
e mesmo antagônicos aos anseios dos trabalhadores –, o anteprojeto
apresenta vários retrocessos e armadilhas. No essencial, ele tem um
forte viés liberal que joga para o "livre mercado" o conflito entre
capital-trabalho e fragiliza as organizações de classe dos
explorados. Da forma como está redigido até agora, não garante o
fortalecimento do sindicalismo, dá brechas para flexibilização
trabalhista e, portanto, deve ser alterado ou rejeitado pela ativa
pressão dos trabalhadores. Isto por várias razões:
Proposta inaceitável
a) Centralização na cúpula. Ao mesmo tempo em que garante a
conquista histórica do reconhecimento das centrais sindicais,
direito este assegurado na maior parte do mundo, o anteprojeto dá
superpoderes às entidades de nível superior. Vai do extremo da
negação ao extremo do cupulismo! Se vingar o texto atual, os
sindicatos terão reduzida sua autonomia; as assembléias de
trabalhadores perderão seu poder soberano; e as cúpulas das
centrais terão poderes excessivos. O artigo 101 do anteprojeto, por
exemplo, afirma que a entidade de nível superior (central,
confederação ou federação) poderá "limitar a matéria a ser
negociada" pelo sindicato de base. Ao invés de fixar um patamar
mínimo de negociação, as centrais imporiam os seus parâmetros
máximos. Além disso, elas poderão criar "sindicatos biônicos", as
tais entidades derivadas.
b) Ditadura nas empresas. O que seria o maior avanço da reforma, a
constituição dos comitês sindicais de base, que o anteprojeto
denomina de "representação dos trabalhadores nos locais de
trabalho", ainda não está assegurado e surge como um formato
bastante restritivo. Os empresários já anunciaram que farão de tudo
para bombardear essa conquista no parlamento, onde "controlam" a
maioria dos deputados e dos senadores. Eles rechaçam qualquer
possibilidade da democracia penetrar nas empresas; consideram um
lugar sacrossanto onde impera a ditadura do capital. Para piorar,
diante da reação do patronato, o governo recuou na sua proposta
original, que previa a representação nas empresas com mais de 50
funcionários. O anteprojeto prevê esse organismo apenas nas que
possuam mais de 100 funcionários – sendo de apenas um representante
para as que tiverem de 100 a 200 trabalhadores. Um absurdo quando
se sabe que mais de 90% das empresas no país têm menos de 100
empregados. A proposta das centrais, da representação a partir de
30 empregados e com, no mínimo, três representantes, foi arquivada
pelo governo. Além disso, o anteprojeto fixa como atribuição desse
organismo "a mediação dos conflitos individuais", permitindo que
ele homologue demissões ou negocie acordos – a exemplo do que
realizam hoje as nefastas comissões de conciliação prévia. Na
prática, essa redação facilita a pressão do patronato para golpear
direitos em cada local de trabalho, retira o poder da pressão
unificada da categoria e estimula a futura criação de sindicatos
por empresa. O que parecia ser o maior avanço da reforma sindical
pode se tornar uma terrível arapuca!
c) Estímulo à divisão. A original idéia da exclusividade de
representação também exige reparos jurídicos para evitar que se
instale um clima de guerra fratricida nas bases sindicais. Em
primeiro lugar, porque esse critério apenas está garantido para as
entidades que já tiverem registro na data de edição da nova lei. Os
novos sindicatos, inclusive os criados por ramo de atividade, não
terão essa proteção legal, o que pode estimular a criação de
dezenas de frágeis entidades na base. Em segundo lugar, porque o
anteprojeto não prevê anteparos à ação divisionista dos
empresários. Estes poderão sabotar a conquista da cota mínima de
20% dos sócios para as entidades independentes e combativas,
ameaçando os trabalhadores, e estimular a sindicalização em
entidades dóceis e subservientes. Por último, e que é mais grave, o
texto apresenta uma aberrante figura jurídica: a chamada "entidade
derivada". Permite que as centrais sindicais, confederações e
federações fundem seus próprios sindicatos, sem a exigência da
comprovação da representatividade. A "derivação", que dá poderes
excessivos às cúpulas sindicais, permitirá a criação de "sindicatos
biônicos". Tamanhas imprecisões estimularão uma intensa disputa nas
bases, com os sindicatos se digladiando pela obtenção do seu
registro legal, exatamente no momento em que se inicia o debate da
reforma trabalhista. O patronato, adepto do "dividir para reinar",
terá melhores condições para golpear históricos direitos.
d) Ingerência do Estado. O anteprojeto apresenta um grave
retrocesso em relação à atual Constituição, que proíbe a
intervenção do Estado na organização sindical. Ele atribui ao
Ministério do Trabalho o poder de "reconhecer a representatividade"
das entidades, que será um dos pressupostos para a aquisição da sua
personalidade jurídica. O texto lembra a famigerada "carta de
reconhecimento" usada durante décadas por vários governos como
mecanismo de pressão e aliciamento de novos sindicatos. Também o
artigo sobre a criação do sindicato por ramo ou setor de atividade,
a princípio um avanço, diz que a definição de critério será
"procedida por ato do Ministério do Trabalho", que ainda validará o
enquadramento a cada três anos. Estas normas dão brechas para as
ações arbitrárias dos governos de turno na definição das bases,
além de gerar instabilidade nos sindicatos que deverão comprovar
representatividade a cada três anos. Já o artigo sobre o Conselho
Nacional de Relações do Trabalho, fórum tripartite criado para
regular a vida sindical, não dá qualquer autonomia a este organismo
e o vincula diretamente ao Ministério do Trabalho.
e) Direito de greve. Já no capítulo sobre "composição de
conflitos", apesar do anteprojeto afirmar que a greve é um direito
fundamental e que cabe ao trabalhador escolher os motivos e as
oportunidades para sua deflagração, o texto contraditoriamente
amplia as chamadas atividades essenciais (artigo 115), incluindo
arbitrariamente a compensação bancária, e prevê a estranha
obrigatoriedade de "cotas de produção" nas greves no serviço
essencial (artigo 114). Além disso, ele mantém o que há de pior no
poder normativo da Justiça do Trabalho, ao permitir que ela puna os
grevistas e multe os sindicatos, em até mil vezes o menor piso da
categoria, em caso de "conduta anti-sindical" no comando das
greves.
f) Negociação coletiva. No capítulo sobre "negociação coletiva", o
fantasma da flexibilização trabalhista aparece aterrorizador. Além
de alijar os sindicatos dos acordos nas empresas, que seriam
"homologados" pelas representações locais, o anteprojeto prevê que
o contrato coletivo poderá ser celebrado por qualquer das entidades
que tenha participado da negociação e estende sua validade para
toda a base. Não é difícil imaginar que o patronato privilegiará os
acordos negociados com as entidades mais dóceis e frágeis. Já no
caso do sindicato se recusar a negociar, devido à intransigência do
patronato, ele fixa que o acordo poderá ser celebrado diretamente
pelos trabalhadores. Essa aberração jurídica golpeia a livre
organização sindical e reforça a chantagem das empresas. Ao mesmo
tempo em que mantém a intervenção do Judiciário contra as greves, o
anteprojeto limita exatamente a parte positiva do poder normativo
da Justiça do Trabalho – a que garante a vigência e ampliação dos
direitos consagrados nas leis trabalhistas e acordos coletivos. Por
outro lado, ele estimula a chamada arbitragem, com a contratação de
agendes privados para monitorar as negociações. Evidente que o
patronato tem muito mais recursos para comprar e corromper os tais
árbitros! A experiência recente das comissões de conciliação
prévia, criadas por FHC, já revela toda essa podridão. Ao excluir a
Justiça do Trabalho e estimular a arbitragem, o anteprojeto joga a
relação capital-trabalho na selva do "livre mercado" e privatiza o
Direito do Trabalho. Em síntese, esse capítulo abre brechas para a
flexibilização trabalhista e confirma o perigo iminente da
"prevalência do negociado sobre o legislado".
Ante-sala da trabalhista
Como enfatiza João Batista Lemos, secretário sindical do PCdoB e
coordenador nacional da CSC, do jeito que está redigida "essa
proposta é inaceitável. O seu resultado será o enfraquecimento do
sindicalismo e a divisão dos trabalhadores". É o futuro da
organização de classe dos trabalhadores que está em perigo! O
sindicalismo precisa intervir com ímpeto nesse embate, em especial
no período de tramitação da PEC e do projeto de lei no Congresso
Nacional – que é um terreno ainda mais pantanoso e adverso. Ele não
pode se omitir no debate que já está em curso e que aponta para
profundas mudanças na estrutura sindical.
Por um lado, ele não pode desperdiçar a oportunidade histórica para
conquistar novos avanços, exigindo o reconhecimento das centrais, a
organização por local de trabalho, o sindicato por ramo de
atividade e o acesso ao Direito do Trabalho. O seu esforço é para
garantir maior representatividade aos sindicatos, para enraizá-los
na base e para sacudir os vícios da burocratização e do
distanciamento da nova realidade do trabalho. Ao mesmo tempo, ele
precisa rejeitar as armadilhas que levam ao cupulismo, à
fragmentação e divisão sindical, à ingerência indevida do Estado, à
restrição do legítimo direito de greve, etc. A reforma sindical é a
ante-sala da trabalhista. Se ela resultar em avanços, os
trabalhadores terão melhores condições para exigir novas conquistas
trabalhistas. Caso contrário, eles serão presas fáceis diante do
capital!
Apesar do presidente Lula ter a sua origem no movimento operário,
não cabe ilusão ou passividade diante da reforma trabalhista. De
nada adiantará nessa batalha crucial o discurso adocicado do "paz e
amor", da conciliação de classes. O capital encara esse embate como
uma questão de vida ou morte! Entusiasmado com a onda mundial de
regressão trabalhista, ele fará de tudo para impor retrocessos nos
mecanismos da contratação e demissão, da remuneração e da jornada
de trabalho. Ele tem consciência de que dispõem de poderosos
instrumentos para enquadrar o governo Lula, usando a chantagem do
mercado e a manipulação da mídia. E sabe que terá o enérgico apoio
dos organismos mundiais do capital financeiro.
Segundo recente estudo, o FMI inclui em todas as negociações com as
nações devedoras várias cláusulas exigindo a flexibilização dos
direitos trabalhistas. Muitas vezes, essa imposição nem aparece na
redação final dos acordos. Aparece como "cláusula não escrita e não
revelada", também chamada de "acordo de cavalheiro" (gentlemen's
agreements) ou de "arranjo" (arrangements). Já no acordo assinado
por FHC em novembro de 1998 estava escrito que "a necessidade da
reforma trabalhista se tornou mais urgente". Renovado em 2002, com
forma de aprisionar os candidatos à presidência, este acordo
continua vigente. Não é para menos que a delegação do FMI que
esteve no Brasil no final de setembro voltou a cobrar do presidente
Lula "pressa na reforma e o compromisso com a modernização da
legislação trabalhista".
O capital deseja destruir, de vez, a CLT, retirando as garantias
legais de férias, 13º salário, adicionais de insalubridade,
periculosidade e penosidade, adicionais noturno e por revezamento,
pagamento das horas-extras, entre outros direitos. O seu objetivo é
impor a "prevalência do negociado sobre o legislado". Para isso,
ele usa o falso discurso da "livre negociação", que ainda ilude
algumas lideranças sindicais. Nessa aparente liberdade, o
trabalhador entra com a cabeça e o patrão, com a forca! Diante
desse risco iminente, o sindicalismo precisa se armar. Só mantendo
a sua autonomia diante do Estado e reforçando a pressão social é
que poderá evitar o pior na reforma sindical e trabalhista!
* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do
PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro
"A reforma sindical e trabalhista no governo Lula" (Editora
Anita Garibaldi).
https://www.alainet.org/pt/active/7069?language=es
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