As Redes de WhatsApp como Armas de Guerra Híbrida na Campanha Presidencial de Jair Bolsonaro

25/10/2018
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Diagrama da Rede

 

Pelo que conseguimos entender até agora, a campanha de Jair Bolsonaro à presidência foi enxertada numa rede de redes já pré-existente, com ramificações em diferentes países.

 

Toda rede é constituída por nodos (nesse caso, pessoas, grupos, comunidades, igrejas, partidos, empresas, fundações, outras instituições, etc.) e de ligações entre eles. Mas o aspecto essencial de uma rede são os fluxos, a circulação de diferentes elementos por meio das ligações que conectam os nodos.

 

É a partir do fluxo desses recursos que os nodos emergem na rede, se sustentam, se multiplicam e se ramificam.

 

É analisando os fluxos que percebemos a configuração centralizada, descentralizada ou distribuída de uma rede.

 

Para quem deseja se aprofundar no tema sobre as diferentes abordagens e análises de rede, deixo esse link de uma aula que ministrei sobre o assunto. [1]

 

Há diferentes tipos de fluxos em redes que integram a seres humanos, que podem ser resumidos em fluxos de recursos materiais, de poder e de conhecimento. Os fluxos de conhecimento são mediados por fluxos de informação e de interpretação. Os interpretantes humanos da informação são as emoções, ideias e ações, desencadeadas no receptor do fluxo pelos signos da mensagem.

 

Félix Guattari nos ensinou que as semióticas hegemônicas do Capitalismo Mundial Integrado operam na modelação das subjetividades [2]. Isto significa que o agenciamento capitalista do desejo, do medo e de outras intensidades humanas opera na produção da subjetividade dos indivíduos, desencadeando diferentes emoções, ideias e ações, modelando imaginários, utopias e distopias para que atuem como trabalhadores, consumidores e eleitores em favor dos objetivos do capital. [3].

 

Os fluxos de rede, mediando recursos materiais, poderes e conhecimentos, na produção de subjetividades fazem surgir atores que não existiam. Contemporaneamente, a intervenção no mais íntimo da subjetividade dos indivíduos pela publicidade e propaganda é mediada por algoritmos de computação, que canalizam os conteúdos das semioses hegemônicas sob formas adequadas para atingir de maneira eficiente os públicos específicos, segundo segmentações dinâmicas.

 

É pela análise dos fluxos que podemos desenhar o diagrama de rede. Considerando a campanha de Bolsonaro à presidência, o diagrama de rede, que pouco a pouco vai sendo desvendado, parece organizar-se com três níveis escalares.

 

O primeiro é centralizado, o segundo descentralizado e o terceiro distribuído.

 

Nessa rede a comunicação mediada por aparelhos celulares e computadores é essencial para a obtenção da modelação semiótica dos interpretantes de amplos segmentos da sociedade para que pensem, sintam e atuem segundo os objetivos estratégicos da campanha.

 

Trata-se de uma estratégia de guerra híbrida, em que o campo de operações, o território de combate, é a própria subjetividade dos alvos ou, se preferirem, dos públicos-alvo das semioses desencadeadas por meio da rede de redes que opera de forma sinérgica na campanha.

 

Fluxos Centralizados no Primeiro Nível da Rede

 

O primeiro nível dessa rede de redes integra atores militares, políticos e econômicos. Nesse nível tomam-se as decisões estratégicas de alto-comando. Esse nível é composto por uma rede centralizada. Mas Bolsonaro não está no centro dela. Ele é apenas um ator coadjuvante em meio a um conjunto de conexões e fluxos de rede que já existiam antes dele e que dele se serve para alcançar propósitos econômicos, políticos e militares de interesse do grande capital internacional em território brasileiro.

 

Esse nodo central de rede da campanha, composto por diferentes atores, administra fluxos de recursos, de poder e de comunicação que alimentam os hubs do segundo nível de rede.

 

Cada um desses atores do nodo principal possui conexão com outras redes, no Brasil e no exterior, vinculados a interesses próprios.

 

Assim, como mostramos no livro “O Golpe”, jovens brasileiros, que foram capacitados por organizações norte-americanas [3] [4], assumiram o controle do Partido Social Liberal [5] que, depois, tornou-se a legenda de suporte da candidatura de Bolsonaro para implementar as reformas que interessam ao capital internacional, como a privatização das estatais e a entrega do petróleo brasileiro a empresas multinacionais [6] .

 

Fluxos Descentralizados no Segundo Nível da Rede

 

O segundo nível dessa rede de redes é descentralizado. Isto é, cada hub do segundo nível está conectado a um determinado conjunto de nodos do terceiro nível e não a todos eles. A conexão se faz basicamente por meio do WhatsApp. Por sua vez, Facebook, Twitter, Instagram e Youtube são importantes para a segmentação dos públicos segundo suas preferências e para posicionamento aberto de diferentes conteúdos.

 

Como as contas dos usuários em diferentes redes exigem números de telefone para a sua validação, os algoritmos do sistema usado na campanha podem cruzar os números de telefone do WhatsApp com os números usados para validação da conta do usuário nessas outras redes.

 

A partir desse cruzamento torna-se possível gerar bases de dados gigantescas, segmentadas pelas preferências e interesses dos usuários.

 

Com tal segmentação torna-se possível direcionar os conteúdos no WhatsApp a públicos específicos de modo que o agenciamento dos interpretantes mentais, emocionais e ativos dos eleitores seja mais eficiente para levá-los a votar em Bolsonaro.

 

O Brexit [7] e a eleição de Trump [8] comprovaram a eficiência desse modelo, adotado pelas forças de direita em outras nações e agora no Brasil para fraudar, sob o aspecto substancial, as eleições no país, induzindo a população a escolher candidatos com base em notícias falsas, em imagens e vídeos montados por equipes de especialistas, que levam a tomar o que é imaginário como se fosse real, submetendo as subjetividades dos receptores dessas mensagens a um bombardeio constante de semioses que agenciam aversão, medo, raiva e ódio, que são sentimentos e intensidades mais facilmente manipuláveis para mobilizar as condutas esperadas do público-alvo.

 

É nesse segundo nível que os robôs ou bots – como preferirem –, operando com algoritmos de inteligência artificial, cumprem um papel central e indispensável na organização do fluxo de comunicação. Pois seria impossível a uma equipe de seres humanos ler milhões de mensagens para classificá-las e redistribuí-las rapidamente. Essa tarefa é realizada por esses programas.

 

Passado o primeiro turno das eleições, o Whatsapp desativou mais de cem mil contas da campanha de Bolsonaro que cumpriam esse papel de segundo nível na redistribuição de mensagens falsas para o terceiro nível da rede [9].

 

No primeiro nível, o aplicativo adotado para o intercâmbio de mensagens era o Telegram:

 

“A gestão da rede de grupos de WhatsApp acontecia toda no Telegram, aplicativo de mensagens russo. Nos grupos dessa cúpula, de acordo com os relatos, estariam os Bolsonaros, assessores diretos, representantes das agências contratadas e alguns militantes de confiança. Estes dispunham de chips da campanha para gerir braços dessa rede. Muitos recebiam o conteúdo diretamente dos criadores, a fim de quebrar a cadeia de comando e dificultar acusações de que a campanha veiculava notícias falsas.”  [10]

 

Para reparar o seu sistema de comunicações no segundo nível da rede, a campanha de Bolsonaro parece ter migrado parte dos bots do segundo nível também para o Telegram [11].

 

Tais robôs, providos de alguns mecanismo de inteligência artificial, fazem-se passar por usuários dessas redes. E, operando a partir de números de telefone do exterior [12], podem disparar milhões de mensagens para os hubs do terceiro nível da rede, integrados em comunidades de diferentes tipos, que abastecerão as pessoas realmente existentes com um conteúdo filtrado, segundo os parâmetros desses algoritmos.

 

Tais hubs são nodos hiperconectados em relação aos demais nodos de seu nível. Assim, os nodos do nível 2 são, igualmente, hubs do nível 3, cumprindo o papel de mediar conteúdos, segundo a deliberação do alto comando da campanha no nível 1, fazendo tais conteúdos chegarem às pessoas de carne e osso por meio indireto, alimentando grupos de famílias, comunidades, Igrejas e outras instituições.

 

Ao ter sua conta banida do WhatsApp, Flávio Bolsonaro protestou:

 

“A perseguição não tem limites! Meu WhatsApp, com milhares de grupos, foi banido DO NADA, sem nenhuma explicação! Exijo uma resposta oficial da plataforma” [13]

 

Mas como um ser humano poderia normalmente interagir com milhares de grupos ao mesmo tempo?

 

O papel dos robôs, no segundo nível dessa rede, é essencial para o funcionamento dela como um todo.

 

Do mesmo modo que temos filtros de mensagens, que as arquivam em diferentes pastas ou as caracterizam com diferentes atributos assim que elas chegam em nossa caixa de correio eletrônico, tais bots filtram e distribuem o conteúdo das mensagens de WhatsApp para os diferentes grupos, enviando conteúdos selecionados para conjuntos específicos de usuários.

 

O mais importante para a equipe contratada pela campanha, que alimenta os bots do segundo escalão com mensagens, memes e vídeos são as palavras-chaves, as tags programadas no algoritmo, que identificam o conteúdo disparado. Pois é a partir delas que o programa filtra o que deve ser enviado para cada segmento do público.

 

Mas, esses bots, ao que tudo indica, também fazem um movimento inverso, filtrando as mensagens que recebem dos nodos do terceiro nível da rede, com os quais estão conectados. E quando os critérios previstos no algoritmo de tratamento dessas mensagens são cumpridos, como volume de curtidas de pessoas reais, a existência de palavras chaves em seu conteúdo, formato e tamanho, etc, a mensagem é disparada para os demais bots do segundo nível, que igualmente operam como hubs de distribuição por meio dos diferentes canais de comunicação a que estão conectados.

 

A depender do grau de automação desses programas, a liberação desse disparo final de mensagens – vindas do terceiro nível – para o conjunto dos hubs do segundo nível, que deverá reenviá-las ao conjunto dos nodos do terceiro nível da rede, pode depender da ação de um moderador humano, que segue as diretrizes do primeiro nível da rede. Em caso de dúvida, este moderador pode contar com uma decisão do primeiro nível da rede, sobre o que deve ser distribuído ou não, com base no arsenal heurístico obtido através de empresas de marketing e do monitoramento dos próprios usuários, verificando os ajustes a serem feitos na realimentação do fluxo de mensagens, conforme o rastreamento da sua repercussão.

 

Fluxo Distribuído no Terceiro Nível da Rede

 

O terceiro nível da rede é distribuído – a conexão se faz ponto a ponto – “per to per” – com alta capilarização e participação do receptor na agregação de maior carga de interpretantes ao redistribuir a mensagem recebida, adicionando-lhe comentários.

 

Aqui se trata, de fato, das pessoas que recebem mensagens em seus celulares e as repassam adiante, para grupos familiares, de igrejas e outros. Nesse caso, os filtros já não são mais os previstos num algoritmo computacional, mas contam com o feeling do receptor que faz a triagem de qual conteúdo irá reenviar para qual pessoa ou para qual grupo.

 

Ao agregar seus próprios comentários a uma fake news como se fosse uma notícia verdadeira, o participante empresta a ela a sua própria credibilidade – embora não tenha verificado a sua autenticidade, o que poderia levar horas ou dias de pesquisa.

 

Assim, ao agregar seus comentários à mensagem e reenviá-la aos seus pares, aumenta a credibilidade da mensagem enviada, pois a sua própria reputação no grupo é tomada por terceiros como elemento de validação daquilo que compartilha.

 

Tais reenvios ocorrem, entre outros aspectos, porque, para não se sentirem isoladas nos grupos, as pessoas necessitam se manifestar e o fazem de modo a serem confirmadas como membros do próprio grupo, evitando gerar dissonância cognitiva em seu interior. Ao receber por mais de uma fonte, entre seus pares, algum conteúdo idêntico, tende a considerá-lo um conteúdo válido, podendo consolidar seus vínculos no grupo ao compartilhar com os demais um conteúdo novo recebido, pois ele está afirmado por mais de uma pessoa confiável no conjunto de suas relações.

 

Em razão desse mecanismo, ela tende a reafirmar o que circula pelo grupo como posição válida pela maioria e como elemento de confirmação de seu próprio pertencimento ao grupo.

 

E depois de fazer o mesmo com várias mensagens, passa a refutar outras, que receba de outras fontes, que discordem das posições por ela já assumidas publicamente em suas redes, evitando entrar em dissonância cognitiva consigo própria ou em contradição com suas comunidades de referência, das quais busca a aprovação e não a reprovação pública.

 

Com base nos critérios de segmentação adotados na montagem do segundo nível de rede, as mensagens são distribuídas para os hubs de terceiro nível conforme a natureza identitárias dos grupos nos quais eles operam como cabeça de rede.

 

Na campanha de Bolsonaro, foram distribuídas milhões de mensagens falsas pelo WhatsApp, ao ponto da empresa eliminar, como vimos, mais de 100 mil contas que operavam no segundo nível dessa rede de veiculação de conteúdo falso [14].

 

O signo e seu objeto

 

O objeto da guerra semiótica dessa nova classe de totalitarismo está na interpretação da relação entre o signo (imagens, textos, etc) e seu objeto (aquilo que ele representa) – pois o signo pode representar falsamente o objeto. Porém, se a representação falsa é bombardeada como sendo verdadeira e o interpretante aplicado pelo alvo da semiose, isto é, pelo eleitor, for a de que o signo corresponde verdadeiramente ao objeto, então o falso é tomado por verdadeiro e pode determinar a sua escolha sobre em quem votar.

 

Do ponto de vista lógico, afirmar a falsidade da falsa representação requer afirmar que um predicado não se aplica verdadeiramente a um sujeito. Mas, para isso, é preciso primeiramente pensar os dois elementos – o sujeito e o predicado – para então afirmar que o predicado não se aplica ao sujeito, correlacionando-os de maneira negativa. Assim, para refutar a falsidade é preciso correlacionar ambos os termos mediante uma negação lógica.

 

Contudo, politicamente, tal refutação pode operar como reforço da própria acusação, pois ela reativa no interlocutor a relação simbólica entre o signo e o objeto, entre o sujeito e o predicado, para afirmar que o signo representa falsamente o objeto. Porém, se o interpretante de mentiroso é aplicado ao interlocutor que tenta provar que o argumento é falso, quanto mais ele argumenta mais será confirmado como mentiroso e será, assim, reforçada a percepção de que a própria mentira, amplamente difundida, é uma verdade.

 

Isso torna a massiva difusão de fake news – que penetra as redes de terceiro nível da campanha de Bolsonaro e de outras campanhas idênticas de direita em outros países – uma arma poderosa de manipulação das sociedades, no contexto atual das Guerras Híbridas.

 

Guerra Híbrida

 

Um documento recente do Departamento de Defesa dos Estados Unidos se refere a diferentes âmbitos da ação militar, nos quais a supremacia do país deve ser consolidada – terra, ar, mar, espaço e ciberespaço:

 

“Durante décadas, os Estados Unidos desfrutaram de superioridade incontestável ou dominante em todos os domínios operacionais. […] Hoje, todos os domínios são contestados – ar, terra, mar, espaço e ciberespaço.” [15]

 

Embora isso possa parecer surpreendente para alguns, o ciberespaço é um domínio operacional de ação militar das Forças Armadas dos Estados Unidos desde o início da Internet ou mesmo antes dela.

 

De fato, a rede global de computadores que hoje conecta também a maior parte dos telefones celulares e muitas outras coisas no mundo todo, nasceu a partir da Arpanet – um projeto militar de defesa dos Estados Unidos [16] –, sendo, desde o seu início, um dos campos de ação militar no qual as forças armadas do país atuam com vistas a assegurar a sua superioridade.

 

Antigos métodos de propaganda, contrapropaganda e desinformação, levados a cabo no passado por órgãos de inteligência dos Estados Unidos, hoje são implementados por redes de fundações e de outras organizações da sociedade civil [17] que recebem milhões de dólares em doações para capacitar lideranças, como as que tomaram o controle do Partido Social Loberal – PSL e consolidaram redes de jovens que promoveram o impeachment de Dilma e que agora atuam pela eleição de Bolsonaro. Sobre os procedimentos adotados nessas ações, veja-se o item “Ação Aberta” (seção 1.5.8) e o capítulo 4 do livro O Golpe [16]

 

Tais procedimentos integram diferentes táticas de guerra política e ciberguerra, com a propagação de fake news, emprego de lawfare e de intervenção eleitoral com apoio externo. Nesse contexto, é extremamente preocupante a meta de Bolsonaro em liberar o acesso e o porte de armas de combate (pistolas e fuzis) para a população em geral.

 

O núcleo duro desta rede pode ser detectado pela análise do fluxo de recursos e de conhecimento que possibilita a sua própria sustentação e propagação. Ele está nos Estados Unidos: desde o treinamento de lideranças do MBL, com recursos da Atlas Network e do Students For Liberty, até o apoio à transformação do PSL para abrigar a campanha de Bolsonaro ou à transposição de propostas do Partido Libertariano para o Brasil.

 

Trata-se de uma rede de redes que, a cada dia, vamos compreendendo um pouco melhor em sua extensão e funcionamento.

 

- Euclides Mance é filósofo e autor dos livros "Falácias de Moro" e "O Golpe - BRICS, Dólar e Petróleo", que podem ser baixados livremente em euclidesmance.net

 

24 / 10 / 2018

http://euclidesmance.net/wp/index.php/2018/10/24/20181024/

 

https://www.alainet.org/es/node/196145

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