Decisões judiciais, divergências e democracia

18/07/2018
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Desembargador Rogério Favreto
Foto: Guilherme Santos/Sul21
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Decisões judiciais são discutíveis [1]. Bem por isso, o ordenamento jurídico, em maior ou menor medida, a depender da situação, prevê a existência de recursos, todos estabelecidos em lei. Aliás, o processo, no qual são proferidas as decisões judiciais, nada mais é do que um conjunto de regras a serem observadas pelas partes, pelo juiz e pelos auxiliares da justiça, as quais devem garantir um “jogo” leal e dialético. Não se poderia imaginar, diante da garantia constitucional do devido processo legal [2], que decisões judiciais pudessem ser proferidas após a prática de atos processuais não previamente conhecidos pelas partes, ou que uma delas, no jogo processual, tivesse alguma supremacia perante a outra diante do juiz. Muito menos se pode cogitar de decisões que causem lesão a direitos, e não desafiem qualquer recurso.  Nesse sentido, tem-se que o processo é uma garantia de igualdade, e decorre do próprio Estado Democrático de Direito.

 

Quem milita no campo do Direito sabe que proferida uma decisão, de mérito ou liminar, haverá sempre uma parte descontente. Mas a discordância da decisão não a transforma, por si só, em teratológica ou absurda. Muito menos pode acarretar ao Juiz a prática de ato ilícito. Afinal, do Magistrado, enquanto sujeito estatal investido de garantias funcionais que lhe outorgam imparcialidade e independência, se espera que aplique o Direito, sem submissão ao interesse de uma das partes ou a qualquer interesse que não seja cumprir a função para a qual foi nomeado.

 

O Desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da Quarta Região, ao decidir o Habeas Corpus impetrado em favor do ex-Presidente Lula, no último dia 08/07, fez exatamente isso: decidiu no exercício do poder jurisdicional que, naquele momento, o ordenamento jurídico lhe outorgava [3]. Ninguém, por óbvio, precisa ter acordo com o conteúdo da decisão. Mas não se pode negar que: (a) foi proferida por um agente estatal no exercício pleno da jurisdição; (b) a decisão foi amplamente fundamentada [4] (c) a decisão dizia respeito ao modo de cumprimento provisório da pena, e não ao mérito da sentença condenatória.  Assentados esses pressupostos, caberia à Polícia Federal o cumprimento da ordem, e ao Ministério Público Federal interpor o recurso cabível, de acordo com as regras que regem processo penal, as quais, como se disse acima, são garantidoras de decisões legítimas, e decorrem da própria democracia. Não foi isso que se viu.

 

Sucederam-se uma série inédita de condutas. Um Delegado de Polícia, que não tem jurisdição, recusa-se a cumprir a ordem de soltura. Um juiz de Primeiro Grau [5] em férias, fora do país e fora do exercício da jurisdição, de ofício profere decisão afirmando a incompetência do Desembargador Favreto, e alertando para a prática de descumprimento de ordem judicial se houver a soltura. Outro Desembargador, que não estava no exercício do plantão, profere “contraordem” determinando a manutenção da prisão. Reiterada a ordem de soltura pelo Desembargador Favreto, o Presidente do TRF4 [6], ao final do dia 08/07, mas antes que o réu fosse libertado, proferiu decisão em incidente denominado pelo Ministério Público Federal de “Conflito Positivo de Jurisdição” [7]. Houve por eleger como correta a decisão do Desembargador que mantivera a prisão, embora reconhecendo que a Resolução [8] que versava sobre o plantão não possuía regulamentação específica para a situação de “conflito positivo”. Interessante notar que tal   Resolução, no art. 3º, previa, de modo expresso, o exame de habeas corpus pelo juiz de plantão.

 

Em resumo: uma decisão judicial, proferida por Desembargador no pleno exercício da jurisdição, é descumprida, não por ter sido revisada pelos recursos cabíveis, mas por uma combinação da omissão de quem deveria cumprir a decisão, aliada a decisões judiciais exaradas por um juiz em férias e dois Desembargadores que não estavam de plantão naquele momento processual, e sem a interposição do recurso próprio. Segue-se decisão da Presidente do STJ indeferindo habeas corpus ajuizado em favor do ex-Presidente Lula. A leitura da decisão revela que uma verdadeira reprimenda contra o Desembargador que determinou a soltura de Lula.

 

A narrativa acima já seria suficiente para surpreender qualquer operador do Direito. No Brasil, é muito comum a divergência de entendimento jurisdicional sobre a mesma controvérsia jurídica. Podem-se apontar inúmeras situações fático-jurídicas iguais com decisões diversas [9]. Por isso, impressionam os termos utilizados para qualificar a decisão que determinou a soltura do ex-Presidente Lula. Trata-se de adjetivação rara, talvez inédita, quanto à atividade decisória de um integrante do Poder Judiciário, constitucionalmente investido de jurisdição. E isso implica, como consequência, grave marco quanto ao respeito institucional que deve haver relativamente à atividade decisória de todos os integrantes do Poder Judiciário, aos quais é assegurada a independência.

 

Os episódios, por certo, deixam inúmeras dúvidas nos jurisdicionados: Quais decisões devem ser cumpridas? Uma decisão é teratológica, ainda que fundamentada? É viável acatar, sem medo de represálias, a decisão de um Desembargador que estava de Plantão? A autoridade policial pode examinar o conteúdo da ordem judicial antes de cumpri-la?  Quais as instâncias revisoras? Estará todo e qualquer Juiz de Primeiro Grau, quando descontente com decisão proferida por Desembargador, autorizado a recomendar o descumprimento pela autoridade policial/administrativa?

 

Apenas esses questionamentos já seriam suficientes para demonstrar os riscos que corre a democracia, já que infirmados o sistema recursal próprio do processo penal e a necessidade de as decisões judiciais serem cumpridas. Mas não é só. No dia 11.07, a Procuradora-Geral da República pediu a instauração de inquérito judicial junto ao STJ para investigar a prática de crime de prevaricação [10] pelo Desembargador Favreto.

 

A conduta da Chefe do Ministério Federal, que tem a relevante função zelar pelos direitos estabelecidos na Constituição, assusta. É compreensível, embora não justificável, que setores da mídia, interessados em ver prevalecer determinado grupo ou ideologia política, emitam “opiniões” desarrazoadas sobre a decisão que ordenou a soltura do ex-Presidente Lula, bem como sobre o seu autor. Mas do Ministério Público Federal era de se esperar conduta diversa.

 

Afinal, pressupor a prática de ilícitos por parte de juízes que, antes de investidos de jurisdição, estiveram vinculados a partidos políticos e/ou ocuparam cargos de confiança políticos, é postura que põe em risco, aí sim, a credibilidade dos jurisdicionados devem ter nos Tribunais, os quais, por força da própria Constituição Federal, devem ter entre seus integrantes advogados (as) de notório saber jurídico e reputação ilibada [11]. Mais. O pedido de apuração de crime, além de não ser recurso, parece constituir verdadeira intimidação ao exercício da jurisdição imparcial e independente.

 

Ora, um Poder Judiciário dotado de garantias para proferir decisões que sejam submissas apenas ao Direito, bem como um processo previsível, no qual os atos judiciais possam ser exarados e revistos, são garantias da própria democracia. A imputação de crime a um Magistrado que proferiu decisão provisória e recorrível abala, portanto, os próprios fundamentos da democracia. De certo modo, o pedido de instauração de inquérito judicial acima noticiado, abre a porta para que todas as decisões judiciais e, por que não, os atos praticados pelo Ministério Público possam ser inquinados de prevaricação, quando deles se discordar.

 

Anos de debate e dialética foram esquecidos em um só processo. Decisões cujo mérito desagrada a alguns setores do Poder Judiciário e do Ministério Público não merecem mais apenas a pecha de teratológicas: agora constituem crime. É preciso notar que o ataque não é só ao Desembargador Favreto. É a toda sociedade que, nos termos da Constituição Federal, tinha o Poder Judiciário e o Ministério Público como garantes da democracia e dos direitos fundamentais.

 

O rompimento dos limites impostos pela democracia no país não parece ter fim, e nem volta. O Estado de Exceção se aprofunda. A Constituição Federal de 1988 ainda não fez 30 anos. Que os recentes episódios sirvam para alertar a sociedade de que a morte de direitos básicos nela assegurados se aproxima. Parece chegada a hora de gritar, mais uma vez, e antes que seja tarde: Ditadura, venha de onde vier, NUNCA MAIS.

 

- Márcia Regina Lusa Cadore é Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul.

 

Notas

 

[1] Há quem sustente no campo do Direito, inclusive, que não há apenas uma reposta jurídica correta já que, diante da lei, haveria sempre uma margem, maior ou menor, para a atividade interpretativa do agente estatal que profere a decisão.

[2] Art. 5º, inciso LIV, da CF

[3] O art. 93, inciso XII, da CF prevê a existência de juízes de plantão quando não houver expediente forense normal.

[4] Atendendo, assim, o disposto no art. 93, inciso IX, da CF.

[5] Que, em outro processo, havia proferido sentença penal condenatória fixando a pena que está sendo cumprida pelo ex-Presidente Lula.

[6] Aquele que declarou ser a sentença penal proferida contra o ex-Presidente Lula irretocável.

[7] Assim consta na decisão do Presidente do TRF4 disponível no site do referido Tribunal.

[8] Resolução nº 127, de 22.11.2017.

[9] Tanto é assim, que no âmbito do processo civil têm sido instituídas várias alterações legislativas visando superar divergências decisórias, de modo a preservar o princípio da isonomia.

[10] Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa disposição de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

[11] Art. 94, da CF.

 

julho 18, 2018

https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2018/07/decisoes-judiciais-divergencias-e-democracia-por-marcia-regina-lusa-cadore/

 

https://www.alainet.org/es/node/194185
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