Pra variar estamos em guerra...

15/01/2007
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Na semana em que o Rio se espreguiçava entre a montanha e o mar, curtindo ainda os ecos do Natal e preparando-se para os fogos do Ano-Novo, a canção de Rita Lee e Roberto de Carvalho pareceu ecoar forte e ensurdecedora novamente:

Pra variar estamos em guerra
Você não imagina a loucura
O ser humano tá na maior fissura...


E bota fissura nisso, nesse desatino em que se transformou o espaço urbano brasileiro. Após o Dia das Mães regado de sangue em São Paulo, agora é a vez do Rio, com rebelião comandada de dentro dos presídios por chefes do crime organizado descontentes com as condições de vida e nomeações de diretores.

Anciãos presos em um ônibus de turismo da viação Itapemirim que não conseguiram escapar do ônibus em chamas, pegos totalmente de surpresa por bandidos frios e bárbaros, que não se contentaram em assaltá-los, mas também lhes tiraram a vida. Policiais mortos, executados nos postos de trabalho. Delegacias atacadas e varridas de balas.

E a nota triste e pungente: a morte da vendedora ambulante, mãe coragem e carinho, que com o instinto que rege o mundo desde seus começos, sentiu a cria ameaçada. Abraçou o filho pequeno de seis anos e recebeu o tiro que a matou. Trabalhava em frente ao Botafogo Praia Shopping ao lado da guarita da polícia. Certamente achava que ali estaria mais protegida. Não contava que a bala perdida não respeita lugar, nem pessoa, nem momento, e segue seu trajeto mortífero sem alvo preciso e atingindo quem está em seu caminho. Morreu abraçada ao filho, apenas atingido de raspão. Na vida deste menino, no entanto, está a ferida que nunca se fechará: a violência que o tangenciou e levou sua mãe aos 33 anos, quando ele, muito garoto, ainda não havia podido dar-lhe tudo que sonhava e desejava.

Espectador atônito da guerra que cresce à sua volta e chega cada vez mais perto de sua vida, seu cotidiano, sua rotina, o carioca se pergunta por que toda essa barbárie, essa violência, essa guerra que não termina e sempre recomeça com mais apetite e mais furor.

Enquanto autoridades e policiais buscam os responsáveis, muitos inocentes sairão feridos ou perderão a vida. Guerra é guerra e quem estiver no lugar errado, no momento preciso, certamente não conseguirá salvar sua vida. A guerra é cega, é surda e cospe seu fogo sobre quem atravessa seu caminho.

Pode ser um senhor de idade que apenas saía de Cachoeiro do Itapemirim (ES), para visitar um familiar em São Paulo e morre carbonizado nas chamas enlouquecidas do ônibus queimado pelos bandidos. Ou um vendedor de sapataria que arruma o estoque e sente a bala passando de raspão ao lado de sua cabeça. Ou uma mulher jovem, digna e pobre, que leva pela mão o filho de seis anos enquanto vende sorvete na porta de um shopping.

Todos poderiam não estar ali, mas estavam. Todos são inocentes e tiveram as vidas ceifadas por um conflito pelo qual não eram responsáveis e no qual não tinham interesse. Infelizmente e pra variar... estamos em guerra.

- Maria Clara Bingemer , teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio é autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), entre outros livros. www.users.rdc.puc-rio.br/ágape
https://www.alainet.org/pt/active/15932?language=en
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