O Decálogo de Moro

25/06/2019
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Moro, aceite aqui a advertência,
que faço a meus alunos na primeira
aula sobre Lacan, lá na USP:
“This will be slow and painful”

 

Há muitos anos escuto de meus amigos promotores e juízes que direito e justiça são coisas muito diferentes. A justiça é um conceito muito maior, feito de sentimentos sociais e avaliações interessadas, fortemente ligada à relatividade subjetiva dos indivíduos e suas posições contextuais, culturais ou políticas. O que é justo hoje, pode deixar de sê-lo amanhã. O que foi justo ontem pode se tornar injusto hoje. O direito seria um mero instrumento para tentar traduzir, ainda que imperfeitamente, nosso desejo de justiça. Sua tradução real é o ordenamento jurídico, com suas instituições e processos, que culminam, no caso do Brasil, no conceito político de Estado Democrático de Direito. A essência do direito é o processo, a ordem pública dos procedimentos e razões, que levam a manter certas condições equivalentes para produzir critérios semelhantes de ajuizamento reunindo o caso à regra, o fato ao valor, o ato à norma. Por isso, não há crime sem um código anterior que o tipifique. Por isso também o direito é um assunto de lei escrita, desde o código de Hamurabi até as leis Bíblicas, ou seja, uma forma de tentar superar as condições instáveis e indeterminadas da fala e dos contextos morais de enunciação da justiça.

 

É claro que juízes, promotores ou defensorias e procuradores têm seus interesses e o ordenamento jurídico, em qualquer país, é habitado pelo envoltório político. O processo jurídico está para o direito assim como o método está para a ciência. Todos sabemos que existem outras formas de conhecimento, mas tanto o método científico quanto o processo jurídico ambicionam prestar razões públicas, de aspiração universal, em linguagem depurada de ambiguidades de suas decisões e procedimentos. A isso que chamamos de imparcialidade. Mas é importante lembrar que, assim como a ciência, o ordenamento jurídico não exclui que a verdade possa emergir por outros procedimentos, como a arte e o amor, como diria Alain Badiou. A ciência e o direito seriam, por assim dizer, formas mais controladas e institucionais de produção da verdade. Por isso, nem toda verdade cabe na ciência, assim como nem toda justiça cabe no direito. Aliás, é por isso que o direito, assim como a ciência, se transforma historicamente.

 

O que não se pode admitir é que a vontade de justiça corrompa os processos do direito, ou que o desejo de provar sua tese faça um investigador roubar nos números, apresentando dados seletivos, recortando a realidade, manipulando o comitê seletivo das revistas científicas para que se publique seu texto, plagiar artigos de outros, desqualificar outros pesquisadores apenas para obter mais financiamento para sua pesquisa, e por aí vai.

 

Ao longo dos últimos cinco anos, escrevi várias colunas aqui no Blog da Boitempo tentando mostrar como estava em curso, no Brasil, um desvio sistemático e tendencioso da relação entre justiça e direito. Argumentei que pode haver um tipo de corrupção dentro da lei, que o anti-petismo era a expressão de um desejo legítimo de justiça desviado para outros meios, que havia demasiado ódio na prisão de Lula. Fiz, até mesmo, um voto de confiança “metodológico” esperando algum tempo para ver se a Lava Jato representaria uma mudança geral de padrões de juízo institucional no Brasil, mas tive que me render aos fatos diante do bizarro julgamento no TSE, absolvendo a chapa, e mantendo Temer, contra todas as evidências em contrário. Ali, ficou claro que teríamos que aceitar, a sanção pública de procedimentos jurídicos inverídicos e que estávamos realmente diante de uma operação “dois pesos, duas medidas”, para relembrar aqui o título de uma coluna célebre de Maria Rita Kehl. Ali, estava declarado que vivíamos uma tragédia ética da política e que seu fundamento era a incapacidade de nossos magistrados exerceram a autolimitação de seus interesses. Olho por olho, dente por dente. Ali sancionamos o princípio da segregação, pela qual julgamos alguém por quem ele é, e não pelo que fez. Como é regular na história, este tipo de gesto evolui para a violência. Convidei Bolsonaro para o divã, tentei mostrar como o articulismo de direita estava possuído pelo desejo vingativo de justiça. Argumentei que não era possível elevar a máxima “nada pode ser pior de Dilma” à condição de lei universal de nossos procedimentos judicativos. Tentei chamar a atenção para a gênese jurídica dos juízos reflexivos simétricos: “se você pode ser feminista, eu posso ser machista” ou “um erro justifica, sim, um outro”, afinal “os fins justificam os meios” (especialmente, quando os meios jurídicos, universitários e jornalísticos são percebidos como corrompidos).

 

Vi pessoas que respeito e admiro, cognitivamente bem formadas e politicamente experientes, defenderem que a democracia não é um valor tão importante assim, que precisávamos fazer alguma coisa para a economia voltar ao normal. Sofri a crítica de meus pares de que eu havia me transformado em um militante, pois só podia estar dizendo estas coisas porque estaria defendendo o PT e Lula, como um  “esquerdopata” querendo trazer a justiça partidária para o “seu lado”. Poucos concederam o benefício da dúvida de que estaria apenas tentando indicar a aparição, ou intensificação, de um sintoma social brasileiro.

 

Gradualmente, vi essas mesmas pessoas dizerem que, afinal, “todos sabemos” que havia corrupção no governo do PT e que alguém tinha que pagar essa conta para o Brasil mudar. Se as pedaladas de Dilma não foram convincentes, ou se faltavam provas no caso do “tríplex” do Guarujá, isso não era muito grave, afinal, “os pais podem não saber porque estão batendo, mas a criança sempre sabe porque está apanhando”. Prender Lula tornou-se um assunto de justiça, não mais de direito. Afinal, se ele não é culpado neste caso específico, alguma culpa ele certamente tem, em algum lugar… E já que cedo ou tarde vamos provar, por que não puni-lo já, e exemplarmente?

 

Orientei uma dissertação de mestrado sobre o processo decisório de juízes que mostrava como inúmeros fatores, psíquicos e morais, podem afetar a imparcialidade, sobretudo ao agir sobre a estrutura temporal da tomada de decisão. A patologia mais comum do processo decisório ocorre quando começamos raciocinar “de trás para frente”, ou seja, quando primeiro formulamos nossa opinião a respeito do caso e depois disso passamos a agir de modo a confirmar aquilo que no fundo “já sabemos”. Essa tendência de ir para o momento de concluir, antes de dar se o instante de ver e o tempo de compreender, afeta todos os processos de decisão: da entrevista de emprego até a avaliação de alunos em sala de aula, sem falar na reprodução de atitudes cognitivas, estéticas e políticas e na lógica do preconceito. É certo que nenhum avaliador está em condições de colocar-se em posição de perfeita neutralidade, despindo-se angelicalmente de seus valores, para bem conduzir um processo decisório. No entanto, ele tem que estar suficientemente advertido disso para poder contrabalançar suas próprias tendências com evidências e argumentos contrários.

 

Este problema está fartamente colocado pelas narrativas de vingança, que ascenderam no cinema brasileiro da Retomada (1998-2003), mas cujo esquema secular se encontrará no faroeste americano ou italiano, nas peripécias do imortal Charles Bronson e sua encarnação nacional em Tropa de Elite (2007). A narrativa básica consiste em uma grande injustiça que é cometida e que leva o herói a sentir-se impotente diante das vias institucionais disponíveis. O sistema está contra ele, a polícia é corrupta, existe uma armação dos verdadeiros assassinos, potências estrangeiras forjam provas… Abandonado e solitário, o vingador arma-se até os dentes e infringe as regras necessárias para que a ordem volte a reinar. Moral da história: é preciso passar por cima do direito para realizar a verdadeira justiça. Lembremos que no filme Os Intocáveis (1997), dirigido por Brian de Palma, o grupo de elite que prendeu o gângster Al Capone teve que recorrer a uma artimanha final para conseguir que o caso fosse julgado corretamente. Isso acontece quando Elliot Ness sussurra nos ouvidos do juiz um blefe de que a corrupção do próprio magistrado poderia ser provada.

 

De certa maneira, o Brasil viveu essa narrativa da vingança em ato, com a emergência da Lava Jato e a ideia de que seria necessário um grupo de elite para fazer justiça passando por cima das cláusulas protetoras do direito. Isso reuniu grande apoio popular porque, de fato, muitos dispositivos legais são formados para proteger e privilegiar pessoas e corporações de interesse. Temos aqui os três componentes fundamentais dessa narrativa: o sentimento de injustiça impune, aguda e generalizada; a percepção social de impunidade conivente das instituições para responder à demanda de justiça e a emergência do indivíduo-herói em relação de excepcionalidade com a lei.

 

Mas no “Faroeste Caboclo” nacional de Legião Urbana, o herói morre com um tiro pelas costas. Nossa narrativa de vingança advém do fato de que nosso ideal de individualização não consegue realmente se generalizar. Sabemos que instituições são necessárias, mas elas são tão pessoais e interessadas que acabam desprezando as singularidades do caso particular, as condições únicas que afinal ocorrem na vida real, tal como ela é. O herói solitário, à margem do sistema, torna-se assim um símbolo de nosso desejo de sermos reconhecidos pela exceção que nos constitui. Por isso admitimos que a lei possui modalidades de aplicação “toscas”. A lei requer uma espécie de código tácito ou ideológico que rege sua aplicação diferencial. Esse código tácito fornece a gramática de nossas fantasias ideológicas, tornando visível e indigna certas violências em detrimento de outras, fazendo a mão pesada da lei cair mais forte sobre jovens negros de periferia das grandes cidades e pelo apresamento em massa de minorias. É essa falsa oposição que organiza a conversa que polariza, por um lado, o apoio aos bandidos e aos direitos humanos, e por outro, a defesa da lei, da ordem e do “cidadão de bem”.

 

Mas tudo isso ganhou a eleição e temos que admitir a derrota e fazer a autocrítica. A justiça está no comando e, junto com ela, as armas. A Nova Era chegou com a Nova Lei. O desejo legítimo de justiça não pode ter sido extinto apenas por uma eleição. Portanto, nada mais justo que colocá-lo em prática diante da chamada “Vaza Jato” trazida pelo The Intercept Brasil e Glenn Greenwald. Queremos mais justiça. Queremos a justiça prometida. Queremos a aplicação do Decálogo de Moro ao caso Moro.

 

  1. O vazamento é um método jurídico válido, ainda que não esteja estabelecido no direito, pois conforme a sétima das “Dez medidas contra a corrupção” incorporadas pelo pacote anticrime de Moro: “provas ilícitas obtidas por meio de boa-fé são válidas no devido processo legal”. A isso, se soma a máxima

 

  1. É permitida a desqualificação da defesa: expressões como “showzinho da defesa” e o “ataque organizado”, usadas horas depois do primeiro depoimento de Lula, podem ser agora aplicadas ao depoimento de Moro no Senado.

 

  1. O The Intecept e a imprensa em geral podem trabalhar coordenadamente com o Ministério Público, uma vez que Moro procurou o Ministério Público para sugerir nota à imprensa que esclarecesse “contradições” do petista.

 

  1. A Justiça pode operar de forma invertida, do juízo para as provas, tal como Moro parece ter agido, ao trocar a ordem de fases da Lava Jato, cobrar novas operações, dar conselhos e pistas indicando uma clara tendência de condenação do réu.

 

  1. Admite-se provas por aproximação ou por convicção, assim como o procurador Dallagnol duvidava da consistência das provas sobre a propina na Petrobrás horas antes da denúncia do Tríplex.

 

  1. A ausência de memória ou de lembrança de palavras exatas, não é uma atenuante, tal como na jurisprudência formada no caso Lula, que também não lembrava de detalhes da transação no Guarujá.

 

  1. A existência de favoritismo, predisposição ou preconceito por parte de quem julga faz parte da justiça.1 É permitido agir institucionalmente visando impedir entrevistas, invadir tablets e telefones de familiares, vazar seletivamente conversas.

 

  1. A ação combinada, de natureza política, entre quem julga e quem acusa está autorizada nos mesmos termos do comentário de Moro a Dallagnol: “O que acha dessas notas malucas do diretório nacional do PT? Deveríamos rebater oficialmente? Ou pela ajufe?” ou pela confiança de que “In Fux we trust”. Este “fato corrente na prática jurídica”, tão corrente quanto a corrupção, permitiria definir, por exemplo, em qual instância Moro deve ser julgado: pelas práticas ilícitas que o levaram à condição de ministro da Justiça, pelos juízos parciais emitidos na qualidade de juiz ou pela improbidade discursiva praticada como atual ministro.

 

  1. Seleção na escolha de provas e suspeitos podem ser feitas por critérios políticos. Já que é permitido cogitar uma investigação de fachada de Fernando Henrique Cardoso visando “passar recado de imparcialidade”, ou ainda sugerir evitar esse desgaste com a justificativa de que “melindra alguém cujo apoio é importante”, agora podemos investigar alguém importante, apenas porque ele é importante.

 

  1. A opinião pública deve participar ativamente do julgamento sendo facultado a acusadores e juízes2 decidir quando e como os fragmentos do caso são revelados, bem como para quais meios de imprensa. Emprega-se aqui o paradigma criado pela comemoração de que o ex-presidente Lula não falaria à Folha.

 

Se queremos uma Justiça com “J” maiúsculo, isso significa aplicar o mesmo tipo de direito a casos semelhantes, ou então, o que é melhor, reconhecer o erro e repensar as coisas desde seu início, mais uma vez. A demonstração por absurdo, como se faz em ciência, mas também em direito, baseia-se aqui no fato de que o legítimo desejo de justiça e de enfrentamento da corrupção nos levou a esse Decálogo de Moro, não porque seus fins são impróprios mas porque tais fins corromperam os meios. Quando isso ocorre, a vingança se separa do direito. Quando isso acontece, vigora o sentido mais rigoroso e justo do preceito bíblico de Talião “olho por olho, dente por dente”, ou seja, um olho por “só um outro olho” e não por um olho, um braço, uma perna, sua família, seus amigos e um assento no tribunal.

 

Notas

 

1 Artigo oitavo: “O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo, ao longo de todo do processo, uma distância equivalente das partes, e evita todo tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”.
2 “Inciso V, artigo 254 “O juiz dar-se-á por suspeito, e se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes […] se tiver aconselhado qualquer das partes”.

 

- Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP.

 

24/06/2019

https://blogdaboitempo.com.br/2019/06/24/o-decalogo-de-moro/

 

https://www.alainet.org/es/node/200617

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