Pandemia, crise económica e teletrabalho

29/07/2020
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Fazer da crise uma oportunidade é uma frase batida que encontra o seu mais profundo sentido na necessidade do sistema capitalista em romper com ciclos económicos estabelecidos para induzir arrefecimento na economia e de seguida, no âmbito de um processo de retoma económica, aprofundar desigualdades sociais, através da acentuação dos níveis de exploração do trabalho. Daqui resulta o empobrecimento dos trabalhadores por contrapartida com a acumulação de capital em gente já muito rica, verdadeiras aves de rapina, que a comunicação social promove nos seus rankings para nos entreter, ou melhor para humilhar quem empobrece trabalhando.

 

A pandemia que resulta da COVID-19 suspendeu a economia mundial nos mais variados sectores forçando outros a novas modalidades de funcionamento: é o caso do teletrabalho. De um dia para o outro, milhares de trabalhadores com os mais variados tipos de contratos de trabalho, em situação de precariedade laboral ou outra, entraram num processo de confinamento social e passaram a trabalhar a partir de casa.

 

Este novo enquadramento foi socialmente aceite pela grande maioria dos trabalhadores sem objecção, dadas as circunstâncias particulares em causa. Porém, com o passar do tempo, os problemas começam a levantar-se, porque o capital nunca perde o seu carácter predador e o trabalho está sempre na sua mira. Também por isso aos trabalhadores de maior fragilidade social não foram dadas condições de segurança, e garantiram o confinamento dos restantes.

 

Apesar do recurso ao teletrabalho ser um modelo bem-sucedido para todas as empresas privadas de serviços e para os serviços do Estado, com o passar do tempo tudo se altera. Os trabalhadores percebem que estão a entrar num processo de isolamento social e profissional, com limites ténues entre o trabalho e a vida pessoal e familiar, e questionam o modelo de teletrabalho nas seguintes vertentes:

 

- O Teletrabalho é bom? A quem serve…

- O Teletrabalho é saudável?

- O Teletrabalho é seguro?

 

1) À primeira questão, diremos que a adopção generalizada do modelo de teletrabalho é benéfica para as entidades patronais por duas razões distintas:

 

- As empresas estão fisicamente subdimensionadas face ao número de trabalhadores que têm ao seu serviço, não cumprindo, na sua maioria, os critérios inscritos na lei relativamente à ocupação do espaço e distanciamento físico entre trabalhadores. Daqui resulta que o problema de espaço físico das empresas pode estar a ser resolvido por via da implementação do teletrabalho.

 

- Embora se possa considerar displicente, há uma poupança que resulta da ausência do trabalhador do local de trabalho. São os custos de água, luz e outros que serão directamente suportados pelo trabalhador, ou seja, o trabalhador suportará custos de funcionamento que anteriormente pertenciam à empresa. Isto para já não falar da internet e até dos equipamentos como telemóveis e computadores que em muitos casos pertencem aos trabalhadores em regime de teletrabalho.

 

Os trabalhadores quando reagem ao modelo de teletrabalho com agrado fazem-no por dois motivos:

 

- A moderna gestão empresarial impõe ritmos de trabalho e processos de competitividade interna entre trabalhadores que estão na origem de problemas graves de assédio no trabalho, e muitos trabalhadores entendem a possibilidade do teletrabalho como a oportunidade de se libertar destes problemas.

 

- Por outro lado, a economia do tempo despendido casa-trabalho-casa leva muitos a considerar que o teletrabalho é algo que pode melhorar a sua qualidade de vida.

 

2) Quanto à questão de saber se o teletrabalho é saudável para o trabalhador, muitos não terão a verdadeira dimensão deste problema. Porém, o tempo decorrido desde o confinamento, em Março, até ao momento actual, permite que os trabalhadores comecem a despertar para alguns problemas, nomeadamente:

 

O teletrabalho provoca isolamento:

 

- Social, em que o trabalhador perde relações sociais, o que pode levar problemas de natureza psicossocial.

- Profissional, na medida em que o trabalhador perde a relação interpessoal com a instituição e com os restantes trabalhadores, o que o torna mais frágil e mais exposto a todos os problemas decorrentes de uma relação de trabalho subordinada.

 

A fragilidade que resulta do isolamento é uma vantagem que as empresas aproveitarão em seu benefício, e que teremos de combater para que o teletrabalho não se torne mais um instrumento de precariedade.

 

3) O teletrabalho pode ainda apresentar-se como uma modalidade com grandes debilidades em matéria de segurança. As tecnologias da informação constituem-se através de sistemas permeáveis a «vírus» informáticos. São conhecidos os avultados montantes canalizados para a segurança dos sistemas de informação. Porém, também é conhecida a sofisticação cada vez maior dos ataques informáticos. O teletrabalho deixa as empresas mais expostas ao ciberataque e a questão que se coloca é a de saber se o trabalhador estará devidamente protegido, isto é, se no seu computador pessoal ao serviço da empresa, entrar um vírus que afecte a empresa, quais as consequências para o trabalhador? Para além deste problema existe ainda a confidencialidade dos dados, com todas as subtilezas que este tema contém.

 

Até agora centrámo-nos em matérias que decorrem de uma relação directa entre empresa e trabalhador por via da adopção generalizada de uma nova modalidade de prestação de trabalho: o teletrabalho. Contudo, problemas de natureza social também devem ser observados, na justa medida em que o teletrabalho traz consigo uma alteração de paradigma ao qual será necessário responder.

 

O empobrecimento da classe trabalhadora tem-se acentuado de forma muito significativa, e os trabalhadores dispõem de pouco rendimento para satisfazer necessidades de bem-estar pessoal e familiar. Neste sentido, devemos questionar se as habitações de cada um estarão devidamente preparadas para o teletrabalho, isto é, o trabalhador tem um espaço adequado, com mobiliário conveniente para garantir a sua saúde? Sabemos que existem trabalhadores que estão sentados no sofá com o portátil em cima das pernas durante o tempo de trabalho, e isto não são condições de trabalho, do mesmo modo que a mesa da cozinha também não.

 

Por outro lado, a desregulação dos horários de trabalho e a interpenetração da vida pessoal e familiar com o trabalho impõe a ausência de limites entre o trabalho e a vida pessoal, o que reforça o poder das entidades patronais sobre os trabalhadores. O trabalho passa a estar sempre presente na vida das famílias, interferindo e condicionando a vivência familiar.

 

A possibilidade da redução do salário com supressão de prémios e bónus e eliminação do subsídio de alimentação faz parte de uma realidade que surgiu recentemente na actividade seguradora, e que o Sindicato Nacional dos Profissionais de Seguros e Afins (SINAPSA) conseguiu travar. Na prática, para o mesmo trabalho, ensaiou-se a diminuição do salário sem qualquer justificação, o que prova bem o espírito predador do capital e onde se quer chegar com este modelo. Valeu a estes trabalhadores a presença do seu sindicato.

 

Esta presença afirmou-se e conteve a empresa na sua acção predadora por dois motivos distintos: pela consciência de classe da estrutura sindical na empresa, mas também pelo Instrumento de Regulação Colectiva de Trabalho (IRCT)1 recentemente negociado e que a empresa tentou ignorar, e cuja existência relembrámos, visto que numa das suas cláusulas prevê o teletrabalho, com direitos. Se tivesse prosseguido na sua intenção, a empresa entraria numa violação clara do Acordo Colectivo de Trabalho negociado.

 

Isto significa que, mais uma vez, é a contratação colectiva que se apresenta como um instrumento de combate pelos direitos de que os trabalhadores não podem abdicar. Esta tem sido sempre a postura do SINAPSA que recentemente viu confirmada, pelo Supremo Tribunal de Justiça, a validade do Contrato Colectivo de Trabalho para a actividade Seguradora, que os patrões diziam estar caducado.

 

- Carmen Nunes é Dirigente do SINAPSA

 

Nota da redacção: Instrumentos de Regulação Colectiva de Trabalho (IRCT) são contratos estabelecidos entre a organização sindical de um determinado sector e as entidades patronais do mesmo ou associações que as representem. Podem ser negociais (Contrato Colectivo de Trabalho, Acordo Colectivo de Trabalho, Acordo de Empresa, Acordo de Adesão e Decisão arbitral; ou não-negociais: Portaria de extensão, Portaria de condições de trabalho e Decisão arbitral. Fonte: Economias.

 

28 de Julho de 2020

https://www.abrilabril.pt/trabalho/pandemia-crise-economica-e-teletrabalho

 

 

https://www.alainet.org/es/node/208151

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