As crianças enjauladas e o navio negreiro da globalização

Produto da pior devastação econômica desde 1929, assiste-se em todo planeta a um processo de empobrecimento e perda de direitos.

22/06/2018
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A imagem de crianças aprisionadas em modernos campos de concentração cercados de arame nos Estados Unidos tem provocado reações de choque, repulsa e indignação no mundo inteiro.

 

O fato de que não tenham sido capazes de tirar o sono de nenhuma autoridade do planeta é a demonstração escancarada do ambiente geral de conformismo e derrota de nossa época. Também expressa a hipocrisia passageira, a espera de que um escândalo dessa envergadura, possa ser esquecido rapidamente.

 

O problema dessa imagem é seu caráter inaceitável, explosivo. Num universo no qual 0,1% da população controla uma riqueza mundial de US$ 73,7 trilhões, nunca fomos tão ricos. Poucas vezes fomos tão canalhas. Estamos vendo, agora, que nunca houve tanto dinheiro para se fazer o mal.

 

Depois de desembarcar das versões contemporâneas dos velhos navios negreiros, os adultos são enjaulados e separados de seus filhos -- que também serão encarcerados. 

 

As crianças, pouco mais do que bebês, que choram à noite num ponto mal iluminado e incerto, são os personagens-símbolo de tamanha injustiça e sofrimento. Encarnam, no entanto, uma tragédia previsível, dolorosamente construída. 

 

Vivemos um tempo de pilhagem de riquezas e destruição de nações inteiras, de injustiça social e regressão. Produto da pior devastação econômica desde 1929, assiste-se em todo planeta a um processo de empobrecimento e perda de direitos que atinge jovens, adultos e velhos num movimento perverso -- mas de lógica irretocável.

 

As crianças sofrem em função de uma regra conhecida da existência nas sociedades humanas. Se as leis da natureza ensinam os pais a cuidar dos filhotes -- sejam humanos, caninos ou leoninos, por exemplo -- centenas de milhões de adultos foram alijados de qualquer oportunidade de trabalho e progresso. Em consequência, perderam toda capacidade de oferecer proteção, conforto ou alimento. Simples assim.

 

Sem destino, sem pouso e, dizendo com simplicidade, sem emprego e sem descanso, perto de 70 milhões de pessoas foram expelidas de suas casas, de seu mundo, e agora vagam pelo planeta em barcos, comboios clandestinos e acampamentos improvisados. "O mundo assite a pior crise de deslocamento involuntário de todos os tempos", informa a Folha.

 

Formando uma massa maior do que a maioria dos países reconhecidos pela ONU, essa multidão em movimento é a parcela visível de um universo infinitamente maior, que caminha cotidianamente para a regressão e o atraso num ponto qualquer de Bogotá, nas ruas de São Paulo, nas estradas do Iraque ou ruínas da Indonésia. Onde você quiser imaginar -- mesmo nas periferias pobres da Europa e Estados Unidos. 

 

São os deserdados do colapso de 2008-2009, que deu impulso a um novo processo concentração de renda e de poder político em escala mundial, minando, cedo ou tarde, a resistência e luta por um destino melhor que se manifestava em tantos lugares -- inclusive no Brasil, convém, lembrar, numa homenagem às 49 brasileirinhas e brasileirinhos que foram separadas dos país ao chegar aos EUA e até agora não tiveram direito a qualquer reação indignada por parte do Planalto de Temer.

 

O cenário e os personagens da tragédia contem algo de bíblico mas a realidade é absolutamente material, econômica e política. Também pode ser explicada racionalmente. 

 

Os pedantes do pensamento único me desculpem mas foi anunciada com clareza peculiar por Karl Marx, explicada por John Maynard Keynes e enriquecida por inúmeros sábios contemporâneas que vieram mais tarde e hoje se encontram silenciados. Não há debate possível aqui. Nem lugar para lágrimas de crocodilo. 

 

O que estamos vendo é o óbvio, o saldo inevitável de um projeto político de concentração mundial de renda, riqueza e força militar que, a partir de Washington, tenta se impor de cima para baixo, em todo o planeta, visando a consolidação de um poder econômico administrado pelo império norte-americano. O ponto central é tratar o bem-estar do povo como desperdício e ameaça a seus lucros gigantescos. Também é preciso encarar a dignidade devida a todo ser humano desde o fim da Idade Média como que poucos merecem e um número ainda menor irá alcançar. Também é preciso destruir o que ainda resta de espaço público e privatizar o resto, inviabilizando as democracias, regimes onde as maiores têm de ser ouvidas. 

 

No cotidiano de cada país, esse universo produz o fascismo e suas variantes. Nos Estados Unidos, início e fim de tudo, o melhor retrato é o campo de concentração para crianças.

 

Alguma dúvida?

 

- Paulo Moreira Leite é colunista do 247, ocupou postos executivos na VEJA e na Época, foi correspondente na França e nos EUA

 

22 de Junho de 2018
https://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/359298/As-crian%C3%A7as-enjauladas--e-o-navio-negreiro-da-globaliza%C3%A7%C3%A3o.htm

 

https://www.alainet.org/es/node/193671
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