China suscita a emergência de uma nova experiência econômico-social

30/09/2019
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O desenvolvimento chinês desafia as teorias clássicas
Foto: Xiansheng Dai/Istockphoto
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O processo de desenvolvimento da China e da Ásia-Pacífico é um desafio para os cientistas sociais contemporâneos. Essas experiências constituem um novo paradigma, variantes de capitalismo e socialismo que surgiram naquela região com excelente desempenho. A mudança do centro de gravidade da economia internacional para a região sugere que tais experiências não devem ser objeto somente de observação e análise. São experiências que desafiam escancaradamente as teorias que se debruçam sobre o processo de desenvolvimento econômico.

 

De Adam Smith, passando por Akira Hayami, Giovanni Arrighi, Kaoru Sugi-hara e Peter Nolan, não são poucos os autores de alto calibre a sublinhar as diferenças entre as trajetórias de desenvolvimento mercantil.

 

Peter Nolan trata das convergências e divergências entre as trajetórias milenares do Ocidente e da China. A unificação do sistema imperial inaugurado por Qin Shi Huang Di provou ser “o mais duradouro de todas as instituições humanas”. Durante a dinastia Qin (221-207 a.C.), o sistema de pesos e medidas, a cunhagem de moedas, o método de escrever caracteres chineses foram padronizados em todo o país. Foi construída a grande muralha no Norte e Noroeste da China, bem como um sistema de estradas que se irradiava pelo Império.

 

A dinastia sucessora, a Han durou de 206 a.C. a 220 d.C. Durante a dinastia Han, a China desenvolveu uma forma precoce de estrutura política que permaneceu intacta até os dias atuais. O Estado chinês era uma combinação de um imperador hereditário com uma burocracia profissional grande, selecionada por exames meritocráticos, com os exames baseados nos filósofos Confúcio e Mêncio.

 

Em um ambiente de paz e estabilidade política, a integração econômica da dinastia Han permitiu uma era de progresso econômico e técnico. As instalações para a gestão de água aumentaram a produtividade agrícola e reduziram os custos de transporte. A China desenvolveu o cultivo do bicho-da-seda para a produção de têxteis. O moinho movido a água foi inventado. A invenção do papel demorou mais de mil anos para chegar à Europa.

 

A trajetória chinesa demonstra a importância da construção institucional para o avanço econômico. O desenvolvimento das formas mercantis na Ásia não produziu uma Revolução Industrial, como na Inglaterra, mas permitiu a convergência para a “modernidade”, ao revigorar as caratecterísticas institucionais milenares na criação de poderosas estruturas industriais e financeiras.

 

A trajetória chinesa demonstra a importância da construção institucional para o avanço econômico

 

O caso chinês é mais enigmático, e rico, pois as reformas de 1978 marcam o início de um processo em que o desenvolvimento de um modo de produção distinto (socialismo) demandou que um novo tipo de superestrutura literalmente “fabricasse” um mercado como forma de sua sociedade se revigorar. O reencontro da China com a sua milenar história mercantil é um marco fundamental aos estudiosos do tema. Demanda grande flexibilidade intelectual e conceitual. Vai ficando evidente ao trabalhar com essa agenda de pesquisa que não se explica o desenvolvimento de complexas formações econômico-sociais com as caixinhas de teorias prontas e acabadas.

 

A construção do mercado levou o país a uma completa reorganização de sua estrutura social. O mercado passou a ser instrumento de governo para revigorar sua base material. A reinauguração do mercado na China inicia-se com a permissão aos camponeses ao comércio de seus excedentes de produção, fato que pode ser comparado com o destampamento de uma panela de pressão que foi a base do desenvolvimento da sociedade chinesa por cerca de 3 mil anos e que fora temporariamento proibido. O resultado foi o aumento da produtividade agrícola e a “fabricação de fabricantes” em massa. Atualmente, 80% dos empresários de Shenzhen eram camponeses médios em 1978.

 

Por meio do “mercado fabricado”, o governo encaminhou uma dura reforma de suas empresas estatais nos últimos anos da década de 1990. Preparar sua economia ao cumprimento das normas de admissão à Organização Mundial do Comércio (ocorrida em 2001) demandou conceber um tipo de empresa com forte tendência à conglomeração, métodos de administração ultramodernos, comercialmente agressivas e com função de núcleo duro do desenvolvimento de um Sistema Nacional de Inovação. No fim da década de 1990, um intenso processo de fusões e aquisições levou à formação de 149 conglomerados estatais localizados nos pontos-chave da economia nacional. Hoje estão reduzidas a 97 conglomerados, com 25 deles presentes na lista do Fortune Global 500 do ano de 2018. Eram apenas seis na lista de 2003.

 

A utilização de instituições públicas com fins de empoderamento nacional, e elo entre o Estado e as grandes corporações empresariais, foi outra reinvenção dos Estados Desenvolvimentistas asiáticos em geral e o chinês em particular. Chalmers Johnson foi o primeiro a identificar no Ministério da Indústria e Comércio Exterior japonês o exemplo de um corpo burocrático, selecionado em universidades de elite, completamente comprometido com os objetivos de Estado Nacional. Papel semelhante foi percebido por Alice Amsden e Choi Byung-Sun, para o caso coreano, ao Departamento de Planejamento Econômico. Taiwan criou sua similar sob o rótulo de Conselho de Planejamento e Desenvolvimento Econômico.

 

Na China, a Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Conselho de Estado (Sasac, no sigla em inglês) é a grande operadora do “socialismo de mercado”. Criada em 2003 para substituir um emaranhado burocrático ineficiente, a Sasac passou a ser gestora dos ativos públicos e garantidora, ao lado dos grandes bancos estatais, do desempenho do setor público no organismo econômico chinês.

 

A “fabricação do mercado” levou o país a uma completa reorganização  de sua estrutura social

 

É esta instituição que implementa a adoção de métodos modernos de gestão empresarial às gigantes chinesas e assegura o papel político das empresas nas estratégias de Estado, dentro e fora da China. Uma interessante tese de doutorado de Zhiting Chen da Universidade de Birminghan (“Governing Through the Market: Sasac and the Resurgence of Central State-owned Enterprises in China”), ao analisar os balanços dos conglomerados empresariais chineses tutelados pela Sasac, revela, que o total de receitas destas empresas em 2006 foi de 1 bilhão de dólares, alcançando cerca de 30 bilhões em 2016. Esse arcabouço industrial-financeiro-institucional está ancorado na finança comandada por bancos de desenvolvimento de âmbito nacional, provincial e municipal. Enquanto o Brasil liquida o seu sistema de financiamento de longo prazo, um banco de desenvolvimento municipal (de Xangai) foi responsável por cerca de 50% do funding que permitiu a construção de cerca de 300 quilometros de novas linhas de metrô na cidade entre os anos 2000 e 2018.

 

Não há harmonia nesse processo. A China está repleta de desequilíbrios e desafios, desde a preocupante desigualdade social até a pressão americana sobre seu desenvolvimento – algo que tardou e que poderá falhar. Resta avançar na exploração científica a partir da milenar história mercantil e institucional da Ásia. A verdade é que esta região do mundo, com suas características peculiares, produziu distintas formações econômico-sociais e, consequentemente, Estados Desenvolvimentistas de diferentes modelos, capitalistas e socialistas. A “fabricação do mercado” na China suscitou a emergência de uma nova, complexa e inovadora experiência econômico-social, o “socialismo de mercado”. A China é o exemplo de uma nova formação econômico-social.

 

- Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

- Elias Jabbour é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas da Uerj.

 

29 de setembro de 2019

https://www.cartacapital.com.br/economia/china-suscita-a-emergencia-de-uma-nova-experiencia-economico-social/

 

https://www.alainet.org/es/node/202383
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