Memória brasileira: sigilo ou vergonha?

16/06/2011
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Há 141 anos terminou a Guerra do Paraguai.  Durou de 1864 a 1870. Ao longo de seis anos, Brasil, Argentina e Uruguai,  instigados pela Inglaterra, combateram os paraguaios. O pretexto era derrubar  o ditador Solano López e impedir que o Paraguai, país independente e sem  miséria, abrisse uma saída para o mar.
 
O Brasil enviou 150 mil  homens para o campo de batalha. Desses, tombaram 50 mil. Do lado paraguaio  foram mortos 300 mil, 20% da população do país. E o Brasil abocanhou 40% do  território da nação vizinha.
 
Até hoje o acesso aos documentos do  conflito estão proibidos a quem pretende investigá-los. Por quê? Talvez o  sigilo imposto sirva para cobrir a vergonhosa atuação de Duque de Caxias,  patrono do Exército Brasileiro, que comandou nossas tropas na guerra. E do  Conde D’Eu, genro de Dom Pedro II, que sucedeu o duque no massacre aos  paraguaios.
 
Os arquivos ultrassecretos do Brasil podem  permanecer sigilosos por 30 anos. O presidente da República pode prorrogar o  prazo por mais 30, indefinidamente. Eternamente.
 
Em 2009, Lula  enviou à Câmara dos Deputados projeto propondo o sigilo eterno periodicamente  renovado. Cedeu a pressões dos ministérios da Defesa e das Relações  Exteriores. Os deputados federais o aprovaram com esta emenda: o presidente da  República poderia renovar, por uma única vez, o prazo do sigilo, e os  documentos considerados ultrassecretos seriam divulgados em, no máximo, 50  anos.
 
O projeto passou ao Senado. Caiu em mãos da Comissão de  Relações Exteriores, cujo presidente é o senador Fernando Collor. E, para azar  de quem torce por transparência na República, ele próprio assumiu a relatoria.  E tratou de engavetá-lo. Não deu andamento ao debate nem colocou o projeto em  votação.
 
A presidente Dilma decidira sancionar a lei do fim do  sigilo eterno a 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Naquela data,  o relator Collor foi a plenário e declarou ser “temerário” aprovar o texto  encaminhado pela Câmara dos Deputados.
 
Na véspera de ser  empossada ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvatti declarou que  Dilma estaria disposta a atender pedidos dos senadores José Sarney e Fernando  Collor, e patrocinar no Senado mudança no decreto para assegurar sigilo eterno  a documentos oficiais. A única diferença é que, agora, o sigilo seria renovado  a cada 25 anos.
 
O Congresso está prestes a aprovar a Comissão da  Verdade, que irá apurar os crimes da ditadura militar. Como aprovar esta  comissão e vetar para sempre o acesso a documentos oficiais? Isso significa  impedir que a nação brasileira tome conhecimento de fatos importantes de sua  história.
 
Collor e Sarney não gostam de transparência por razões  óbvias. Seus governos foram desastrosos e vergonhosos. Já o Ministério das  Relações Exteriores alega que trazer à tona documentos, como os da Guerra do  Paraguai, pode criar constrangimentos com países vizinhos. Com países vizinhos  ou com nossas Forças Armadas e personagens que figuram como heróis em nossos  livros didáticos?
 
O sigilo brasileiro a documentos oficiais não  tem similar no mundo. Se não for quebrado, a presidente Dilma ficará refém da  chamada base aliada. Ontem foi o “diamante de 20 milhões de reais”, hoje o  sigilo eterno, amanhã…
 
Na terça, dia 14 de junho,  retornaram ao Brasil os arquivos do livro “Brasil Nunca Mais” (Vozes), que  relata os crimes da ditadura militar brasileira. A publicação, patrocinada  pelo Conselho Mundial de Igrejas, foi monitorada pelo cardeal Dom Paulo  Evaristo Arns e o pastor Jaime Wright.
 
O mérito do “Brasil Nunca  Mais” é que não há ali nenhuma notícia de jornal ou depoimento de vítima da  ditadura. Toda a documentação se obteve em fontes oficiais, retirada, por  advogados, de auditorias militares e do Superior Tribunal Militar.  Microfilmada, foi remetida ao exterior, por razões de segurança. Agora retorna  ao Brasil para ficar disponível aos interessados. Muitas informações ali  contidas não constam da redação final do livro, da qual participei em parceria  com Ricardo Kotscho.
 
Os arquivos da Polícia Civil (DOPS) sobre a  ditadura militar já foram abertos e se encontram à disposição no Arquivo  Nacional. Falta abrir o arquivo das Forças Armadas, o que depende da vontade  política da presidente Dilma, ela também vítima da ditadura. As famílias dos  mortos e desaparecidos têm o direito de saber o que ocorreu a seus entes  queridos. E o Brasil, de conhecer melhor a sua história  recente.
 
Um país sem memória corre sempre o risco de repetir, no  futuro, o que houve de pior em sua história.
 
- Frei Betto é  escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar  brasileira” (Rocco), entre outros livros.
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